A maquete

"No tédio criamos, ou destruímos."

Ele estava com um problema. Sua vida se tornara monocromática, cinza.

Sua mulher não entendia seu dilema:

- Deve ser coisa da idade.

Mas ela raramente pensava sobre isso, afinal, tinha que cuidar de sua vida, também cinza.

Infeliz, ele continuava suas rotinas.

Beijava a mesma boca... recebia o mesmo beijo. Trabalhava num trabalho chato, porém útil. Fazia "amor" com a esposa a cada quinta feira...

Certa vez pensou em ter filhos, mas ele rechaçou a ideia. Sua mulher estava bem em ser cinza.

Tinha sonhos e fantasias em que chutava o pau da barraca. Sonhos em que ia morar afastado de tudo.

Já lhe doía encarar aquela selva de pessoas, aquela que gritava o dia inteiro. E era cinza.

- Onde foram parar as cores?

Questionava-se sem achar resposta, em sua cabeça, as cores da selva de pessoas não viviam por si só. Somente alimentavam o maldito cinza.

Tudo começou a mudar quando seu irmão lhe pediu:

- Eu e minha mulher vamos viajar, cuida da Soninha pra nós?

Desesperado para sair do tédio aceitou cuidar da sobrinha.

- Lógico!

E viu o irmão trazer aquela belezinha de olhos azuis.

- Oi tio Júlio.

Ele soltou algo como:

- Oi Soninha. A gente vai se divertir, não vai?

No primeiro dia, ele levou Soninha à escola, depois brincou muito com ela. Aproveitava os minutos pois estava de férias.

A noite caiu e sua mulher chegou. Eufórico e feliz (quanto tempo não era) ele pôs a contar o dia com Soninha.

- Ah meu bem... deixa eu dormir, amanhã conversamos. Meu trabalho me mata.

O rosto dele, talvez, o mais triste do mundo na hora que a mulher lhe deu as costas. Soltou baixinho entre os lábios:

- Tenho saudade disso que não vivemos. Tenho saudade dos carinhos e palavras amenas.

O restante da música corria livre na cabeça.

Soninha chegou da escola dizendo:

- A fêssora pediu pra gente fazer uma aquete do lugar que a gente gosta.

Júlio respondeu sorrindo:

- É maquete. E eu te ajudo linda.

Soninha queria fazer uma fazenda porque adorava passar o fim de ano no da família.

Ouvindo isso Júlio teve vontade de chorar, fazia muito tempo que não ia a fazenda.

Ficava lá entre o cinza e deixava os verdes, os brancos, os azuis daquele campo. Soninha olhou a cara do tio e com uma perspicácia infantil disse:

- Também sinto falta tio.

Júlio disse um conselho para a pequena:

- Então lindinha, lembre de tudo e sinta, sinta a cor do campo, veja o vô Geraldo, sinta até o cheiro do cocô das vacas...

Ouvindo isso Soninha começou a rir.

- E tudo ficará bem.

O problema é que Júlio seguiu seu próprio conselho.

A maquete ficou bonita, um primor. Era realmente uma fazenda quase real.

Na manhã seguinte a mulher saía de casa e lhe deu um beijo, como sempre, o burocrático beijo.

Comeu uma torrada e se pegou olhando aquela maquete, quase podia ouvir seu pai Geraldo, estava para provar o gosto do leite de vacas quando:

- Tio que tá fazendo? Tio Jú, cê tá lembrando?

Na volta ao fatídico e decepcionante cinza ele respondeu:

- Tava sim lindinha, tava sim...

Depois de levar Soninha para a escola tinha a tarde livre, decidiu ir ao museu.

Olhou uma obra linda e trágica de Picasso e começou a matutar.

Fechou os olhos. E estava lá na obra, sentiu o cheiro de pólvora e viu a destruição de Guernica.

Sentiu-se mal e voltou ao cinza.

Então correu até sua casa, se funcionava com o quadro então... Então...

Abriu a porta de sopetão e lançou o corpo até a maquete. Olhou fixamente e fechou os olhos..

Começou a sentir.

Sentia o cheiro do estrume. Podia sentir o cheiro do estrume!

E podia ver o céu lindo e azul, o lago limpinho, a grama vivaz.

Faltava só uma coisa, faltava seu pai.

- Júlio! É você Júlio?

Olhou o pai. Estava do jeito que se lembrava, cada fio branco da cabeça estava no lugar. Correu até o pai e o abraçou, beijou sua testa.

Agora trabalhavam juntos.

Estava tão feliz que nem lembrou que viu o mesmo pai um ano atrás. Diminuído em um caixão.

Patricia teve que buscar a Soninha na escola. Júlio não apareceu.

Ligou aos amigos e nada. Pediu então, por precaução, ao chefe no telefone alguns dias de folga.

Sentia algo estranho... finalmente sentia algo.

Começou como uma pontada de agulha.

Era o desespero chegando.

Ligou para a polícia, foi a delegacia, ao I.M.L. e a diversos hospitais.

Não queria dizer que gostava dele mas faltava ele em seu mundo cinza e irretocável.

No terceiro dia de desaparecimento Soninha a deixou encucada.

- Tio Jú tá trabalhando com o vô Geraldo.

O irmão de Júlio veio buscar a Soninha e encontrou Patricia em pedaços.

- Calma mulher, ele vai aparecer!

Ela mal o ouvia. Despediu-se dos dois e foi tomar um banho. Patricia costumava tomar banhos de várias horas quando estava nervosa.

Depois ficou olhando no espelho.

Não; não estava um bucho, era linda. Por que ele a deixara?

Foi quando notou a maquete.

Aquela bendita maquete estava ali fazia uma semana. E só agora ela a notara.

Um pensamento de recordação a assaltou:

- Calma mulher, ele vai aparecer!

Estava olhando para a maquete para distrair a mente e levou um susto enorme...

Um extraordinário ser minúsculo lhe acenava. Era ele!

Primeiro empalideceu, depois sentiu que havia enlouquecido e finalmente sentiu ódio. Saiu de casa tão rápido que percorreu as ruas descalça.

Então batia à porta do irmão de Júlio.

- Quero falar com Soninha!

O irmão assustou-se, achava que ela havia pirado, "louco é melhor não contrariar" lhe disseram um dia.

Trouxe então o anjinho de olhos belos.

Mordendo os lábios ela interroga.

- Soninha, você tinha falado que o tio Jú estava com o vô.

A menininha:

- Hu-rum.

Neurótica, grita para a pequena:

- E como ele fez isso!?

E foi interrompida pelo pai da criança pois este via que a filha já marejava os olhos.

- Vai pra casa Patricia! Toma um calmante.

Não se sabe como ela chegou em casa.

Pensava em Júlio... tinha ódio de Júlio.

Ele que fugira e que acenava de uma maldita maquete. E como fizera?

Imaginou então para onde ela mesma poderia ir...

Enquanto isso, na casa do irmão de Júlio a preocupação era geral.

Antônio, irmão de Júlio se precipitou:

- Ela pirou. Eu vou até lá.

E correu pela rua.

Patricia tocou primeiro um quadro de uma cachoeira e nada aconteceu...

- Como ele fez?

Se perguntava e pôs a testa no quadro. Nada aconteceu.

- Acho que só funciona se você quiser ir de verdade pro lugar...

Lembrou-se então dos livros do bardo imortal, livros de romances lindos, de belas tragédias, de poesias maravilhosas.

Um lugar em que queria estar...

Derrubou os livros no chão.

Antônio chega na casa e fica chocado.

Ela ainda devorava Shakespeare na hora em que foi colocada a camisa de força.

Raoni Barone
Enviado por Raoni Barone em 30/04/2009
Reeditado em 22/04/2017
Código do texto: T1568851
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2009. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.