Espelho

Recebi a notícia com a maior naturalidade possível, aquele parente não me era tão próximo, no entanto, ele foi bastante generoso em deixar algo para mim. Era uma casa no interior, com alguns alqueirezinhos de terra montanhosa. Ficava próxima a divisa do estado, num canto esquecido por Deus e pelo mundo.

Quando cheguei na cidadezinha, percebi quão pacata era ela. E notei que não se podia dar um espirro sem que a vaca Mimosa do Nhô Batista soubesse. Foi só perguntar pela residência do finado e conheci toda a sua existência.

Eles o chamavam por Tio Jão, e era um dos mais simpáticos fazendeiros daquelas bandas. Sua animosidade incendiava a todos, por onde quer que passava. Era cordial e prestativo. Líder de um grupo de fazendeiros, ele organizava mutirões para ajudar no plantio, na colheita ou no trato do gado. Tinha alguns empregados que ainda moravam nas terras do finado, em casinhas bem-construídas.

Um tropeiro me guiou até a porteira da fazenda. Era uma estradinha de terra batida, um pouco gasta por causa de alguns caminhões. O meu carro sofreu um pouco, mas alcançou o destino. Decidi que aprenderia a andar de cavalo para poupar a suspensão do bichinho. Um rapaz montado a cavalo se achegou ao portão quando eu buzinei. Apresentou-se como filho do capataz, seu nome era Pedro.

O rapaz era falador e me deu os pormenores dos últimos dias do falecido. Parece que ele ficara obcecado com algo e começara a falar sozinho. Aos poucos, as cores do rosto foram sumindo. De homem corado, queimado do sol, ficara pálido, com tons esverdeados. Ele foi se fechando e ficando rabugento. Andava armado e queixava-se muito. Quase já não saía mais da fazenda, nem deixava a casa grande. Culminou suicidando-se com um tiro no peito. O capataz achou-o minutos depois de ouvir o disparo, já não respirava.

Logo em seguida, o capataz surgiu. Homem alto e marcado pela vida tinha olhos profundos e plenos da sabedoria do campo. Chamava-se Fernando. Cumprimentou-me com fervor e foi abrindo o casarão, que estava fechado desde o incidente.

Era espaçoso demais para uma pessoa sozinha. A sala principal que comportava receber visitas tinha uma mesinha de centro e quatro poltronas ao redor dela. Deste aposento, tinha-se acesso por dois corredores aos outros âmbitos. O corredor leste levava até os quartos (eram três e um era uma suíte), ao escritório e à sala anexa a este. O outro corredor levava até mais dois quartos menores, o banheiro comunal e a sala de jantar (por dentro desta seguia-se até cozinha). Havia neste lado um salão, possivelmente usado antigamente como sala de dança, festas, etc. Os aposentos em sua maioria tinham uma chave fixa na porta pelo lado de dentro. Havia uma cópia num molhe que o capataz me deu. Com ele ficaria apenas a chave da cozinha - que a esposa dele usava ao entrar para cozinhar e para a limpeza.

As únicas portas que estavam lacradas eram o escritório e a sala anexa. Descobri que estes dois cômodos estavam dispostos em frente ao quarto do finado. Gostei da praticidade, ele poderia transitar pelas três salas sem incomodar ninguém.

Com um pouco de trabalho achei a chave do escritório e abri-o. Era bem amplo e arejado - ainda mais após ter aberto dois pares de janelas. O cheiro do campo entrou com facilidade, perfumando e iluminando tudo. Sentei-me na vistosa cadeira revestida com couro e percebi o quanto era bom usá-la. Olhei para a grande mesa de mogno e revistei cada canto dela. Havia um livro ata que era usado para controlar as finanças da fazenda, alguns papéis soltos com uma grafia peculiar. O computador era um modelo um pouco antigo, mas devia servir para o uso daquele escritório. Alguns livros atas, com umas notas afixadas dizendo digitado, na mesinha ao lado me deram uma dica do que estava sendo feito: todos os arquivos deveriam estar sendo repassados ao computador. O único móvel que valia a pena ser investigado era um arquivo trancado. A chave deveria ser minúscula e logo vi que não era nenhuma que havia no molhe. Procuraria depois por ela. Na parede, à frente a mesa, estava um quadro do finado, junto de uma mulher e duas crianças. Olhando-o assim, realmente ele era bonachão.

A sala anexa estava trancada tanto por dentro - pela porta que ligava ao corredor - quanto à chave pelo escritório. Era uma salinha menor e era usada como um depósito. Havia alguns móveis, bem antigos por sinal, quadros e um espelho de corpo inteiro, coberto por um pano. Ignorei os objetos por enquanto, não eram nada de tanto valor ou interesse.

Sentei-me outra vez à mesa e tentei ver se aqueles papéis faziam algum sentido. Era serviço para horas vagas. E talvez eu nem ficasse na fazenda mesmo. Neste ínterim achei uma chave pequena, talvez servisse ao arquivo. E servia. Para a minha surpresa, havia uma pequena fortuna ali dentro. Maços e maços de dinheiro. Por que aquele dinheiro estava ali? Será que ninguém sabia dele? Será que nos últimos dias o velho Jão temia a perda daquele montante? Lacrei-a novamente, prendendo a chavinha no chaveiro preso ao meu cinto. Levantei-me e procurei o capataz, queria dar uma olhada no que havia de produtivo no lugar. Aquilo me ajudaria a sondar a origem daquele dinheiro.

Maria, a esposa do capataz, me informou que o marido, mais os peões, tinha seguido para o canavial. O filho, Pedro, estava no estábulo e poderia me ajudar a conhecer a fazenda.

Lá o encontrei. Era uma construção não muito longe do prédio principal, ao lado do armazém. O rapaz escovava a crina de um belo animal. Sorriu para mim e disse que o animal era o cavalo do Tio Jão. O preferido. Perguntou-me se eu não queria montá-lo. Envergonhado, disse que nunca havia andado a cavalo. Ele riu um pouco e disse que poderia ensinar, caso eu desejasse. Meia-hora depois eu já cavalgava uma bela égua, chamada Bela Mansa, e o rapaz mostrou-me a propriedade. Durante o percurso falou um pouco do antigo patrão. Só elogio, nada que me desse uma dica.

Contabilizei, e depois verifiquei nos arquivos do Tio Jão, que havia ao todo: cinco eqüídeos, uma vaca leiteira, dois tratores e doze galináceos. A maior parte da renda da fazenda vinha do plantio de cana e mandioca. Outrora, plantava-se café. Ao fim do dia jantei com a família de Fernando e me recolhi para o casarão. Durante o jantar ouvi mais notícias sobre Tio Jão, e uma me levou ao dinheiro. Um homem do banco ligara para ele avisando que um cálculo estava pronto. Jão saíra e só retornara bem tarde. Depois deste dia ele começou a mudar.

Li alguns dos livros atas, havia fundos para a origem do dinheiro escondido, ele guardava um montante em uma conta-poupança e havia uma retirada...semanas antes de sua morte. O cansaço me alçou, não me deixava mais ler patavina das contas. Deitei-me em um dos quartos da ala leste e dormi como uma pedra. Acordei tarde, muito tarde. Passava da hora do almoço e acompanhei os meus compadres naquela hora boa. Após a sesta, segui com eles para ver como era trabalho. Era um serviço para macho nenhum botar defeito, mas, desacostumado, fui até o limite do serviço. Os homens me recomendaram não me esforçar tanto, logo de cara. Eles queriam um patrão vivo e eu parecia gente boa para viver muitos anos. Aceitei a idéia e tratei de ser mais cuidadoso neste sentido. Nenhum deles fazia questão de quem era o mais forte ou mais trabalhador. Faziam questão de trabalhar direito.

Os dias na fazenda eram melhores do que eu havia imaginado. Acordava cedo, tomava um café de rei, batia um papo com os peões. Depois seguia para a lida e nós trabalhávamos muito, sendo interrompidos apenas pelo almoço que Maria nos servia e o cair da noite. Às noites de sábado seguia para o centro da cidade e me divertia nos bailes. O domingo era o único dia de folga, a maioria dos peões ia assistir a missa e depois jogar futebol, havia três times formados. Como eles perceberam que eu não tinha intimidade com a pelota, me relegaram a goleiro. Mas isto não fazia muita diferença, nos divertíamos muito.

Eu promovera algumas reformas na fazenda e melhorias com o dinheiro que estava escondido. Os conhecidos que eu tinha me indicaram algumas tecnologias que poderiam ser aplicadas. Por volta desta época, reencontrei o espelho na sala anexa, enquanto limpava o lugar. Eu havia me esquecido dele e agora não me parecia tão inútil. Coloquei-o em meu quarto, serviria muito melhor que o espelho do banheiro. Notei o quanto mudara em tão pouco tempo. Meu reflexo mostrava-me um homem forte e com um aspecto jovial. Aqueles ares me faziam bem.

Ausentei-me por uns dias para resolver minha vida na capital, coloquei meu apartamento para alugar e pedi demissão. Levei algumas peças que queria em meu novo lar, deixando para trás os móveis. Um amigo meu trataria de achar um inquilino.

Quando voltei, feliz por ter em minha nova morada meus pertences mui necessários à vida sedentária, como minha televisão, recebi uma bomba. Fernando me alertou que recentemente os peões viram alguém suspeito rondando a fazenda. A figura foi vista por volta das dez da noite, perto do estábulo. E com o avançar do dia, descobrimos que faltava uma das galinhas. Segundo o relato deles, algo similar ocorrera na época em que Tio Jão se matou. Resolvemos todos a tomar cautela.

No dia seguinte a este, acordei com a notícia que de longe Fernando esbravejava: novamente, o estranho atacara. Desta vez matando quase todas as galinhas e destruindo o galinheiro. Indaguei se havia alguém na região que tinha alguma quizila com alguém da fazenda ou com o finado. Nada. Aquilo só poderia ser obra de ladrõezinhos ou vagabundos.

Os dias correram sem nada anormal e o delegado mantinha alguns homens nas cercanias. Ele tratou o incidente como algo feito por uma onça ou um outro animal. Em pouco tempo, a patrulha deixou de vir. Ele não era uma pessoa confiável para a profissão, era muito desleixado. Tratava as eventualidades com uma naturalidade bárbara. Minhas dúvidas eram que o Jão não se matara e sim fora morto. O processo investigativo retardado do delegado possivelmente entendera tudo errado.

A paz retornara ao local até que uma monstruosidade foi cometida.

O cavalo de Tio Jão foi encontrado, morto. A ferida parecia ter sido feita com um objeto afiado. Os peões começavam a acreditar em almas de outro mundo e chupa-cabras. Algo queria nos assustar e não era nenhum tipo de assombração. Disto eu tinha certeza. Eu deixaria a velha espingarda de prontidão. Quem quer que voltasse a nos perturbar eu encheria a chumbo. Fernando era de idéia similar a minha – era obra humana – e os prejuízos que o palhaço trouxera excediam o limite de uma brincadeira. Meu temor residia no fato de que alguém soubesse do dinheiro e planejava roubá-lo, armando aqueles incidentes. Não havia muito agora, parte eu gastara em melhorias e parte, guardei sigilosamente em uma conta quando viajei a capital. Alguns trocados ainda estavam ali, mas eu escondera em outro lugar.

Numa sexta-feira, dias após o incidente, fiquei acordado até tarde envolto em meus planos. Planejava verificar cada centímetro do cercado para ver se havia alguma brecha que permitisse a passagem de animais. Fazendo isto os peões se sentiriam melhor. E faria alarmes rudimentares perto do novo galinheiro e do estábulo. Quem se aproximasse demais, roçaria nos fios montados. Estes fios fariam sinetas tocarem, no casarão e na casa dos peões. Assim pegaríamos o que estivesse lá fora.

Deixei o escritório cheio de sono e dirigi-me à cozinha, para tomar um gole d’água. A casa estava às escuras, somente as luzes da varanda, do escritório e da cozinha estavam acesas. Ouvi um abrir de portas e passos sobre o piso de madeira do corredor.

O ruído levou-me a tentar me esconder, procurando evitar ser atacado de surpresa. Instintivamente apaguei a luz da cozinha. Não tinha nada à mão para a defesa, a arma estava no meu quarto debaixo da cama. Eu tinha apenas meu senso de sobrevivência pulsando, misturando-se ao ódio pelo invasor. Não podia me arriscar a pegar um facão, o barulho da antiga gaveta seria muito alto. Deixei a cozinha caminhando lentamente por sobre o tapete da sala de jantar e me escondi atrás da porta. Os passos desciam o corredor e seguiam até onde eu estava. Uma figura surgiu no beiral. Olhou calmamente a sala de jantar e voltou-se em direção a sala estar. A frágil luz que vinha do escritório criava uma silhueta. Não dava para ver suas feições, mas eu senti que poderia abatê-la. Preparei-me e...

Saltei para o ataque, com a cara e a coragem, jogando no chão o homem. Ele contra-golpeou. Em segundos brigávamos pela sala, esmurrando-se, quebrando móveis. Num movimento rápido e vigoroso, ele puxou a cortina da sala, caindo sobre mim e atrapalhando-me.

A figura correu em direção ao corredor leste, enquanto eu me desvencilhava daquela rede de panos. Corri atrás dele, munido de um pedaço de madeira que fazia suporte a minha peça decorativa e parei encostado à parede de meu quarto, onde ele se refugiara. Num átimo eu estava dentro do quarto, pronto a surpreendê-lo ou ser surpreendido. Não o encontrei, a razão poderia estar na janela, entreaberta, permitindo o luar entrar envolvendo o recinto em sua luz fantasmagórica. Não lembrava de ter deixado a janela aberta e nem parecia ter sido forçada.

Percorri com os olhos além da janela. Aquela torrente luminosa impediria que alguém se escondesse no descampado. E eu seria capaz de ver se alguém ainda tentava escapulir pelo cercado. Nada. Para onde ele fugira, eu não sabia. Olhei atentamente para as laterais da casa. Nada. O safado salvara-se.

Para minha segurança, lacraria a casa inteira, porta por porta, e a espingarda estaria completamente carregada. Olhei pela última vez pela janela. Não havia dúvidas, escapulira. Foi neste instante que notei.

No espelho havia, agora, um outro eu. O espelho refletia um ser diferente do que eu sempre vira. A luz que entrava pela janela iluminava parte de meu corpo, transformando-me num outro satélite. O brilho sobrenatural surgia no reflexo. Onde havia um ser estranho e familiar.

O outro eu me sorria malicioso. Aquele era meu sorriso? Aquela era minha verdadeira essência? Era fascinante e ao mesmo tempo tétrico. Senti-me olhando para o meu retrato como fazia Dorian Gray. Era lascivo. Eu não entendia porque aquela cena grotesca me atraía. Meus pés colados no chão desobedeciam aos meus comandos. Minha voz berrava, mas não saía. Eu sabia que havia algo muito errado. Eu queria fugir.

Meu reflexo aterrorizou-me ao mover-se. A imagem tinha vida própria, ela não mais me seguia como um mímico. Ela tinha vontade própria. Aquela era a sombra de agora a pouco e mesma que semeara maldade dias antes.

Com uma força sobrenatural, aquele braço puxou-me, arrancando-me do solo e levando-me através da superfície refletiva. Fui tragado com a violência daquele ser demoníaco. A criatura semitransparente arrancou minha alma de minha casca e com esta vazia, ocupou meu lugar. Atravessou a fronteira dos dois mundos e lacrou a passagem. Disse algumas palavras ininteligíveis e jogou um pano por cima do espelho, cobrindo-o completamente, impedindo o toque mágico do luar. Ouvi seus passos desaparecendo do cômodo e deixando a casa. Eu tinha uma certeza: eu jamais voltaria a ver meu corpo.

Naquele instante em que a tristeza se apossou de mim, compreendi o que acontecera e o que perseguira Tio Jão. As palavras que o demônio disse foram sendo traduzidas. Aqui desta outra realidade, aguardo, imutável, incapaz de envelhecer, de sentir fome, nem nenhum prazer. Aguardo pacientemente, até que outra vítima venha a se apaixonar pelo espelho e eu me faça livre.