MEU AMOR CANOAS

Página 01 nome Meu Amor Canoas

Como sempre após deixar a Base Aérea, Canoas se dirigia ao Bar Erechim na Rua Bento Gonçalves, esquina com a Rua Minas Gerais para encontrar seus amigos.

O jogo e a bebida corriam soltos, Canoas resolveu ir até a porta tomar seu copo de vinho, queria sentir o vento frio em seu rosto gostava do muito do frio. Olhou para a rua, havia muita lama, os buracos cheios de água refletiam uma lua indefinida. Bem na sua frente uma velha árvore perdia suas folhas arrancadas pelo vento gelado. Elas eram levadas para longe, uma parecia perseguir as outras, Canoas ficou concentrado naquela cena esqueceu completamente onde estava.

- Vamos fazer compras em Porto Alegre? – gritou Enio quase ao ouvido de Canoas, dando um susto no amigo desligado.

- Só faço compras em Canoas, todo mundo esta cansado de saber! – exclamou Canoas sem virar-se para evitar que Enio descobrisse sua irritação.

- Só tu compras em Canoas! – exclamou Enio fazendo caretas para alegria dos outros rapazes.

- Tu não passas de um babaca que não mora na tua cidade – disse Canoas virando-se e rindo.

Assim Canoas deu um basta na provocação do amigo. O jogo de cartas e sinuca continuou até bem tarde, aos poucos aqueles rapazes pobres e com poucas esperanças foram deixando o bar.

Canoas morava bem perto do bar, seguiu para sua casa desviando dos buracos da rua, o latido dos cães denunciava sua passagem.

A rotina dos jovens entediava Canoas, notava a cada noite que sua velha amiga árvore perdia mais folhas. Uma noite ele observou que sua amiga possuía apenas uma folha, ela estava num galho fino apontado para Canoas.

O vento castigava forte, o galho frágil balançava, jogando a folha para todos os lados, mas ela não caía. Canoas olhava fixo para ela como quem tenta passar forças a alguém que luta. Sentia também que aquela folha parecia lhe pedir socorro, como a se queixar do vento. Sua alma recebeu uma última mensagem da folha, começou a cantarolar uma canção colocada em sua mente, cantou como que hipnotizado.

- Olha este vento eu tento eu tento,

Olha esse vento forte, com seu porte

A derrubar as folhas, morte.

_ Olha esse vento eu tento eu tento,

Esse vento bate, esse vento late,

Esse vento seca.

- Olha esse vento eu tento eu tento,

Esse vento mexe com tudo, esse vento

Tem se mundo.

- Vamos ao cinema em Porto Alegre? – perguntou Enio escondendo-se atrás da mesa e sinuca, rindo.

Canoas foi tirado bruscamente do seu transe, Enio sentia um prazer muito grande em causar qualquer tipo de irritação em seu amigo, mas esse era especial. Antes de ter a resposta ele já estava soltando sua gargalhada alta e forte. Seu prazer era contagiante. Alguns rapazes do grupo riam o bar inteiro já sabia como a coisa terminaria.

- Caso você não saiba nosso cinema fica ali na Rua Julio de Castilhos, lá o babaca vai me encontrar. – respondeu Canoas, unindo o polegar e o indicador em círculo.

- É verdade que tu és parente do velho ali do cinema Garibaldi?- perguntou Rubens que estava sentado na frente da mesa de sinuca.

- Parente não, meus pais eram amigos da mulher dele, eu estava lá quando as máquinas do cinema chegaram. Foram tempos de sucesso, mas acabou agora o velho prédio da Garibaldi só guarda as recordações, daqueles dias

Só ficaram as lembranças. Canoas olhou para a folha, ela esta lá, sofrendo com o castigo do vento sem contar com o socorro do seu amigo.

Página 02

Canoas teve que permanecer na Base Aérea, estava de serviço. São vinte e quatro horas em turnos de duas horas por quatro de descanso. Pensava como deveria estar sua amiga folha. Seu coração batia acelerado ao imaginar que ela podia ser arrancada. Aquela folhinha seca no galho fino, desamparada, contava apenas com a própria vontade de se manter ali, Canoas sabia que durante o dia muitas pessoas iriam ao bar, pois tem uma parte que funciona como mini mercado, qualquer um poderia arrancá-la, só um milagre evitaria tal tragédia. Pensava no significado que poderia ter a permanência da folhinha na velha árvore, todas tinham sido levadas pelo vento, alguma coisa diferente estava acontecendo.

O serviço foi concluído, Canoas mal podia esperar a hora de visitar sua amiga.

Como à noite chegava cedo, o inverno não deixa por menos, nossos amigos chegaram ao bar com a escuridão.

- Soltaram o soldadinho! – exclamou Borregar, batendo no ombro de Canoas.

- Pois é amigo Borregar. – respondeu Canoas sorrindo.

- Como foi o serviço de guarda? – perguntou Enio que jogava sinuca.

- Sem alteração. – respondeu Canoas olhando para a mesa onde Enio jogava.

Canoas conversava com seus amigos sem poder olhar para a rua, com isto sua agonia aumentava. Havia um nevoeiro muito forte, o frio era intenso, mas o vento era fraco, isso alegrava Canoas.

O bairro Niterói era muito pobre, um enorme valão rasgava a Rua Fernando Ferrari, vila Industrial. No bar ficavam os jovens que não gostavam de ver televisão. Nada parecia te sentido, futuro para aqueles jovens não poderia ser imaginado.

Canoas finalmente conseguiu olhar para a árvore, ali estava sua amiga folha firme e forte. Bebericava seu vinho encostado na parede do bar, arrumou uma posição boa para melhor olhar sua folha, respirou fundo, quem sabe decifraria o mistério daquela ligação com a folha meio seca, a única da árvore. Como o vento era fraco certamente ela não iria cair, tinha resistido a ventos tão fortes, mas então o que poderia acontecer?

Novamente ele começava a cantarolar uma canção, parecia vir da folha direto para sua mente. Um vento mais forte e gelado atingiu sua face, foi um momento de raro prazer, sua alma parecia estar mandando em seu corpo.

- Este vento mexe com tudo,

Ele faz parte do mundo,

Esse vento não é tudo, olha esse vento,

Eu tento, eu tento.

- Este vento se lamenta, esse

Vento se estreita, esse vento se perde,

Olha esse vento, eu tento, eu tento.

- Este vento leva esse vento

Traz, esse vento se comporta

Como um bom rapaz, olha esse

Vento, eu tento, eu tento.

Pagina 03 Meu Amor Canoas 21.06.2002

No exato momento em que ele terminou sua canção, uma lufada de vento arrancou a folha, sob o olhar incrédulo do rapaz. Ela caiu no chão, ele sentiu vontade de correr e pega-la, mas não conseguiu se mover, ao contrário a velha folha era levada para todos os lados, como se estivesse num redemoinho. Sem entender nada, Canoas sentia uma frustração muito grande, era um duro golpe. A brava folha parecia travar uma dura batalha contra o vento para permanecer ali, junto do seu admirador. Vitoriosa ela se liberta e finalmente toca os pés de Canoas, ficou por poucos segundos, quieta. Canoas baixou a cabeça e pode ver ela desaparecer, levada pelo vento forte, foi sem tocar no chão, poupada do barro,sumiu na escuridão como se nunca tivesse existido. Canoas olhou para a árvore, estava nua, seus galhos pareciam esqueletos imóveis prestando uma homenagem para a folha que tinha caído. Canoas olhou para o chão, notou que a luz do interior do bar iluminava seus pés, sem pensar saiu caminhando, estava triste, tomou o caminho de casa, sua mente recordava as tardes de menino no fundo do seu quintal, onde ele curtia o final do dia.

- Agora estou sentado, cansado,

Com o sol do entardecer em

Minha face à enrubescer,

Não sei bem por que estou

Aqui agora, agora, agora.

- Tudo é verde, em volta não

Cessam os ruídos, contidos

Nas paredes das casas, agora

O vento é forte, agora, agora.

- As pedras não se movem,

Ainda que estorvem, quem

Debaixo delas tenta nascer,

E a vida entender, agora, agora.

- O sol é cada vez mais fraco,

Não consigo, ainda que raro,

Quero comigo a bondade, pois

Maldade não é como sentir saudades,

É preciso haver piedade, agora, agora,agora.

Canoas adormeceu, pela manhã decidiu não ir para a base, estava muito abatido, sentiu uma vontade enorme de ir até a velha árvore. Sem ao menos tomar café, Canoas já estava diante dela. A árvore estava lá, Canoas tinha respeito por ela, sentia sua tristeza, sentia seu fim, sentia-se parte dela, isto o deixava nervoso. Durante o resto do dia Canoas andou por lugares que brincava quando era menino, queria boas lembranças. Havia algo que ele não conseguia compreender acontecendo, parecia carregar alguma coisa com ele, parecia ter o destino sendo traçado, este era seu sentimento, ou até uma loucura que podia estar tomando conta de sua cabeça. O fato é que o rapaz não era mais o mesmo.

Com a chegada de noite ele decidiu ir até o bar, sua vida começou a mudar ali com aquele acontecimento, ali devia estar a resposta para tudo.

- Não foi hoje?

- Não Paraguaio, estou preocupado, acho que vou arrumar problemas lá.

- Tomara que tu pegue uma cana!

- Cala a boca Enio.

- Deixa ele desejar Borregar- disse Canoas.

- Você foi embora ontem sem avisar ninguém.

- Pois é Breno, eu não queria atrapalhar vocês.

• Pagina 04 Meu Amor Canoas 21.06.2

 Ao faltar o expediente da Base Aérea, Canoas poderia sofrer uma punição de detenção, ficar apenas na base, sem poder ir para casa, ou até ficar preso, no prédio quatro, a cadeia da base. Estas punições são de poucos dias, não sendo, portanto uma coisa para grandes preocupações. Canoas estava louco para encostar-se na porta do bar, olhar para aquela árvore e esperar uma resposta para as coisas que vinha sentindo. Após mais algumas brincadeiras dos amigos, finalmente ele conseguiu o que desejava. Sentir o vento frio no rosto ajeitar-se bem para depois ficar um longo tempo imóvel diante da enigmática árvore. O tempo estava passando prazerosamente, Canoas estava tranqüilo, com uma paz interior diferente. Seus amigos faziam muito barulho dentro do bar, ele olhou para trás movendo apenas o pescoço, não viu ninguém, só ouvia as vozes, virou-se inteiro num movimento brusco e assustado, esfregou os olhos, olhou novamente, desta vez todos estavam lá. Canoas levou alguns minutos para acalmar-se, refeito do susto ele lembrou claramente que não viu apenas as pessoas, sua visão não ficou escura, o interior do bar ele tinha visto, os amigos é que não estavam somente eles tinham desaparecido. Talvez pelo seu movimento brusco de olhar para trás isto tenha acontecido, devia ser uma coisa que apenas tenha acontecido na sua imaginação. Sua visão não poderia estar boa para coisas, e ruim para ver as pessoas, certamente este fato não era possível. Sem escolher seus pensamentos, eles pareciam estar sendo escolhidos por alguém, e colocados em sua mente. Canoas via claramente um quadro que sua mãe tinha na parede de casa, era uma pintura da travessia do mar vermelho.

• - Na travessia do mar vermelho,

• As águas se abriram e os filhos

• Do Senhor para a liberdade Seguiram

• - Um imenso corredor feito por amor,

o Para seu povo passar, agora o mar terrível

• Vai ficar e aos soldados do

• Faraó ira matar.

• - Os perseguidores queriam ser

• Seus senhores, mas quando as

• Águas começaram a barrá-los

• Encheram-se de temores.

• - Agora o povo escravo estava

• Salvo e o milagre no mar para

• Sempre hão de lembrar, pela

• Bondade do Senhor vão rezar.

• Canoas sentiu uma felicidade renovadora, pela primeira vez pode aproveitar este momento, o sentimento era o de ser outra pessoa, poderíamos dizer que sua alma apoderava-se do seu corpo por alguns breves momentos. Ela parecia querer ver o mundo. Desta vez não restara pânico para Canoas, ao contrário tinha ficado uma sensação de purificação, de ter sido escolhido para viver momentos que não são para todos uma maneira de viver momentos inesquecíveis. Presente naquele local apenas com seu corpo, Canoas na verdade estava em outro mundo, parecia viver a vida de alguém em outra dimensão, em outro século.

• - Congelou seu Canoas?

• - Congelei sim Rubens.

• - Faz dias que perdemos o parceiro, agora ele fica só aí na porta feito um dois de paus.

• - É verdade Breno- disse Enio.

Pagina 05 Meu Amor Canoas 21.06.2002

Canoas conversava com seus amigos, mas sua mente recordava os doces momentos recém vividos. Para seu espanto ele já sentia falta da sensação que experimentara, havia quase que uma necessidade de repeti-la. Mas como poderia conseguir aquilo de novo, precisava fugir de todos e recostara-se na porta e encarar a velha árvore. Naquela noite, porém isto não foi possível, Canoas foi para casa muito triste, sua preocupação era grande. A falta ao expediente na Base Aérea também deveria ser explicada. Sentado à mesa, jantando vagarosamente ele tentava através da lembrança medir a sensação vivida. Canoas já duvidava que tudo tivesse acontecido tudo poderia ser fruto de sua imaginação, do seu desanimo com a vida. Sua família precisava tanto dele, no entanto ele sentia nada poder fazer para ajudá-los. O sentimento de frustração tomou conta de Canoas.

- A família espera tanto de

Nós queremos contar, se orgulhar

Do que fazemos. A família espera tanto de

Nós.

- A família espera tanto de nós,

Que muita coisa por ela devemos

Sacrificar, assim ao mundo de

Cabeça erguida poderemos olhar

- A família espera tanto de nós que

Não temos o direito de ficarmos parados,

Com os braços cruzados, precisamos o

Mundo conquistar.

Tudo lhe vinha à cabeça como que por encanto, tudo vinha inteiro, era estranho perceber que daqui alguns minutos ele nem se lembraria disto. Realmente caso ele levantasse para lavar seu prato tudo sumiria tão rápido como tinha surgido. Isto já era mais antigo para Canoas, portando ele já estava acostumado, agora percebia que os outros acontecimentos faziam parte de um processo evolutivo. Canoas foi tomado por muita paz, dormir foi instantâneo.

No dia seguinte Canoas foi para a Base Aérea, sua primeira boa notícia o deixou animado. Na hora soube que nem o sargento, tão pouco o tenente, tinham comparecido na sua seção, somente o cabo, portanto ele estava salvo de qualquer problema, pois o cabo era seu amigo e não iria contar sobre sua falta. O expediente passou rápido, Canoas estava inquieto, a todo o momento ele pensava em viver de novo a sensação de libertar-se de si mesmo, parecia uma boa definição para o que tinha experimentado. Canoas sempre deixava a Base por um lugar proibido, o setor um, com isto ele fazia um grande atalho, podendo ir para casa a pé. O expediente terminava às dezesseis horas, havia um pouco do fraco sol de inverno, Canoas caminhou lentamente como era de seu costume. Resolveu tomar um refrigerante, no lado da rua que pegava sol. Sentado na frente de um bar, ele notou um homem de idade, o velho senhor tomava uma cerveja preta, Canoas olhou para ele como quem olhava para alguém muito conhecido, mas com certeza não o conhecia. Sem olhar para Canoas, o velho senhor resmungou alguma coisa. Ele disse “você vai descobrir com quantos infernos se realiza um sonho". Canoas levantou-se e foi embora dali, olhou para trás, repetiu-se a cena da noite anterior, tudo estava ali normalmente, só o velho desaparecera. Desta vez ele teve a certeza que sua visão não havia falhado, assim como ficou a certeza que o velho não estava ali. Canoas ficou contente por descobrir isto, também estava feliz por ter ocorrido neste lugar, não era só diante da velha árvore que podia sentir sua alma manifestar-se. Canoas pensou muito em sua alma, ele queria que isto fosse uma manifestação de sua alma.

Pagina 06 Meu Amor Canoas 21.06.2002

Dá-se o nome de alma (no homem) a substancia imaterial que permanece no meio das variações dos processos vitais que em si produz e sustem as atividades de vida psíquica e vivifica o organismo. Espírito, vida, animação, princípio vital. Poderia a alma de Canoas estar através das variações vitais, anunciando o final da sua atividade de vida. Canoas foi tomado de um grande medo. A morte devia ser o anúncio dela que ele estava recebendo. O sentimento de ter desvendado o mistério a respeito de tudo que vinha lhe acontecendo serviu para Canoas ter a certeza que ele morreria como aquela folha. Na noite escura ele procurava uma coisa iluminada, que o libertasse, mas sua vida continuava incerta, agora ele parecia ter encontrado o que procurava. Ele não conseguia entender, sabia que era possível de acontecer, no entanto seu coração queria tanto não sofrer. A vida de Canoas sempre foi uma tentativa de se encontrar, esta busca estava a lhe marcar. Seu sentimento era de não desistir, de alguma maneira devia ser possível conseguir sorrir e a vida construir.

Canoas chegou ao bar mais tarde que o costume, seus amigos o saudaram com grande alegria, por não saber dos seus problemas todos brincaram com ele a vontade.

- Olha só Canoas, comprei em Porto!-exclamou Enio.

- Deve ser por isso que este tênis é tão feio. - disse Canoas.

- Eu avisei este babaca que aqui em Canoas tem uma loja que tem tênis bom, bem melhor que este aí. -disse Borregar.

- Não adianta falar com este jumento, ele gosta de trair a nossa cidade, este é daqueles que não leva esta cidade no coração.

- Falou muito bem Canoas. - disse Rubens.

- Como foi lá na base?- perguntou Breno.

- Não deu nada! - exclamou Canoas.

Apesar da tristeza, Canoas não demonstrava abatimento, nesta noite ele não estava interessado em olhar sua amiga árvore. Sentou-se num canto de costas para a rua. Parecia querer dar as costas para a morte. Ficou de cabeça baixa por um bom tempo, ouvia as vozes dos seus companheiros, resolveu olhar para eles e ter uma boa lembrança daqueles momentos. Foi neste instante que ele levou um grande susto, as vozes dos amigos ele escutava, no entanto o bar estava vazio. Levantou-se calmamente, desta vez iria enfrentar aquela situação sem pavor.

- Vai embora Canoas? - a voz era de Enio.

- Vou até a porta. - respondeu Canoas com a voz baixa.

- Cuidado! - Exclamou Paraguaio.

Os amigos estavam falando com Canoas, mas ele não podia ver, seus olhos viam a mesa de jogo, viam as paredes, mas as pessoas ele não via. Seria assim quando morresse, estava tendo momentos de uma alma que vaga sem paz. Canoas foi em direção das rua, caminhou até a esquina, resolveu ficar parado ali. Lembrou da frase do velho “com quantos infernos se realiza um sonho", realmente ele parecia estar no inferno vivendo um sonho, um sonho muito ruim. Na esquina Canoas começou a lembrar dos tempos que ele e seus amigos eram conhecidos como esquineiros. Bem jovens eles reuniam-se ali para conversar e esperar seus pais que voltavam do trabalho. Eram dias de muita felicidade, ao contrário dos atuais momentos que são de grande pesar. Da esquina Canoas tinha a visão do interior do Bar, ele olhou para lá e para sua surpresa podia ver seus amigos se movimentarem de um lado para o outro, não pode conter um leve sorriso. Saiu correndo em direção ao bar, parou na porta, virou-se para árvore e sem saber por que foi tomado de uma grande certeza, ela estava morta. Ela tinha vários galhos quebrados pelo vento, parecia ter apodrecido de maneira muito rápida, o tempo não poderia ser o responsável, deveria haver outro motivo. Canoas não entendia como aquela guerreira tinha se entregado daquela maneira, foi muito rápido, rápido demais.

Pagina 07 Meu Amor Canoas 21.06.2002

Corpo porção limitada e distinta de matéria, que impressiona os sentidos por qualidades próprias, conjunto de elementos materiais. Crescimento, aumento, desenvolvimento. Recebem o nome de corpos as coisas que nos rodeiam e são perceptíveis sensorialmente. Características comuns de todos os corpos: São a extensão (quantidade) e a ocupação de um espaço limitado. Enquanto a extensão condiciona a extraposição das partes de um corpo entre si, a impenetrabilidade refere-se à exclusão de outros corpos do espaço ocupado pelo primeiro: Baseia-se ela em forças repelentes. A compenetração de corpos significaria que vários corpos ocupam o mesmo lugar no espaço. Naturalmente ela não é possível, embora não implique contradição interna. Não se da compenetração (ponto de vista filosófico) na solução, que contém, num líquido solúvel, uma matéria finamente diluída. Como nem na mistura de corpos gaseiformes. O corpo humano é o conjunto de todos os ossos e de todos os músculos do homem. Nossa pele tem mais de dois milhões de pequenos orifícios, que são excretores de outras tantas glândulas sudoríparas. O esqueleto humano tem mais de duzentos ossos distintos. Em cada minuto passa pelo nosso coração uma quantidade de sangue igual à que contém o nosso corpo. A capacidade completa dos nossos pulmões é de 5.000 centímetros cúbicos. Ao respirarmos normalmente inalamos e exalamos cerca de trezentos centímetros cúbicos de ar. Possuímos mais de 500 músculos no corpo, e outros tantos nervos e vasos sangüíneos. O coração pesa 225 a 280 gramas. O cérebro sentiu-se forte ao saber tudo isto sobre seu corpo, ele era uma grande e perfeita máquina, não iria se entregar tão fácil como a velha árvore. Leu novamente a parte que definia a compenetração dos corpos. A alma poderia ser um corpo, e estar ocupando o mesmo espaço do seu corpo, ela não estaria sendo repelida por nenhuma força. Seria melhor esquecer tudo em que ele estava se baseando e tocar a vida com mais vontade, com mais força, tudo devia ser uma grande bobagem da sua cabeça. Estava na hora de procurar alegrar sua vida, e não pensar na morte, fechou o livro e relaxou,buscando paz.

- Solidão é o meu problema, pois

Você teima em continuar distante,

Só me resta a todo instante,

Recordar e chorar.

- Solidão é o meu problema, na imensidão

De cada noite, na monotonia de cada dia,

Nada tem alegria,

Não sei como vivo.

- Solidão é o meu problema,

Tudo que tive nunca consegui

Resumir em você, pois quando

A felicidade vem nesta idade,

Parece não ser realidade.

- Solidão é o meu problema, pensei

Ser forte, mas sinto que não

Conseguirei viver, sempre na madrugada

Vou acordar e dizer, solidão é o meu

Problema.

Canoas desejava esquecer esta história de morte, mas não conseguia fugir dos pensamentos que vinham a sua cabeça. Como podia sem mais nem menos cantarolar tantas canções, não era uma coisa normal, principalmente por não conseguir lembrar-se delas logo depois. Como também não considerar o fato de não conseguir ver seus amigos. Tudo poderia ter uma explicação lógica, precisava ler mais sobre a extensão e a ocupação de um espaço limitado.

.

pagina 08 Meu Amor Canoas 21.06.2002

A compenetração de corpos significaria que vários corpos ocupam o mesmo lugar no espaço. Poderia Canoas estar com sua alma querendo ocupar o lugar do seu corpo. Seria possível alguém ser alma e corpo, nesta ordem. A manifestação seria da alma, suprimindo todos os atos e desejos do corpo. Loucura pensou Canoas. Na busca de uma explicação, Canoas foi sentindo um cansaço, um peso que o fez fechar os olhos, os pensamentos e devaneios seriam melhor companhia que suas teorias.

- Acontece quando você aparece,

Das muitas tristezas meu coração

Esquece, e tudo em volta floresce.

- Um mundo diferente, imagino, construo

E proclamo em minha mente, sinto, gosto

De você contente.

- Nada, nem a realidade, a impropriedade,

Ou as convicções desta sociedade me fazem

Ao mundo absolver, pois juntos somos um

Só ser, amor todos podem ter.

- Sem acreditar, ouço todos dizendo, que

Não pode ser nesta época isto ainda

Acontecer e há sempre alguém procurando

Alguma coisa ver, não tem nada, é só amor,

Podem crer.

- Minha vida cheia de alegria vai ser,

Pois levo fé e digo que neste

Mundo, o verdadeiro amor sempre

Vai vencer.

1. Nas causas de grande sofrimento, o ser humano busca no amor consolo, remédio que o cure, Canoas começava a ter esta receita desenhada em sua mente. Será que sua alma lhe indicava este caminho. Canoas pensava muito no amor e via muita sacanagem. O amor não era notícia, a violência é a notícia, o mal da vida é a notícia. Amar para seus amigos é sinônimo de fraqueza, todos preferiam fazer uma grande sacanagem, isto era sinal de hombridade. Canoas não sabia como era este sentimento, na verdade não acreditava nenhum pouco que um dia poderia vir a conhecer. Canoas acreditava que para ele e seus amigos o amor nunca seria apresentado. Como dizia a canção “é brinquedo que não tem”, Canoas sempre teve o sentimento de viver num lugar de pessoas castigadas. Parecia que estava ali pagando seus pecados. O pagamento destes pecados era aquela vida sem nenhum sentido, sem nenhum sentimento. Canoas pensava até quando tudo isto duraria. Poderia ele mudar sua vida, ou seria melhor morrer. A morte ganhou uma aparência de liberdade. Com a liberdade Canoas adormeceu.

O expediente na base aérea consistia em responder a chamada, mas antes tinha o hasteamento da bandeira, fazer educação física, e tirar guarda armado em vários pontos da Base. Canoas era apaixonado pela Base Aérea, o lugar parecia ter alguma coisa de especial, as ruas, os prédios, tudo exercia sobre ele um grande fascínio. Os caças voando baixo, o movimento pacífico da Base o agradava. Apesar de tudo isto ele estava contando os dias para dar baixa, sair o mais breve. Como ele havia pedido engajamento, estava esperando o benefício de um artigo para ser desligado. Já olhava para tudo com saudades. Naquele dia ao verificar a escala de serviços, constatou com tristeza que estava de serviço no paiol, ia ser uma longa noite. O serviço de reforço só iniciava após as dezesseis horas, até lá cumpriria o expediente normal.

Pagina 09 de 21.06.2001 nome Meu Amor Canoas

Como estava determinado pela escala de serviço, Canoas se apresentou no horário marcado, para o serviço de reforço. Após o término do expediente a Base reforçava o serviço de guarda, visando melhor proteção para a noite. Canoas pegou seu armamento e munição, ficou esperando o início do seu turno na guarda. Os soldados que faziam a guarda antes do reforço eram os mais antigos, pertenciam ao setor de infantaria. Já o pessoal do reforço pertencia às diversas especialidades. O armamento usado era o fuzil mosquetão, com baioneta. O mesmo usado na segunda guerra mundial. Era uma arma muito perigosa e potente. Canoas não gostava de tirar serviço no paiol. O lugar era um morro, no interior ficava armazenada toda a munição da Base.

- E aí moderno! - moderno queria dizer soldado novo.

- Pode ir embora, agora é com nós. - disse Canoas ao soldado mais antigo. Naquele posto ficavam três soldados, os outros dois estavam brincando com suas armas.

- Olha aí, isto não se faz é perigoso. - disse Canoas.

A brincadeira dos soldados consistia em pegar a arma e disparar contra o companheiro. Para isso eles recuavam uns trinta metros e apostavam uma corrida até os mosquetões. Como já estavam saindo do seu turno, eles resolveram parar.

- Vamos embora!

- Antes vamos descarregar as armas. - disse o outro soldado.

Foi durante este procedimento que houve um dispara, um dos soldados antigos foi atingido em cheio. O soldado caiu bruscamente, sua gandola pegava fogo.

- Nossa Senhora, não pode ser! - exclamou Canoas, correndo até o ferido.

- Ele esta morto! - gritou o soldado que o acertou.

O local estava com muito sangue, os rapazes desesperados, todos estavam chorando. Com o disparo a patrulha interna da Base não demorou em chegar. O soldado ferido levado para o hospital, o autor do disparo acidental preso em estado de choque. O oficial do dia interrogava todo mundo, queria saber o que tinha acontecido.

Canoas tinha estado bem perto da morte, ela se manifestou de forma violenta, inesperada, não parecia ter nada haver com a liberdade. Se alguém se liberta com a morte Canoas não sabia, mas tudo indicava que todos ali estavam presos. A liberdade é um sentimento de renascer, de ganhar. A morte nos traz o sentimento de fim, de perda. Canoas sentia tudo de maneira contrária ao que pensara na noite anterior. A expressão da morte através de um ato de violência, embora acidental, parecia mostrar a Canoas que sua vontade nada significa, não tem a mínima importância, ele não tem nenhum domínio sobre seu destino. O fato de ele ter pensado tanto na morte, e ver agora um colega atingido, o fez ter um grande sentimento de culpa. Ele começou a achar que poderia ter atraído aquele fato. Suas mãos, sua roupa, estavam com muito sangue, ele olhou demoradamente para suas mãos ensangüentadas, parecia buscar uma resposta para aquele acontecimento. Canoas nunca sequer sonhou em passar por um momento igual a este, mas era sempre assim, sempre lhe acontecia uma coisa que ele jamais imaginava. Tratou de limpar suas mãos, seus pensamentos, no entanto continuaram turvos. A patrulha que levou o soldado ferido para o hospital retornou até o paiol, para surpresa de todos ele estava vivo, parecia mentira. A notícia foi muito comemorada, a batalha do jovem agora seria manter-se vivo. Canoas que tinha passado muitos dias pensando na morte via agora o outro lado, por um motivo desconhecido alguém é alvejado por um tiro e desesperadamente luta para sobreviver, todos estão pensando na vida..

Pagina 10 escrito em 21.06.2002 nome Meu Amor Canoas

Tudo mudado, muito cuidado, muitos

Coitados, muitos pecados, muitos

Magoados.

A vida dura transforma, remodela

As nossas atitudes, onde havia riso

Hoje não vejo, não piso.

Tudo mudado outro lugar, outros

Para lutar, as graças antigas

Trocadas por cachaças choradas

Tudo mudado, um espelho no chão,

Boa noite, termômetro, desodorante,

Dor no joelho, tudo misturado.

Tudo mudado, sentimentos por ressentimentos, amor por ódio, bondade por maldade, vontade de sentir saudade.

Ao sol tudo é diferente, é amenizado o desespero da noite anterior, ficou menor diante da sua perfeição, diante do seu toque mágico, parece um presente divino, com hora certa de aparecer.

Canoas e os amigos recebem a notícia que o tiro causou a perda de um dos pulmões ao soldado, seu estado é estável, as chances de vida são grandes, ele demonstrava uma força muito grande em continuar vivo. Canoas não parava de pensar na contradição do seu caso com o soldado ferido. Ele nunca deu valor para sua vida, sempre buscando algo que não podia ter algo que não sabe nem se existe. Agora todos os problemas, todas as necessidades foram esquecidas, diante da morte, parecia ser ela o maior fato da vida. Parecia que toda a vida é pequena diante da morte. Pensar na morte era bem diferente de estar na sua presença, Canoas tinha resolvido viver, não deveria ser tarde, a vida ele iria surpreender, se dependesse dele a morte ia morrer de inveja.

No prédio quatro, todos podiam ouvir o choro do soldado que tinha disparado o tiro acidental contra seu colega de farda. Para ele nada tinha mudado, a realidade parecia ser mais dura ainda, sua agonia parecia ter aumentado. Ele sofria um tormento real, um padecimento amargo, no seu caso este sofrer era dor física também. Nada para ele era tormento existencial, até ontem a noite ele era alegre, parecia saber o que a vida possuía se melhor, e como ninguém aproveitava este conhecimento, agora, porém o lado triste da vida lhe foi apresentado.

- Como pode acontecer isto? - perguntou Canoas.

- Nossa instrução é toda voltada para evitar isto, sempre digo que o diabo matou o filho com o cano da bota. - disse o tenente também muito triste.

- Se ele tivesse se lembrado destes ensinamentos isto não aconteceria isso também deve fazê-lo se sentir ainda mais culpado. - disse Canoas, concordando com o Tenente.

- Ele realmente verificou se a arma estava carregada sem notar que apontava para seu amigo? - perguntou o Tenente.

- Foi, estavam conversando a amizade dos dois parecia ter hipnotizado com eles, pareciam tão unidos com o final do turno na guarda, tenho certeza que naquele momento eles esqueceram onde estavam. Como uma coisa boa pode se transformar em algo tão ruim.

- Um descuido pode vir de uma atitude amistosa, só que no momento este descuido virou tragédia. - disse o Tenente, consolando o jovem Canoas.

- Ele vai ficar preso Tenente? - perguntou Canoas.

- Vai, tudo indica que ele vai pegar um bom tempo.

- Coitado!- exclamou Canoas.

Pagina 11 21.06.2002 nome Meu Amor Canoas

Meu pensamento é a continuação do sofrimento do meu corpo, estranho castigo, razão do meu eterno cansaço. Os pensamentos são estranhos, leves, impossíveis de ser controlados, como nós coitados soldados. Armados apoderam-se até dos meus sonhos, viro para todos os lados, inútil esperança de repouso. Sou alguém que não descansa talvez um derrotado, posso ver Dalmo cantando na esquina, sorrindo, mentindo, esquineiro falecido. Tudo é possível para homens armados, até seus sonhos podem ser torturados, controlados. Devo ter dormido, sorrisos amigos, entes queridos. O calor da cama é gostoso, a posição fetal é automática, estranha plástica, prisão invisível de quem não se libertou. O mundo esta calado, nada esta no seu lugar, tudo parece no ar, por acontecer, levanto para ver o amanhecer, mas não saio da cama. Meu castigo é tão cruel, tão severo, virando de um lado para o outro, viso confundir meus pensamentos, meu sonho é dormir, dormir escondido, um sono fugido. Fugir de si mesmo é fugir da vida. Ou não ter se encontrado, a vida lhe causa a confusa sensação de estar fugindo, quando na verdade você esta perseguindo. Sua busca é dolorosa.

Canoas acordou pensando que a sobrevivência do seu amigo na Base poderia estar ligada a sua sobrevivência. Sua história com a morte poderia ser aquela. Tudo que ele pensava acontecer com ele, podia ser aquele acontecimento. Um fato tão forte poderia ser pressentido. Indo mais além em seus pensamentos, aquela bala poderia ser para ele, o destino poderia ter sido mudado.

Canoas resolveu telefonar para o hospital da aeronáutica para saber notícias de seu colega. Descobriu que ele estava ainda melhor, tudo indicava pela sua cura. Canoas tinha recebido folga, queria aproveitar bem o dia, não desejava ficar a mercê dos seus pensamentos. Na verdade por mais forte que fosse o desejo de Canoas em aproveitar o dia, ele logo descobriria não haver muito para fazer. Acostumado com seus pensamentos, Canoas não teria tanta facilidade em se livrar deles. Canoas pensava muito em Deus, agora ao tomar seu café, este era seu pensamento.

- Diga prá mim Senhor, como teve

Tanto amor e por que te causaram

Tanta dor preciso saber para compreender

Tudo que acontece e continuar minha prece.

- Diga prá mim Senhor, como ser Cristão se

Todos querem magoar seu irmão, ajuda ao

Teu filho que resiste a todo o mal que

Existe, não deixa que tudo isto o desacredite.

- Diga pré mim Senhor, porque tanto orgulho,

Tanta confusão, alarde e barulho, só pregaste

A paz, a oração, diga prá mim porque ninguém

De uma bondade é capaz, diga para

Mim que um dia contigo vou estar.

Canoas só percebeu que estava chorando quando viu seu café ganhar algumas lágrimas, Neste momento todo o sofrimento da noite anterior parecia estar sendo colocado para fora. Seu choro era continuo, não dava para segurar, junto vinha à visão do amigo caindo ao chão por um tiro, um tiro de morte, ou de salvação? Disparado num momento de paz, de amizade, quem sabe seria um bem no final de tudo. Canoas não queria continuar com a mesma vida, no entanto um peso muito grande tomava conta do seu corpo. Canoas queria se derreter, tornar-se um líquido, desta forma poderia sumir. Resolveu dar um passeio pelo dique, foi costeando o valão, atravessou a granja, indo até as margens do rio Gravataí. O sol era seu principal motivador neste passeio, ele parecia receber energia do astro rei, sentia-se como se estivesse sendo recarregado.

Pagina 12 em 25.06.2002 nome Meu Amor Canoas

O frio era intenso, Canoas olhou para as águas do Rio Gravataí o nível estava alto, havia muita correnteza. Aquele era um lugar de muitas lembranças, não foram poucas as vezes que ali veio pescar.

- Vamos embora Canoas – disse Breno em voz alta.

Os meninos preparavam suas coisas, por último as fieiras de peixes, todos carregavam a sua com orgulho.

- Vietnam – gritou Rubens correndo em direção a um monte de bosta de cavalo. A bosta estava completamente seca, todos jogaram às coisas no chão e partiam para a batalha.

- Vietcam – falou Paraguaio todo enrolado – Foi o que faltava para o grupo morrer de rir e acentuar a batalha. Todos começaram a gritar “vietcam”.

- Toma! – a bosta atirada por Borregar acertou no rosto de Canoas em cheio espadifando-se em pequenos pedaços.

- Vietcam – gritaram todos rindo muito da ira de Canoas.

Corriam em direção aos montes de bosta de cavalo para se municiarem, às vezes chegavam juntos e caiam sobre o monte, estragando assim a preciosa munição. A brincadeira simples e improvisada fazia a felicidade daqueles meninos, não imaginavam o significado da guerra.

- Não vale – disse Enio furioso.

- Não tem mais seca – retruco Breno que lhe atirara uma bosta que não estava seca, o grupo de meninos achou tanta graça que a brincadeira acabou por falta de combatentes, todos rolavam na grama de tanto rir.

Canoas se lembrava dessa brincadeira, não havia um só dia que ao cruzarem aquela parte da granja ele e seus amigos não viravam soldados.

O sol, às lembranças parecia energizar Canoas. Recordando essas coisas do seu tempo de criança Canoas desconfiou que a vida estivesse enganada a seu respeito. Ele era tão novo, não parecia estar no tempo de viver este tipo de conflito. O tempo parecia estar desobedecendo algum padrão e alterava seu destino. Sentia-se vítima precoce dos males da vida. Às lembranças eram tão presentes por achar que não teria futuro. Se o tempo não tivesse passado ele ainda seria um soldado das alegres batalhas das bostas de cavalo.

Canoas voltou para casa curtindo cada passo dado, tudo estava como ele gostava, ele estava onde gostava.

- Vamos para o Bar? – perguntou Breno dando m abraço em Canoas.

- Hoje não – respondeu Canoas oferecendo uma cadeira para Breno.

- Não! – exclamou ele surpreso, fazendo cara feia.

- Ontem eu estava de serviço na Base, quando fui render o cara, outro acertou um tiro no companheiro.

- Esta brincando – disse Breno incrédulo.

- Foi horrível – disse Canoas colocando as duas mãos no rosto, como que desejando apagar aquela lembrança.

- Ele foi descarregar a arma, fez isso com ela apontada para a barriga do amigo, estava conversando com ele, derrepente a arma cuspiu fogo, a roupa dele queimou- disse Canoas olhando para o teto.

- Ele morreu? – perguntou Breno em voz baixa.

-Sobreviveu, ficou sem um pulmão, liguei para o hospital disseram que ele estava bem – disse Canoas com ar de preocupação.

- Esse cara nasceu de novo – disse Breno balançando a cabeça de maneira afirmativa.

Pagina 13 26.06.2002 nome Meu Amor Canoas

Canoas acompanhou Breno até a frente da sua casa, o amigo tinha sentido toda tristeza de Canoas, sabia que era melhor deixa-lo só. Os dois não esperavam encontrar com Arthur, justamente na hora em que estavam se despedindo. Arthur era um bêbado, passava o dia inteiro bebendo, protagonizava as cenas mais engraçadas que os dois já viram. Arthur não era violento, muito pelo contrário, fato este que o levava a ser constantemente agredido.

- E aí Canoas - disse Arthur mal conseguindo parar em pé, cambaleando buscou apoio em Canoas. Muitas e muitas vezes Canoas tinha levado Arthur para casa, por isto o respeito.

- Vou te levar até sua casa - disse Canoas virando o rosto para o lado, o bafo de cachaça era muito grande.

Arthur sacudiu a cabeça negativamente, ele gostava de trovar, tinha sempre o mesmo verso, e o dizia como se fosse pela primeira vez.

- Eu, sou Pedro Arthur, com "p" se escreve presunto, com "p" se escreve um nome que as mulheres gostam muito, largou o ombro de Canoas e fez gestos obscenos, intimou Breno querendo ver seu verso rebatido, como não obteve resposta largou outro verso.

- A resposta tu não vai dá, porque eu vou te dar um corridão como o cão deu no preá - Novamente riu muito, tentou fazer um quatro, gostava de fazer isto, queria mostrar que não estava bêbado faziam, sempre caía, não foi diferente desta vez. As crianças sempre o cair, pediam para que fizesse um quatro, ele sempre parava no chão. Canoas lhe estendeu a mão, mas ele não queria levantar.

- Vamos amigo Arthur, tu sabes que eu não gosto de ver você caído no chão - disse Canoas tentando levantar Arthur, agora com as duas mãos e fazendo muita força. Arthur repetia muito seu primeiro verso, gritava, queria ser ouvido.

- Eu vou me sentar ali dentro do valo, lembra como eu fiquei ali um dia inteiro, só saí quando o grande Canoas me tirou - disse Arthur fazendo força para erguer-se, olhava com determinação para o valo. As ruas do bairro Niterói não tinham esgoto, eram a céu aberto, só valos para escoar a água. Arthur estava fazendo referencia a um dia de verão, um dia muito quente. Quebraram um cano de água, e ele sentou-se do lado e ficou ali cantando, mexendo com todo mundo que passava, só saiu quando Canoas lhe pediu. Muitos tentaram tira-lo dali naquele dia, mas ele só cedeu aos apelos de Canoas.

- Se fosse verão eu deixava, mas com todo este frio vais ficar doente, não vou deixar - disse Canoas segurando o bêbado com vigor.

- Calma, o valo esta cheio, lembra como teu compadre morreu - disse Canoas quase que murmurando ao seu ouvido. As palavras embora ditas de forma tão mansas tiveram um efeito avassalador em Arthur. Ele começou a chorar, abraçou-se ao amigo, pediu de forma também muito doce para ser levado para casa. A sua casa não era longe de casa de Canoas, este caminhou ao lado do amigo, amparando seu andar cambaleante, não se ouviu mais a voz do homem que só bebia. Canoas tinha conseguindo acalmar o espírito atormentado daquele homem, lembrando a morte de seu compadre, que era seu parceiro na bebida. O pobre homem tinha se afogado no valão que ia até a casa de bombas de Niterói. Era verão, ele muito bêbado rolou pela barranca, somente sua cabeça ficou dentro da água, foi encontrado morto pêlos seus filhos, ele morava na beira do valão, foi muito triste. Arthur passou a beber ainda mais depois deste acontecimento. Breno foi para o Bar. Canoas ajudou a mãe de Arthur, uma boa senhora, que muito sofria com tudo aquilo, colocou o anestesiado na cama.

Pagina 14 26.06.2002 nome Meu Amor Canoas

Havia ali, muitos homens que acharam na bebida uma solução para os problemas que os afligiam. Canoas sofria com a situação deles, sentiam-se bem cada vez que ajudava, sabia, porém que eles não iriam se recuperar, a bebida era tudo que lhes importava.

Canoas dormiu pensando e rezando para que o amigo atingido pelo disparo não morresse.

O expediente teve seu início como de costume, logo em seguida Canoas buscou informações sobre o estado de saúde do ferido. Ele estava bem, seu quadro era estável. Ao passar pelo pátio central da companhia de infantaria, Canoas notou um movimento diferente. Havia dois homens vestidos a paisana, eles estavam sendo o centro das atenções, uma grande e bela moto estava exposta e dividia a atenção dos soldados. Canoas aproximou-se para ver o que estava acontecendo ali. Os dois homens eram vendedores, explicavam para todos que qualquer um ali poderia adquirir aquela moto. Havia sido feito um convênio com as forças armadas, os valores das mensalidades seriam descontados direto da folha de pagamento, era só preencher o contrato e ser dono daquela maravilha. Canoas era apaixonado por moto. Ficou alguns momentos ouvindo como que incrédulo, quase sem acreditar que poderiaser dono daquela máquina. A moto era uma RD 350, cintilava e fez Canoas acordar para fazer seu contrato. Canoas foi para sua sessão, não parou mais de pensar na sua moto. Logo ele se lembrou de um problema para ter seu sonho realizado, seu pedido de baixa através do artigo "150", era preciso caçá-lo, teria de ficar mais um ano servindo. Isto não seria nada diante do prazer que teria com sua RD. Apresou-se em falar com seu Tenente, este o tranqüilizou dizendo já saber que seu pedido tinha sido indeferido, eles estavam precisando de gente. Canoas retirou-se feliz, tudo estava dando certo para ele.

- Preciso ter o que quero agora,

Não posso esperar minha juventude

Ir embora. Preciso ter o que quero agora

- Dizem que não aceito o que me

Oferecem, mas é tão pouco que

Não me faz falta, preciso ter o

Quero agora, agora.

- Do jeito que o mundo se comporta,

Não vou alguém justo encontrar, preciso

Ter o que quero agora, minha juventude a cada dia

Que passa, insiste em ir embora, sinto

Que preciso ter o que quero agora.

Canoas estava feliz, era bom ter momentos de alegria, sentir alegria era tão gostoso. Porém ele estava preocupado com seu depoimento, Canoas estava escalado para comparecer ao prédio do comando e depor de maneira oficial sobre o acidente ocorrido durante seu turno de serviço. Tecnicamente já era seu turno quando ocorreu o disparo.

- Sente-se soldado - disse o tenente encarregado de apurar os fatos daquela.

- Obrigado - disse Canoas sentando-se e esfregando as mãos nervosamente.

- Você disse ao oficial do dia que viu o soldado que disparou fazer isto durante a verificação, ou no momento que este estava descarregando a arma? - perguntou o tenente lendo o relatório, segurando a folha anterior, para que Canoas não visse a página principal.

- No momento da verificação - respondeu Canoas, triste com sua resposta, pois ele sabia que estava ferrando o autor do disparo. Baixou a cabeça olhando para suas botas. Ele precisava falar a verdade.

- Conte tudo novamente - disse o tenente largando a folha e recostando-se na cadeira, fitando Canoas nos olhos.

Pagina 15 escrito 27.06.2002 nome Meu Amor Canoas

Um mês depois Canoas é chamado para receber sua moto. Durante este tempo ele tinha aprendido a pilotar com um amigo que tinha uma Harley Davidson 125, todos o chamavam de Metal. O rapaz era maluco por aquela moto, vivia em razão do seu funcionamento. Era complicado manter a máquina importada funcionando, no caso das peças ele recorria a São Paulo, mecânico ele tornara-se um dos bons. Canoas foi um bom aluno, Metal o tinha dado como pronto. Apesar deste fato, Canoas convidou Metal para buscar sua moto, havia o embaraço da carteira de habilitação, poderia ser uma péssima idéia vir de Porto Alegre pilotando sem habilitação. Metal mostrou toda sua habilidade no transito intenso da grande cidade, Canoas vinha apavorado na carona, sua moto era muito potente, Metal pilotava com perfeição. O ronco do motor parecia música aos ouvidos de Canoas, seu prazer, no entanto era diminuído pelo medo que sentia a cada curva, pelo pavor da velocidade nas retas, as freadas bruscas lhe dando a sen

Sação que iriam se despedaçar na traseira de algum carro. A velocidade deu a Canoas a certeza que sua vida mudaria sua sensação de prazer com ela eram impressionantes, os dois corriam pela BR 116 em direção à cidade de Canoas, não, usavam capacetes, este sim parecia ser o verdadeiro sentimento de liberdade, e ele estava associado à vida. Canoas nem acreditava que aquilo estivesse acontecendo, em poucos minutos estaria no bairro Niterói, todos ficariam babando por aquela moto, poucos acreditaram quando ele disse que logo estaria recebendo esta maravilha. Também estava vivendo um momento de conquista pessoal muito grande, afinal de contas tratava-se de sua primeira grande realização, pois vista pelo lado financeiro era uma façanha. A conquista só foi possível por causa da sua condição de militar, os financiadores não corriam nenhum risco quando ao pagamento, Canoas sentia-se importante, poucas vezes vivera tantas coisas boas. Metal gritava, cantava algumas coisas em inglês, que Canoas não conseguia entender, com a aceleração da moto ele fazia parceria, sua batuta era o acelerador.

- Aí esta Canoas - disse Metal.

- Você quer pilotar agora? - perguntou diminuindo para escutar a resposta de Canoas.

- Não Metal - respondeu Canoas, vamos até sua casa acrescentou.

- Boa idéia - disse Metal, pensando ser bom ficar em casa, já estava com saudades da sua Harley.

Canoas subiu nervosamente na sua RD 350, Metal desligara o motor, queria dar a Canoas o gostinho de bater o arranque, e sentir a fala do potente motor. Canoas pressionou o pequeno botão com o dedo polegar, levou um susto ao escutar o ronco do motoro, não deixou, porém o amigo perceber baixou a marcha e acelerou lentamente, fazendo a moto mexer-se devagar, colocou mais força no acelerador equilibrando-se no cavalo de aço, mostrou habilidade, Metal ficou orgulhoso. Canoas não estava se reconhecendo, experimentar um novo sentimento o estava confundindo, afinal de contas ele tinha motivos para sentir-se outro, precisava ser outro.

- É assim mesmo- gritou Metal, encostando sua moto ao lado de Canoas, ele resolveu acompanhar o amigo, sentiu uma vontade incontrolável de fazer isto, agora estava feliz.

- Estou sentindo a máquina, como tu me ensinaste - disse Canoas inclinando o corpo levemente para o lado de Metal.

- Assim tu vai entrar em sintonia com ela, desta maneira ela vai se tornar parte de você - disse Metal, fazendo sinais com a mão direita, parecendo querer fundir o tripulante e a máquina num só.

- Sem querer exagerar Metal, é assim que estou me sentindo, parece que estou flutuando, pareço estar andando sozinho - disse Canoas em voz bem alta, quase gritando, mostrando viver aquilo que dizia. Metal ficou impressionado com a maneira convicta daquela resposta, havia grande sentimento nela e sentimento verdadeiro.

- Nunca se esqueça de ser assim, de andar assim, não queira nunca ser maior que sua máquina - disse Metal fazendo um sinal de até logo, retornando para a esquerda, deixando Canoas seguir só.

O RESTANTE ESTA PUBLICADO NO E-LIVROS......

canoas
Enviado por canoas em 03/11/2009
Reeditado em 03/11/2009
Código do texto: T1902943