O MAIS DIFICIL

No início deste mês resolvi visitar uns amigos que há muito tempo não via, residentes no município de Franco da Rocha, cidade onde passei boa parte da minha infância e de onde guardo boas e gostosas recordações.

O nosso encontro foi festivo, cheio de recordações das peraltagens de moleque e de muito bate papo descontraído. De tarde, na hora de voltarmos, meu amigo Olvao, companheiro de infância me disse:

-“Veja... todas essas revistas e livros eram de minha mãe e de minha irmã. Você gostava tanto de lê-las, que separei algumas para você. São suas. Pode levar.”

Agradeci o presente e que presente, visto que sou apaixonado por livros e revistas antigas!

Hoje, na tarde quente e calma, sentei-me no terraço de minha casa e pus-me a folhear as revistas e os livros. E entre eles... que surpresa! Um desbotado e velho caderno de capa dura. Abri em sua primeira página e umas letras desenhadas, bonitas, mas quase que apagadas pelo tempo, saltaram à minha frente.

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“Dezembro de 1952...Está findando o ano letivo e mais uma vez estou deixando a minha escola para poder passar as férias de fim de ano junto de minha querida irmã Mirian. Minha irmãzinha adorada e que precisa muito de mim, principalmente durante as férias.

Meu nome é Odete Y. Sou professora primária e efetiva num dos Grupos Escolares desta cidadezinha pacata e tranqüila, onde dedico minha vida e meus conhecimentos às minhas crianças.

Moro numa pensão familiar no final da rua principal e como única parenta, tenho uma irmã, Mirian, hoje com 14 anos de idade e que estuda e reside num colégio-internato da Capital. Desde que meus pais morreram num acidente de carro, jurei que tudo faria por essa irmãzinha que ficará órfã desde tenra idade e que eu seria para ela a mãe que ela não teve, o pai e tudo o mais. Pretendo fazer dela uma moça realizada. A moça mais feliz do mundo e assim, tentar lhe compensar a falta de uma família.

Assim, após mais um ano letivo, estou partindo para a Capital. Vou buscar minha irmã para mais uma vez passarmos juntas as nossas férias.

Minha vida sempre foi assim. Tenho 40 anos de idade e todos com quem convivo acham que dou muita importância à minha irmã e que acabo me esquecendo de mim mesma. Até o Padre Augusto me chamou a atenção:

- “Odete, minha filha... Pense um pouco em você mesma. Olha que o tempo está passando, você está envelhecendo e continua sozinha. Só vive em função de sua irmã. Está certo você querer fazer dela um modelo de virtude, fazer para ela tudo o que for de melhor. Mas para isso você não precisa se anular...”

- “Que posso fazer, Padre Augusto, se sou assim? E creio que nada me fará mudar. Nada mesmo!”

- “Você precisa de um namorado, Odete... Precisa se distrair, construir uma família...”

- “Mas Mirian é minha família, Padre. Estou feliz assim como estou. Tenho meu emprego... minhas crianças... e minha irmãzinha querida. Hei de trabalhar muito e fazer dela uma moça exemplar.”

- “É... sua vida é mesmo somente em função dela. Que se há de fazer?”

E assim os anos se passavam. Minha vida se resumia somente em meu trabalho como professora e alguns trabalhinhos de costura e bordado, que eu fazia em horas de folga ou à noite, para assim poder economizar um bom dinheiro para quando Mirian pudesse cursar uma faculdade e as minhas amizades. E o principal: nossas férias juntas... sempre juntas.

No ano seguinte, logo após o aniversário de minha irmã, que agora estava com 17 anos, numa tarde tranqüila e ensolarada, estava eu a corrigir provas na sala de jantar da casa onde morava, quando o Padre Augusto chegou. E com ele, um jovem alto... de olhos claros... cabelos de sol e um bonito sotaque estrangeiro. Fui apresentada a ele.

- “Este é o engenheiro Hans, Odete. Chegou ontem à nossa cidade e está a serviço daquela empresa de engenharia que se instalou aqui no começo do ano. Veio para traçar as pontes que cortarão nossa cidade. E você, como uma pessoa que conhece muito daqui, foi indicada por mim e pelo Prefeito a mostrar a cidade ao Hans. Ele deseja conhecer nossas divisas e locais pitorescos.”

Hans já não era tão jovem. Tinha 39 anos quando nos conhecemos e era um engenheiro brilhante. Com nosso convício e os dias se passando, aconteceu aquilo que jamais passara por minha mente. Estávamos apaixonados.

Escrevi para Mirian contando de nosso namoro. Ela exultou de felicidade e respondeu dizendo estar louca para conhecer o futuro cunhado. Agora, eu parecia verdadeiramente outra pessoa. Comecei então, a fazer o meu enxoval. Tudo bordado por minhas mãos... E com nossas iniciais em todas as peças de cama e banho. Parecia que eu vivia no paraíso, tal era minha felicidade. Hans me amava e era correspondido. Isso era tudo... Era bastante.

Um dia Hans me disse:

- “Odete, querida... Acho que precisamos marcar a data de nosso casamento. Sou sozinho... você também. Precisamos formar a nossa família. Construir o nosso lar e que por sinal, a nossa casa já está pronta. Quero que você a veja. É do outro lado do rio e tenho certeza que irá gostar.”

A nossa futura casa era linda! Sua frente, toda de pedras e com vistas para o enorme rio que cruzava nosso terreno. Era a casa de meus sonhos. Marcada a data para quatro meses depois, comecei a plantar minhas roseiras em nosso jardim. Na primavera, ficaria linda a nossa casa de pedras toda cercada por roseiras com rosas de todas as cores. E as férias chegaram novamente. Mas desta vez eu não estaria sozinha para esperar por minha irmãzinha. Hans estava comigo e juntos fomos aguardá-la na estação rodoviária.

A porta do ônibus se abriu e ela correu sorridente ao nosso encontro. Mirian já não era mais uma criança. Era uma moça. Uma bela moça.

Minha irmã e Hans tornaram-se bons amigos. Saíamos sempre os três juntos... E como foram divertidos aqueles dias! A vida para mim era a coisa mais bela e deliciosa do mundo. Eu parecia estar vivendo um sonho... um conto de fadas!

Mais dois meses se passaram. Mirian retornou à faculdade e eu e Hans, juntamente com nossos amigos da cidade, vivíamos fazendo mil e um planos para a nossa futura vida de casados. Nossa casa estava terminada. As roseiras principiavam a desabrochar botões multicores. Meu enxoval todo pronto e o vestido de noiva, para mim o mais lindo deste mundo, estava preparado. Uma tarde, sem que a esperássemos, Mirian chegou. Hans demonstrou muita felicidade e eu... fiquei um pouco sem saber o que estava se passando.

Após os primeiros instantes os dois me chamaram para a sala e disseram que tinham muito que falar comigo. Senti-me sufocada e sentei-me para ouvir aquilo...

- “Pois é assim, Odete.” – disse Hans, cabeça baixa. – “Espero que nos perdoe e não nos queira mal. Mas foi amora primeira vista. Eu e Mirian estamos apaixonados desde a primeira vez que nos vimos. E temos nos correspondido durante este tempo. Resolvemos contar-lhe tudo e marcar imediatamente a data de nosso casamento. Só espero que nos perdoe e não guarde mágoa de sua irmãzinha.

Se o mundo tivesse desabado sobre mim... Se a terra tivesse me tragado... se uma bomba tivesse caído sobre minha cabeça, eu ainda assim, não teria sentido o que senti naquele momento! Ninguém que não tenha passado por pesadelo igual, jamais poderá imaginar, nem de leve, nem em sonho, o que senti.

Mas como sempre fui muito forte, mais uma vez me revesti em uma criatura de pedra e com o coração sangrando, mas tentando manter nos lábios um sorriso, ainda arrisquei:

- “Vocês podem não acreditar... Mas toda a minha vida vivi em função de minha irmã. Não seria justo, não seria verdadeiro, se agora eu me pusesse contra ela. Não era a felicidade de Mirian que eu mais ambicionava? ... Pois então... Se essa será a sua felicidade, que sejam felizes para sempre!”

Mirian se abriu num maravilhoso sorriso e seus olhos verdes brilharam. Ela me abraçou dizendo:

- “Odete... Você é muito mais que uma irmã! Eu juro que jamais pensei em roubar o seu noivo... Mas o nosso coração é imprevisível... Se pudéssemos mandar nele... Mas agora isso é impossível. Hans e eu nos amamos de verdade e nossa felicidade será o casamento. Vamos nos casar o mais breve possível.”

E eu, com o coração sangrando, morrendo por dentro a cada palavra, mas sempre coberta pelo manto da indiferença, ainda fui mais longe para completar a felicidade de minha irmãzinha:

- “E o meu presente de casamento será a casa de pedras com o seu jardim de rosas... meu enxoval completo e meu vestido de noiva. E faço questão que vocês aceitem.”

E eles, como era de se esperar, aceitaram o meu grande, o meu imenso presente de casamento. Afinal, eu passaria boa parte de minha vida vivendo exclusivamente para minha irmãzinha. Não seria justo, não seria humano, se eu me negasse a prestar-lhe agora a minha ajuda em seu casamento.

E o grande dia chegou.

Mirian parecia uma princesa ao entra na humilde igrejinha de nossa cidade. Toda de branco, os longos cabelos entrelaçados por flores de laranjeira e uma longa cauda em seu vestido esvoaçante. Hans a esperava emocionado junto ao altar. E Padre Augusto, pobre amigo, fez toda a cerimônia com lágrimas na voz.

Houve uma grande festa no clube da cidade, onde todos os conhecidos estavam presentes. Houve música até a madrugada do dia seguinte.

Minha irmã e meu cunhado pretendiam passar a lua de mel na Alemanha, terra natal de Hans. Mas pernoitariam em sua casa de pedras e somente no dia seguinte, pela manhã, embarcariam.

E assim foi feito.

No dia seguinte, logo que o sol nasceu festivo e radioso, Raimundo, um dos serviçais de Hans atravessou com o barco o rio que separava a cidade da casa de pedras. Ia buscá-los para os levar até a estação rodoviária. De lá, iriam à Capital e embarcariam no avião do meio-dia para a Alemanha.

Foi Raimundo, que algumas horas depois, alarmado, chamou todo mundo da cidade e foi aí que tomamos conhecimento do acontecimento horripilante.

Quando Raimundo chegou na casa de pedras, chamou muito. Não sendo atendido, pressentindo alguma coisa, arrombou a porta da sala e entrou na casa. Na sala, intactas, as malas prontas para a grande viagem de lua de mel. Quando chegou ao quarto do jovem casal... recuou estarrecido. Na cama, ainda vestida de noiva, estava minha adorada irmãzinha Mirian... morta! No chão, Hans estava morto, ainda segurando o revólver e o sangue lhe escorrendo a cabeça. Aos pés da cama, aquela cobra horrorosa, morta, por um tiro. Deduziram todos, que a cobra peçonhenta se encontrava na cama do casal e Mirian, ao deitar, fora picada por ela. Hans, de posse do revólver, matara a serpente, mas ao ver a amada morta, se suicidou com um tiro na cabeça.

E eu, estava ali, a tudo observando e como sempre recoberta pelo manto da indiferença. Depois chorei... desabafei toda a minha dor. E os amigos, todos, disseram como foi difícil eu passar por aquilo tudo. Como foi difícil ver aquela cena trágica e cruel.

Não. Nada disso foi difícil.

O mais difícil... foi colocar a cobra na cama deles!"

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Fechei o caderno e pressenti que o único lugar certo para ele seria o fogo.

Que morresse com Odete Y. aquele trágico segredo.

FIM

Ademir Tasso
Enviado por Ademir Tasso em 29/05/2009
Código do texto: T1621565
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