Carioca

O mesmo dia ensolarado que assolava a região fluminense, também alcançava a parte oeste da cidade, mais precisamente a Barra da Tijuca.

Sentindo o forte calor catalisado pelo seu acinzentado terno, um homem de corpo esguio e de tonalidade esbranquiçada segue pelos corredores externos de uma luxuosa mansão, situada entre os inúmeros condomínios locais. O homem representava posse e era notório seu poder aquisitivo, trajava o que existia de melhor. O cabelo cacheado loiro estava devidamente podado, e contrastava com a armação prateada do quadriculado óculos. Abusando deste mesmo olhar espelhado, mirou atento a chegada de outro singular sujeito bem mais alto e de feições imponentes, que passeando vagarosamente, compunha extravagante cena devido aos gritos suplicantes ao fundo.

Independente da influência demonstrada, o descarnado cidadão conhecido como Breno Hélio agacha-se em forma de respeito, beija a ensangüentada mão de seu aparente superior e resignado assume os erros de uma antiga missão. Um tanto contrariado, o mais influente, prontamente conhecido como Don Salvatore Crossifixicio, revela rubras expressões, descontente informa que em dez anos de atuação poucas falhas poderiam ser apontadas e que era inadmissível um erro tão grotesco quanto este, uma vez que já havia recebido suas exigências.

Assumindo novamente a culpa do ato falho, Breno pede perdão a seu líder e justifica-se alegando que escolheu o melhor de todos os pistoleiros da região e que jamais esperaria algo tão desonroso de um profissional deveras qualificado. Utilizando-se de empatia, Don Salvatore auxilia o antigo funcionário a reerguer-se, porém firme alerta-o que caso não reverta à situação em menos de vinte e quatro horas, deverá pagar a máxima punição servindo de alimento para os porcos. Sobressaltado, todavia mantendo a fleuma do mais impassível assassino, Breno agradece o voto de confiança, beija a face de seu ilustre Don e ratifica que resolverá a questão em tempo. Contente pela confiança de seu subordinado, o imenso Don revela o quanto aprecia a antiga amizade, entretanto cambiando o semblante informa que será imane a lástima de eliminá-lo caso venha a falhar novamente. Incomodado pelas constantes ameaças, todavia acatando respeitosamente as ordens sem qualquer réplica, Breno opta elegantemente por retirar-se e irritadiço segue a ágeis passos.

O caminho para sua residência foi demorado, os segundos persistiam em lutar para não deixarem de existir e com isso traziam memórias do tempo passado, tempo esse escrito com sangue, podendo até se dizer que a única cor que contrastava com as verdinhas habituais era o escarlate tão abundante quanto. Don Salvatore era um típico boa praça, muitas vezes visto como bonachão pela sociedade, como o próprio dizia, não passava de sua pele de cordeiro social, já que este mesmo filantropo e benevolente cidadão, sobre suas costas sustentava centenas de crimes até hoje insolucionáveis. Breno tinha ciência de que não poderia falhar novamente, sabia que somente permaneceu vivo pelo apreço de seu líder e que não resistiria a um segundo ato falho, entretanto com a mesma sabedoria que processava a piedade deste, também maquinava suas futuras ações e certo de que não falharia objetivou estrategicamente suas próximas ações. Seguro, pegou o telefone móvel indetectável e ligou para o agente Souza, um corrupto membro da policia federal que há anos prestava serviços para a Família. Prático, Breno Hélio solicitou todos os arquivos referentes à nova investida do assassino que tanto o atormentava, inicialmente recebeu uma negativa, pois Souza não queria se queimar com a corporação, tendo em vista que já respondia a um processo administrativo. Mantendo a mesma postura inquiridora, Breno explana que era uma exigência do Capo de Tutti i Capi (Chefão), apreensivo, porém ciente das penalidades a que poderia ser submetido ao desrespeitar Don Salvatore, Souza alerta ao ameaçado mafioso que em breve mandaria as informações via rede virtual.

Satisfeito pelo êxito inicial de sua missão e pelo blefe bem posto, o articulado criminoso prossegue com as ligações e bastante sucinto, exige a presença do também habilidoso soldado Shotz, que sem balbuciar uma palavra sequer alerta que em breve o estará esperando na entrada da alameda. Com o singelo telefone em punhos, o impiedoso sujeito de olhar reflexivo abre seu laptop, efetua uma rápida busca, imprime o conteúdo e segue velozmente em direção ao portão principal do condomínio.

A vespertina consome o país em sua totalidade, o brilho do sol não era tão forte, as estrelas buscavam surgir junto ao quarto minguante que teimoso já aparecia. Um dia comum rotineiro na vida de Igor Fogliossi. Há essa hora estava guiando seu automóvel com suas duas belas crianças no banco traseiro, o dia de trabalho não foi tão cansativo, mas buscava esticar as pernas e assistir a alienante programação global, de pouco lhe importava o conteúdo, somente queria comer seu almoço requentado que chamava de janta e curtir mais uma noite com sua esposa e filhos. As crianças eram animadas e cantavam pelo caminho todo quando calaram-se repentinamente, e logo após gritam desesperadas. Era a alegria de ver a própria casa, que independente da mesma aparição diária sempre se tornava o momento mais desejado. Rindo da inocência de suas crianças, Igor estaciona o popular veículo, pede para que estas abram a porta e sigam para o banho.

Igor não havia entrado, tinha visualizado algo perturbador, um prateado veículo, na verdade majestosa Mercedes prata que nem um pouco discreta convocava a atenção dos demais transeuntes. Suas pernas estremeceram, sabia de quem se tratava ou pelo menos a quem respondia tais bens de consumo, por um breve instante esqueceu-se do pavor e lembrou-se de suas crianças, então em disparada correu o extenso jardim, atravessou a porta com uma solada estúpida e pasmado encontrou-se ao ver suas duas pequenas crias brincando com o temível Breno Hélio. Não sabia o que fazer, há meses não andava armado, sentia desespero ao ver seus amados filhos sendo tocados por aquela besta apocalíptica, todavia sabia que deveria respeitar tal cidadão, uma vez que trabalhara para ele durante anos.

Pressentindo o temor de seu anfitrião, Breno Hélio avisa para as crianças obedecerem seu pai e seguirem para o banho, em seguida oferta balas para as petizes que ágeis correm em direção ao banheiro. Sorrindo, o malévolo cidadão emagrecido aproxima-se de Igor e alerta que as balas não estão envenenadas e que não veio para retaliações e sim para esclarecer dúvidas. Menos alarmado, no entanto ainda pressentindo algo ruim, Igor senta-se no sofá, segura a pistola ocultada e com os olhos permite que seu visitante comece o perigoso interrogatório. Prático como de práxis, Breno adverte que só precisa de uma resposta e de imediato questiona a localização do irmão deste. Igor por instantes pensou em reagir a invasão, depois lembrou-se que não seria prudente uma vez que respondia por sua família e desistiu de vez quando sentiu o gélido cano municiado por Shotz encostar em sua nuca.

Mantendo a elegante postura, Breno adverte ao desesperado homem que não seria prudente uma reação tão estúpida, pois inocentes crianças não precisam pagar pelas tolices de velhos estúpidos. Ainda falando autoritariamente o perigoso invasor aproxima-se do rendido anfitrião e questiona novamente a localização do fraterno deste. Temendo pela vida de suas crianças, Igor não pensa duas vezes e dedura a exata localização de seu amado irmão. Rindo da situação Shotz comenta que a vida realmente é engraçada, sendo mais válido trocar um parceiro de vida por duas pessoas que ele não conhece nem há seis anos. Achando a piada estúpida, Hélio balança sua quadriculada cabeça negativamente, ordena que o soldado se cale, agradece ao interrogado por sua solicitude e depois informa que seria agradável que este limpe o sangue da cozinha e contrate uma nova empregada. Alarmado Igor levanta-se, corre até o cômodo e aliviado percebe que era uma brincadeira de mau gosto ao virar-se e não avistar mais nenhum dos invasores.

O trajeto não era tão distante, as informações estavam corretas, o criminoso realmente havia se mudado para o bairro de Santa Tereza buscando paz e sossego, algo que para Hélio terminaria em breve.

A noite caiu sobre os bairros cariocas, a prateada Mercedes havia sido cambiada por um carro popular, tinha certeza que Igor nada falaria, pois a vida de sua família a esta altura do campeonato valia mais que a do próprio irmão, valores interessantes, mas justificáveis diante de nossa cultura cristão-ocidental. Demorou por volta de três horas até encontrar a residência certa, permaneceu discreto e assim adentrou as proximidades da localidade. Não havia ninguém no ambiente, somente vizinhos fofoqueiros que por pouco quase colocaram seu plano a perder. Shotz neste instante investigava a casa, certamente havia revirado repletamente o ambiente em busca de informações pessoais da futura vítima, não existia a necessidade de ocultar-se perante o pistoleiro, na verdade serviria de aviso para que este tente se retratar das possíveis falhas.

Pensou algumas vezes, não sabia se realmente deveria executar o antigo pistoleiro logo de cara, o homem durante anos cumpriu de maneira honrada com os compromissos da Família e no mínimo deveria receber o direito de resposta, então desta maneira premeditadamente Hélio trazia consigo carta lacrada, onde continha seu número de contato para acertos, também constava o tempo limite de oito horas caso contrário seria necessária a máxima punição. A missão estava completa, os dados necessários foram colhidos e a carta seria devidamente implantada, mas algo estava errado, Shotz não havia voltado, talvez estivesse se escondendo, mas de quem? Quando abismado o exausto Hélio avista o pistoleiro procurado discutindo com uma mulher que parecia ser sua namorada. O temor de mais uma falha tenta consumi-lo ao assistir o tenso sujeito adentrar a invadida residência, pelo volume de sua cintura era notório que portava uma pistola , talvez fosse o precoce fim de Shotz, infeliz pensamento subestimador uma vez que ágil como um leopardo, Fernando Shotz segue em disparada para os fundos da região ao som de vidros estilhaçados.

O esporro das vidraças destruídas afastou o mafioso junto a seu automóvel popular, Fogliossi ainda mantinha a astúcia da vida criminosa e esperto clamou a atenção da pacata vizinhança utlizando-se deles como um possível escudo ou meras testemunhas, também maroto, Shotz não deu tempo para o azar e antes dos primeiros curiosos surgirem, já havia transpassado a mureta traseira e contando com a competência do vivido aliado adentrou o imperceptível veículo sumindo dentre a penumbra. Hélio a essa altura do campeonato não mais se importava, o aviso foi dado e o pistoleiro Fogliossi teria até as dez horas do dia seguinte para resolver seus demais problemas, senão figuraria entre as incontáveis vítimas do caos urbano carioca.

Continua...

*OBS: Aluga-se, Assassino e Carioca, respectivamente pertencem ao mesmo arco, todavia são histórias independentes que compartilharão do mesmo final em única edição.

Vittório Torry
Enviado por Vittório Torry em 05/03/2010
Reeditado em 05/07/2010
Código do texto: T2122186
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2010. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.