O SEGREDO DA CABAÇA

Levantei meus olhos já sabendo, exatamente, o que ia encontrar. Ali, pendurada num caibro de madeira, envelhecida pelo tempo e escura pela fumaça do fogão de pedra, aquela cabaça misteriosa e temida. Há quarenta anos no mesmo lugar. Senti que vovó me espreitava, vigilante. Voltei meu olhar e deparei-me com dois olhos negros e decididos. Com ela não adiantava perguntar nada que não fosse de sua vontade responder, nenhum argumento que não fosse melhor do que o dela conseguia convencê-la a falar, fazer, pensar ou mudar de idéia. Tinha 97 anos, ainda lúcida e ativa em seus afazeres caseiros. Eu sempre soube que era sua neta preferida. Desde que vovô morreu, quarenta anos atrás, continuo sendo a única neta a visitá-la anualmente, passando um mês ali naquele fim de mundo, um sertão distante da capital 1000 km, isolado, sem energia elétrica.

Sua casa, misteriosa por ter fama de ser mal-assombrada, possui porões de pedras enormes, escuros e construídos, estrategicamente, em forma de labirintos, esses porões causam medo e curiosidade. Conta-se que muitos escravos foram cruelmente torturados naquelas locas de pedras e trancados até e além morte durante a época de meu bisavô. Muitos acreditam que durante a noite as almas penadas rondam a casa com gemidos de dor e medo. Não posso dizer que isso seja verdade ou mentira, apenas presencio, na calada da noite, ventos uivantes, barulhos de porteiras sendo fechadas com violência, berros estremecidos de bezerros, cachorros com uivos agoniados, tempestades agressivas com trovões e relâmpagos revoltados. Muitos brincam dizendo que o miado dos gatos parece o “Canto de Verônica. Não nego que se não fosse o amor que tenho pela minha vó, jamais ousaria enfrentar tais mistérios movida apenas pela curiosidade e compromisso familiar.

Quando vovô morreu, suas últimas palavras foram dirigidas à minha avó:

- Zeca, ( Zenilda Cazadri) tem lá na varanda dos fundos uma cabaça arroiada por um toco de pau, dentro dela está o mal de toda nossa geração que juntou dinheiro às custas do trabalho escravo. Ali está presa nossa herança

do pecado. Só destrua essa cabaça daqui a quarenta anos, tempo necessário para extinguir esse mal. Não mude para a cidade enquanto não findar esse tempo e jamais visite os porões até segunda ordem. Não queira a destruição.

- Vá tranqüilo “Bastião”, prometo que não farei nada contra sua vontade. Prometo. Vá em paz, vá com Deus.

E assim se cumpriu.

Poucos são os filhos que a visitam. Ficam com medo de tudo que rodeia esse casarão com fama de ser mal-assombrado. A cabaça, então, ninguém nem ousa olhar para ela, acreditam que lá dentro mora o “inimigo”. Alguns dizem que já viram olhos de fogo dentro dos porões e ouviram gemidos de sofrimento. Os poucos filhos que a visitaram nesses quarenta anos voltaram no mesmo dia, com medo de passar a noite com fantasmas. Usam de chantagem emocional a fim de levá-la para a capital, porém tudo em vão.

Mesmo vindo todos os anos e passando um mês inteirinho aqui escrevo para minha avó toda semana e ela responde todas as minhas cartas.

Quarenta anos se passaram, chegou o grande momento. Tiro o olhar da cabaça, subo as escadas e entro na cozinha, sento-me ao lado de vovó Zeca. Sempre existiu entre nós duas uma espécie de cumplicidade, confiança e amor. Algo profundamente espiritual. Talvez por isso eu tenha, apesar do meu medo, permanecido com ela. Conversamos sobre família e fomos dormir, cada uma no seu quarto.

O imenso casarão antigo tem a misteriosa forma em V. Na ala onde durmo vê-se, olhando pela janela, a outra parte da casa completando a outra perna do V. Noite alta, nada do sono chegar. Movida por forças sobrenaturais, abro a pesada janela de madeira velha, numa cor azul fechado e estragada pelo tempo. Mesmo sentindo arrepios por todo o corpo, olho lá fora.

O luar pinta de prata o terreiro limpo, muito bem cuidado pela minha avó. Uma enorme escada de pedra bruta, sai da cozinha e termina ao pé da bica de madeira que traz a água da mina para os fundos da casa. Em baixo da escada, parte dos temíveis porões que carregam nas costas aquele casarão. Estes estão aprisionados por grades de ferro com furos do tamanho de uma azeitona, cujo objetivo é entrar ventilação. Só há uma passagem que dá acesso ao interior dos mesmos, um grosso e pesado portão de ferro, cuja chave desapareceu com a morte de vovô. Olhei para aqueles minúsculos buracos das grades e imaginei ver olhinhos de fogo me devorando. Tirei meu olhar fingindo não estar apavorada e busquei a direção dos arvoredos, porém, tenho quase certeza, vi, nitidamente, figuras estranhas, ora via animais, ora via coisas piores. Baixei meu olhar e vi no terreiro bem varrido formas esquisitas desenhadas pelas sombras da lua por entre as árvores, eram criaturas sorridentes, provocantes. Minha nuca, todo o couro cabeludo, todo o meu corpo, enfim, arrepiavam tanto que meu coração, disparado, parecia querer explodir feito vulcão. De repente uma enorme vontade de urinar me fez afastar da janela, numa fração de segundos o medo me fez desistir, se eu saísse e deixasse a janela aberta, quando voltasse algo ou alguém poderia ter entrado por ali, resolvi fechá-la.

Deitada na cama constatei no velho relógio de parede, enegrecido pela chama da lamparina a querosene, que já era meia noite. Gelei.Terminava ali o tempo proibido para destruir a cabaça e entrar nos porões. Mais do que nunca aquela noite me trazia barulhos, aparentemente reais e apavorantes. Com meus quase 50 anos estava ali, desesperada.Imaginava os animais combinando uma orquestra de terror. Pingos grossos e decididos de chuva começaram a socar o telhado envelhecido e frágil. A chuva parecia lavar todo um passado de sujeiras e covardias.

A imaginação estava fertilizada pelo medo me fazia ouvir lamentos, gritos e choros carregados de banzo. Cobri a cabeça, a colcha um pouco curta deixou meus pés de fora, a mercê dos fantasmas. Senti mãos geladas e invisíveis puxarem os meus pés. Gritei apavorada, pensei que morreria naquele momento, tamanho o meu pavor. Com os dedos dos pés puxei a colcha deixando, automaticamente, a cabeça descoberta. Para piorar tudo pressenti alguém me espiando, senti, ao mesmo tempo, como se mil cobrinhas subissem pelo meu corpo causando arrepios indizíveis, não pude controlar meus olhos, virei e, naquele momento, todas as minhas veias dilataram, o coração prestes a explodir e assim, nesse contexto, toda essa força vulcânica saiu pela boca na explosão de um terrível berro.

Tudo acontece em fração de segundos, tal é o poder do medo que a razão não tem tempo de chegar primeiro. Meus olhos tinham vislumbrado a figura da minha avó, mas o medo não deixou que a razão a reconhecesse debaixo daquela touca ridícula de babados coloridos e aquela camisola axadrezada de verde escuro com marrom.

Trouxe-me água e com tamanha doçura e segurança foi me acalmando e me convencendo de que o mal somente seqüestra os fracos e medrosos. Disse-me à queima roupa:

- Meia noite e 40 minutos do dia 13 de agosto de 2000. É o momento ideal. Abriremos a cabaça, em seguida visitaremos os porões.

Descemos pela enorme escada de pedra bruta, a luz da lanterna de pilhas ia iluminando o caminho estreito para que não caíssemos lá embaixo. A chuva, agora calma, deixava as pedras escorregadias. Pronto. Eis a enorme cabaça, já envelhecida pelo passar dos anos. O toco de madeira que tapava o orifício estava quase podre, a cabaça parecia dançar ao ritmo do vento, numa atitude de desdém, como a dizer que não teríamos coragem de parti-la. Minhas pernas tremiam tanto que comecei a abaixar o corpo, meus pelos ficaram em pé, meus olhos enlouquecidos não perdiam um só ângulo daquele espaço que contornava toda varanda.

Meu corpo virava rapidamente na tentativa de me proteger de qualquer ataque pelas costas, parecia sentir toques de mãos por todo o corpo. Contudo não havia como voltar atrás, cada minuto a mais naquela casa significava uma tortura mais forte, minuto a minuto menos chances de sobreviver, tamanho era o meu medo. Vovó Zeca tirou o machado do buraco do telhado, colocou no chão, tirou a cabaça do gancho de ferro que descia do caibro, colocou-a também no chão e pegou novamente o machado e me olhou forte como a pedir ajuda e proteção. Ergueu o machado, porém antes de soltá-lo sobre a cabaça, a velha égua Ventania deu um daqueles relinchos que causa medo até em bruxos. Pela primeira vez vi minha avó deixar escapar um gemido de medo. Num gesto de pura ousadia peguei o machado e estourei a cabaça. A chuva parou completamente, o galo cantou e uma paz, uma serenidade doce reinou em nosso ser. Ali no chão estavam os cacos da cabaça, uma enorme chave e uma placa de metal onde se lia:

“ Nossos antepassados sempre deixaram suas heranças para o primogênito, devido a vários problemas, deixo a minha para o membro de nossa família que permanecer com minha querida Zeca durante esses quarenta anos, sei que não irá desampará-la. Essa chave abre o portão dos porões. Vão lá e vejam com os próprios olhos . Estou em paz.

Sebastião Cazari”

Com a ajuda da lanterna localizamos o portão que dá acesso aos porões. Sem medo transbordávamos uma paz gostosa. Penetramos nos labirintos subterrâneos daquele casarão centenário. Pasmas, visualizamos centenas, milhares de barras de ouro preenchendo todas as divisões daqueles porões, outrora aterrorizantes, agora encantados.

Na manhã seguinte levantei cedo, afinal eu e vovó viajaríamos após o almoço. Chegando no topo da escada de pedra vi, boquiaberta, vovó Zeca acabando de amarrar outra cabaça no mesmo lugar e, novamente, arroiada. Pensei, se perguntar o motivo ela não vai me responder, então resolvi fazer uma pergunta inteligente, de forma que a surpresa a fizesse esquecer da cautela, desconcentrar-se e pudesse cair em contradição e me desse pistas para que eu descobrisse o segredo:

_Vovó Zeca, essa cabaça está frágil, não tem durabilidade, quer que eu arrume outra que resista à chuvas, tempo e sol?

Sutilmente ela me respondeu, deixando transparecer o que ela acabava de prender na cabaça:

- Nada, nem ninguém poderá destruir aquilo que é indestrutível.

Dáguima Verônica de Oliveira
Enviado por Dáguima Verônica de Oliveira em 23/07/2009
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