Obersione

Era uma noite de sábado como todas as outras, embora os noticiários tivessem dito o contrario; a tempestade que atingia Curitiba parecia não acabar.

O bairro de Medison fora, em outras épocas, um bairro perigoso, onde a criminalidade tomava conta impunemente, um bairro de periferia dentro da capital do Paraná.

A chuva caia forte, ao longe, podia se ver uma forte luz, esta que vinha do internato municipal de Medison, uma espécie de colégio interno para crianças. O brilho imponente em meio a escuridão estava só, era a única luz que se avistava em todo o quarteirão. Uma janela iluminada.

A tempestade dificultava a visão do internato, que só podia ser visto quando um raio rompia a escuridão. Uma solitária figura humana observa de longe a janela iluminada. Um homem, em uma de suas mãos segurava fortemente um guarda-chuva, que o vento teimava em tentar içar. Lentamente colocou a outra mão no bolso da calça. Tirou dali uma faca.

Olhou mais uma vez para a janela, seus olhos negros encheram-se de lágrimas, o sabor salgado tocou-lhe suavemente a boca, engoliu e começou a andar em direção do antigo prédio. Um raio rompeu a escuridão.

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Ana olhou para as crianças, eram doze, não podia ouvir seu namorado André, que reclamava ao telefone, com tom de voz áspero pediu para as crianças pararem de fazer bagunça. Elas deram os ombros, e continuaram a gargalhar com as palhaçadas do Jonny Bravo, no canal infantil da TV.

Ana suspirou, disse que logo conseguiria um tempo para passar com André, que tudo isso iria passar logo, as coisas iriam melhorar. Um raio eclodiu pela janela, as luzes apagaram, as crianças começaram a gritar, Ana fez um movimento para acalmá-las, quando, de súbito, mais rápido do que se foi, a luz voltou, e o Jonny Bravo continuou pulando na TV.

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No andar inferior tudo estava tranqüilo. Na porta de entrada um crucifixo pendurado onde jazia a figura de cristo, um crucifixo pequeno, um raio iluminou toda a sala, e o rosto do cristo crucificado; de súbito a maçaneta da porta virou, trancada. Outro raio, Ana teve a impressão de ouvir algum barulho, mas deu de ombros. Outro raio cruzou o céu rasgando as trevas.

Na sala a porta ainda estava trancada, o mesmo, porém, não acontecia com a janela, que estava totalmente aberta. A chuva que até inundava lá fora, agora, caia também dentro da sala.

O invasor olhou para o relógio que quebrava tristemente o silêncio da sala, foi quando viu um vulto, que se movimentava lentamente bem atrás dele.

O invasor mordeu os lábios, serrou os dentes e segurou fortemente a faca, respirou fundo e virou abruptamente para seu opositor, um raio iluminou toda a sala, o invasor caiu sobre seus próprios joelhos, respirando rapidamente, era um espelho.

A tempestade castigava o solo, raios e trovões disputavam o céu, uma luta continua, dura e sem possibilidade de trégua.

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Todos diziam que André era um cara estranho, de maus hábitos, um tipo de poucos amigos e palavras duras, Ana não se importava com isso, ela verdadeiramente o amava, foi a ultima frase que disse antes de desligar o telefone.

Escondeu o sorriso e disse para as crianças desligarem a TV. Todas protestaram. Uma das crianças pediu um copo de água, Ana desceu para buscar.

No andar debaixo o invasor estava subindo a escada, quando ouviu o barulho da porta de cima, desceu rapidamente a escadaria e se escondeu no pequeno vão da mesma.

Ana desceu lentamente, degrau por degrau, uma mão no corrimão e a outra tateando a parede. Tinha medo de cair. O sétimo degrau estava solto, pisou nele com cuidado, ele protestou soltando um ranger doloroso, Ana travou a mão contra a parede; já havia ouvido diversas histórias de pessoas que conseguiam se matar dentro de casa, passou para o oitavo degrau; o nono, a descida, daqui para frente, seria mais tranqüila.

Seus olhos ainda não estavam acostumados com a escuridão, maldito interruptor antigo, havia deixado de funcionar a semana passada e nunca mais voltara. Nota mental: Comprar velas ligar para um eletricista.

Ela adentrou a sala e passou direto para a cozinha. Não reparou o invasor no vão da escada. Não percebeu a faca em sua mão. A escuridão escondeu seu sorriso carregado de maldade.

Colocou um copo debaixo da torneira do filtro, e pensava em André, como ele era carinhoso, atencioso. Lembrou de sua ultima briga, instantes atrás. Ele havia sido duro, palavras secas, palavras duras. Nada que uma deliciosa noite de amor não resolveria. Ana conhecia muitas “maneiras” de deixá-lo feliz. Perdida nesses pensamentos foi interrompida pela água, que o copo não conseguiu conter. Fechou a torneira. Começou a andar em direção da sala.

Teria subido as escadas não tivesse se arrepiado com o vento gelado em suas costas. Olhou para a direita, janela aberta. Fez menção de fecha-la, quando tomou um susto; deixou cair o copo. No chão havia uma poça de água encharcando o carpete, da poça uma pequena trilha, passos; passos humanos. O mundo girou, uma voz gritou dentro de seus mais íntimos pensamentos:

“As crianças! “

Foi a única coisa que conseguiu pensar enquanto subia as escadas correndo. A porta estava entreaberta, Ana a empurrou, respirou fundo e entrou, aparentemente estava tudo normal. Aparentemente.

Olhou diretamente para as crianças, estavam sorrindo. Subitamente pararam de sorrir. Sentiu uma pancada forte na cabeça. Caiu.

Levando a mão até a testa, sentiu um crescente arder, olhando para a mão viu: Sangue. Outra pancada na cabeça, seu queixo tocou fortemente o solo. Mais sangue, dessa vez o que saltou de sua cabeça, tingindo a parede, que deixou de ser branca.

As crianças começaram a gritar, tentou se levantar, num esforço em vão apoiou as mãos no chão. O sangue já cobria um dos olhos, tentou enxergar pelo outro. As crianças gritavam. Gritos de medo. Gritos de dor. Outra pancada na cabeça, seu corpo fervia, queimava com o sangue jorrando, ela olhou para as crianças, uma barra de ferro caiu na sua frente, ela viu um homem de costas andando em direção das crianças.

– Acabou! – Disse o invasor.

Seus olhos se fixaram num detalhe. Um tênis azul. Um tênis conhecido. Tentou gritar, perguntar porquê, a voz não saia, ela o viu puxar a faca, foi a última coisa que viu, antes que seu corpo perdesse a vida.

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