Diários da Morte 5.

Transportar almas demanda organização. Morre gente em todos os lugares, a toda hora. Seria irracional imaginar que um único ser seja responsável por isso. Então milhares como eu estão espalhadas sobre a terra aguardando que seus livros revelem quem será o próximo morto. Na turma em que fui preparada, éramos cinqüenta, e não encontrei nenhuma outra colega, pois quando nos encaminham para determinado setor, somos as únicas. Jamais uma interferirá no serviço da outra.

Gosto quando uma página se enche de uma única vez. É sinal que o chefe quer algo mais abrangente, e mesmo que sejam vidas desconexas, se unirão em suas histórias, justo no derradeiro dia final. Ou quem sabe no princípio de tudo, já que até então, sem sabermos que este lado realmente existe, não passamos de ignorantes, que embora tenham fé não sabe nada da vida, da alma, e de seus mistérios.

Quando despertei entre as névoas num lugar ao ermo, onde apenas um velho barqueiro disse-me que sem a passagem não poderia continuar, dando margem para que uma senhora mais velha que o barqueiro levasse-me para uma velha cabana, onde outras também estavam perplexas, descobri que tudo que acreditei em vida, era irrelevante, pois algo tão misterioso quanto à própria vida se descerrou bem na minha frente. Senti-me num carrossel contínuo, onde nem mesmo a morte respondeu a algumas perguntas, como a crucial, para onde vamos? Como poderia ter tais respostas, se continuava a andar, e ainda sem saber para onde, mesmo morta da Silva.

Mas creio que isso são divagações de quem tem um dia menos tenso, pois afinal, meu livro amanheceu com a página cheia. Quarenta e oito nomes, todos passageiros do ônibus da linha 731. Minha sorte que a estrada é sinuosa, e as ribanceiras profundas. Só tenho de proteger o motorista, ele não está na lista, são caprichos do chefe que vez por outra gosta de chamar a atenção para fatos que não podemos explicar. Eu prefiro crer mesmo que isto é uma maneira, ou dele nos afagar dizendo que não depende apenas de nós, ou um jeito de nos expressar a magnitude de seu poder sobre cada alma vivente.

Seja como for, não me interessa, amanhã os jornais dirão que quarenta e oito morreram, e que milagrosamente apenas o motorista sobreviveu. Sou perfeccionista, e também não gosto de desagradar o chefe. Sei lá, vá que ele aumente as páginas do meu livro.

Douglas Eralldo
Enviado por Douglas Eralldo em 05/03/2010
Código do texto: T2121079
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