Jhony e o demônio

Jhony Sempulo pegou um fio de cabelo entre os dedos. Analisava quais eram suas opções no momento. Um gotejar incessante ocorria há apenas alguns centímetros dali. Seus sentidos davam conta do que estava por vir. O cheiro de sangue, o barulho do nada. Alguém lhe armava uma emboscada. Com as mãos no cabo da sua .38 avançou com muito cuidado. O assassino estava ali. Em algum ponto oculto que sua mente nunca iria alcançar.

A ponta da faca brilhou e afundou no seu ombro direito. Jhony aplicou uma rasteira perfeita em seu atacante, mas toda sua sagacidade não tinha lhe preparado para o que estava por vir. O chão debilitado com as constantes chuvas que vinham ocorrendo na região levou Jhony e seu atacante abaixo. Em um lugar muito pior que o inferno.

...

A escuridão psicológica que tinha se instalado em sua mente era terrível. A dor que ele sentia não era compatível com seus sentidos. Ele chorava pelos ouvidos. Sentia cheiro pelos olhos. Tinha vontade de se contorcer como um garotinho assustado. Medo e dor não eram nada comparados com aquilo. O cheiro de enxofre invadia seu tato e sua mente sentia milhares de agulhas lhe espetarem o cérebro.

Ele não entendia como aquilo era possível. Sentia aquelas coisas apenas de olhar para ele. O que aconteceria quando ele realmente lhe quisesse causar dor. Um arrepio lhe percorreu a espinha. Já não tinha mais certeza de querer fazer aquilo.

- O QUE VOCÊ QUER AQUI, HUMANO? – a voz soou dentro de sua mente. Parecia como garras lhe cortando o estômago.

- Eu... Eu vim para – se interrompeu por um momento. A idéia tinha parecido boa no começo, mas agora era péssima.

– Eu vim para tomar o seu lugar – ele falou decidido, com uma absurda coragem.

Houve um silêncio por alguns segundos. A realidade que unia tudo ali parecia estar processando aquela nova informação. A figura assustadora permanecia quieta, imóvel na sua frente. Ele não esperava aquilo. Uma risada assustadora talvez. Uma luta sangrenta com certeza. Jamais um silêncio desconfortável. Aquilo sim lhe causava medo. Sem ter certeza do que deveria fazer, tornou a se repetir.

- Eu disse que vim tomar o seu lugar.

- E O QUE LHE FAZ PENSAR QUE TEM ESSE DIREITO.

- Nada, mas eu achei que não custaria nada tentar. O que de pior pode me acontecer? Já estou morto.

- EU PODERIA ANIQUILAR A SUA EXISTÊNCIA. E VOCÊ SE TORNARIA UM NADA. NUNCA PENSOU NISSO?

- Bem, talvez. Mas não deve ser pior que o sofrimento eterno. Vá em frente acabe comigo. Se não o fizer, teremos um duelo.

A figura permaneceu em silêncio novamente. Uma fumaça espessa saia de sua narina. Uma aura negra ardia em volta de seu corpo.

- COMO SE CHAMA HUMANO?

- Jhony. Jhony Wilson.

- BEM JHONY WILSON O QUE DEVO FAZER COM VOCÊ? SEU CASTIGO JÁ NÃO É TERRIVEL O SUFICIENTE PARA VOCÊ RESOLVER VIR AQUI ME ENFRENTAR?

- É terrível até demais. E esse é o problema. Veja bem, eu me recuso a continuar a sofrer por toda a eternidade, é um absurdo. Então eu vim aqui te enfrentar. Se você me aniquilar para todo o sempre, ótimo. Senão levante essa sua bunda nojenta da cadeira e venha me enfrentar de homem para... er... demônio.

A criatura imensa continuou ali parada. Como se estivesse em choque. Alguns chifres surgiram em sua cabeça. Uma camada de uma gosma verde brotou do chão cercando Jhony Wilson. A criatura abriu a boca dando um rugido assustador. Seus dentes afiados pareciam cortar o mais duro dos metais. A realidade toda tremeu como se estivesse assustada. Seu hálito tinha um cheiro que murchava qualquer esperança. Jhony Wilson sentiu seu corpo tremer. Teve vontade de sair dali gritando como uma menininha.

- HUMANO. VOCÊ TEM UMA ÚLTIMA CHANCE – soou a voz, mais assustadora do que nunca – VOLTE PARA SEU CASTIGO. É MELHOR DO QUE SER O NADA.

- Pois eu prefiro ser o nada a voltar ao castigo. Vamos me encare feito um homem.

- BEM... ISSO NÃO ACONTECE SEMPRE.

Ouve um estalo como se uma luz tivesse sido acesa. A realidade tremeu como uma televisão mal sintonizada. Tudo escureceu por alguns minutos. Subitamente Jhony se encontrava em um escritório, parado em frente a uma mesa. Um anão lhe observava com um olhar aborrecido.

- Muito bem. O que você quer? – disse o anão, com uma voz que não tinha nada de assustador.

- O que aconteceu? Onde estou?

- Onde mais? No inferno. O que você quer? Dinheiro, fama, poder? Aposto que você quer muitas mulheres. Muitos querem.

- Mas que ***** é essa?

- Meu nome é Carlos Enegrevine. O atual presidente do inferno.

Agora foi a vez de Jhony permanecer calado. Seu queixo caiu quase até o chão.

- C-como a-assim? P-presidente de onde?

- Presidente do inferno. Muito bem, eu reconheço sua coragem. Nunca alguém teve peito o bastante pra enfrentar o diabão. Ele não é assustador o bastante?

- Sim.. É... Se eu ainda tivesse alguma reação física eu acabaria me urinando nas calças. Mas... Onde ele foi parar? E por que você disse que é o presidente do inferno?

O anão deu um suspiro. Aquela não era uma ocasião que ocorria sempre e ele não tinha a menor idéia de como proceder, pelo menos não havia nada parecido em nenhum manual.

- Acho que devo lhe contar toda a verdade. Mas por favor, não comente nada sobre isso com ninguém, se a oposição souber que um humano chegou até aqui será o fim da minha carreira política.

Jhony permaneceu calado. Sem ter certeza do que devia dizer ou fazer. O anão lhe ofereceu uma cadeira e pediu duas xícaras de café. Um café puro e outro com uma única gota de limão. Jhony ficou um tempo encarando sua xícara. Realmente ele não sabia se deveria aceitar ou não.

- O que está errado? Café com uma gota de limão, não é isso que você gosta? Está escrito aqui na sua ficha – disse o anão segurando um calhamaço de não menos que 800 páginas. Havia uma incomodante capa verde-musgo.

- Não se preocupe. Logo eu vou esclarecer todas as suas dúvidas. Sabe. Apesar de os humanos acharem que são os maiorais do universo, isso não é bem verdade. Existe uma série de raças espalhadas por aí. Só por que vocês não enxergam não quer dizer que não existem. Eu sou de uma raça que vocês humanos desconhecem, o que nos é conveniente. Nós habitamos o seu mundo há bastante tempo. Sabemos de segredos que vocês nem imaginam existir. A verdade é que o mundo é o mundo por nossa causa.

O anão fez uma pausa para ver como estava se saindo. Jhony estava mais assustado do que um cego no meio de uma rodovia.

- Pois bem. Como todos os seres vivos, nós precisamos nos alimentar para sobreviver. E o nosso alimento é... bem... nos alimentamos de almas.

Jhony deu um grunhido incompreensível. Tomou o seu café de uma só vez.

- Bem... Não é bem isso. Na verdade nos alimentamos dos sentimentos humanos. E esses sentimentos vêm da alma. Felicidade, amor, loucura. Nada é mais para nós do que arroz, feijão, carne, batata frita é para vocês.

- Mas como você pode ver – continuou Carlos – nós somos criaturas muito frágeis, seriamos completamente dominados por vocês. É por isso que devemos permanecer escondidos aqui no centro da terra.

- Centro da terra? Isso quer dizer que eu não estou morto?

- Ah não, você está tão morto quanto boa música na época de festa junina. Sabe, como era muito arriscado para nós vivermos entre vocês. Nos refugiamos aqui. Nossos cientistas desenvolveram complexos mecanismos que captura a alma de vocês humanos no exato momento que ela deixa os seus corpos.

- Depois – continuou – elas são armazenadas em diversos, digamos, potes. Que funcionam como simuladores de um inferno. Os sentimentos exalados pela alma de vocês são armazenados. Nós chamamos isso de fast-food.

- Espera aí. Quer dizer que o inferno não existe?

- Bem... Dependendo do ponto de vista, sim ou não. Mas isso não é nada mais do que a cadeia alimentar.

- Essa é a verdade. - continuou o anão - O inferno que você estava não é nada mais do que ilusões criadas pelo nosso povo.

Jhony coçou a cabeça decidindo se deveria acreditar em tudo aquilo. Parecia mais alguma história fictícia de segunda.

- Bem – continuou Carlos – por favor não conte a ninguém. Eu posso colocar a sua alma em um novo corpo na terra, mas você tem que prometer não falar sobre isso pra ninguém. Eu ainda posso te conseguir uma bela casa e muito dinheiro.

- Mesmo? Você pode fazer isso?

- Sim claro. Nós temos muitos do nosso povo entre vocês. Aqueles que vocês chamam de anões. Na verdade controlamos secretamente a sua sociedade. Nós criamos as suas religiões, o seu capitalismo, arte e tudo o mais. Lhe dar uma nova vida e fortuna não é nada demais para nós.

- E como você vai ter certeza de que eu não vou falar nada para ninguém?

- Bem, vou ter que ficar com a sua palavra. Além do mais iriam te jogar num sanatório se você viesse com uma história dessas.

Jhony concordou com a cabeça.

- Então, estamos acertados?

O anão estendeu a mão para Jhony que a apertou com um sorriso no rosto. Aquele dia estava lhe saindo bem melhor do que tinha imaginado.

- Uma última pergunta – disse Jhony – e quando eu morrer? Vou voltar pra cá?

- Bem... Iremos liberar a sua alma no universo. E de lá, não faço idéia para onde ela vai. Não podemos ter você por aqui de novo, entenda. Então procure não fazer besteiras pois é a última vez que você vai estar na terra.

...

Jhony se levantou cambaleante. A dor no seu ombro direito era insuportável. Tirou a faca que estava cravada em sua carne sem ao menos dar um suspiro de dor. Procurou a sua arma na escuridão. Com muito cuidado conseguiu acender um interruptor na parede, o que fez nascer uma luz fraca meio azulada.

O assassino estava ali, inconsciente na sua frente. Jhony deu um sorriso. Ele pessoalmente iria se assegurar de que aquele monstro nunca mais mataria um inocente.

Jhony colocou aquele corpo inerte sobre o ombro. Com muita dificuldade deu alguns passos buscando uma saída. Olhou ao seu redor, mas não encontrou nenhum ponto de acesso. Foi quando ele viu.

Ali na escuridão duas figuras estavam paradas, como se estivessem tentando passar despercebidas. Eram dois anões. Eles pareciam concertar algum equipamento eletrônico. Era uma espécie de caldeira. Com luzes vermelhas e azuis piscando o tempo todo.

- O que vocês estão fazendo aqui? – disse Jhony com aquele ar de autoridade que fazia os bandidos tremerem de medo.

- Er... – disse um dos anões – somos da companhia telefônica. Parece que os telefones estão mudos nesta região.

Houve um silêncio tenso no ar. A eletricidade que corria por ali tenha o cheiro da morte. Jhony já tinha experimentado aquilo muitas vezes. Sabia que aqueles anões estavam escondendo algo terrivelmente assustador.

O que aconteceu depois foi muito rápido. Talvez fosse o cansaço da queda. Ou fosse por estar carregando um adulto de 70 kg no ombro. O fato é que Jhony não conseguiu atirar rapidamente. Um dos anões puxou uma pistola de um ponto escondido na sua roupa e atirou. A bala zumbiu de uma forma estranha e atingiu o peito de Jhony. Ele sentiu suas forças se esvaindo lentamente. Até que caiu no chão. O mundo girava rapidamente.

- Bem – disse um anão aproximando-se de Jhony. Quando você acordar vai ser alguém muito famoso. Vai ter prendido o maior assassino serial da história, vai ganhar uma medalha de herói do presidente. Mas você vai esquecer tudo o que viu aqui em baixo, você pode fazer isso não?

- Sim, mamãe – respondeu Jhony antes de cair no sono profundo. Foi um sono muito tranqüilizador, com biscoitos, leite e sua mãe lhe cantando uma canção.

Thom Ficman
Enviado por Thom Ficman em 23/06/2006
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