GERALDO NÃO É BANDIDO!

Jantariam a luz de velas, não fosse Geraldo furtivamente romper o lacre posto junto ao contador. O barulho de som alto da televisão de quatorze polegadas parecia não incomodar a família. Não havia ninguém disposto a falar, ou a ouvir. Eles conheciam o roteiro diário. Conversas ou falas esperançosas já haviam se tornado supérflua.

Geraldo tinha apenas trinta e dois anos. Mas os vincos em sua testa cabisbaixa lhe davam alguns anos de acréscimo. Ele movia seu garfo de inox com maledicência, entre os grãos de arroz e feijão por onde uma esparsa porção de carne moída de segunda marcava a presença das proteínas. A cada meio minuto ele levava uma garfada à boca. Sem muita vontade é bem verdade.

Seu olhar estava distante. Não que isso fosse atípico, mas naquela noite especificamente, Maria poderia jurar que seu esposo não estava à mesa. Estavam sentados um frente ao outro. Uma das crianças questionou se havia repetição. “Não”. Foi á resposta seca e dura dela. Geraldo mantinha a indiferença. Isso lhe irritava. Ela não queria dizer aquela resposta.

O homem bebericou um pouco de água gelada. Isto pelo menos estava garantido até o dia quinze. “Nossa hoje é dia dez”. Balbuciou. Maria não o compreendeu, perguntou-lhe uma, duas, três vezes, mas Geraldo não lhe respondeu. Ele voltara ao seu estado catatônico, e os poucos metros de tábua que os separavam mais se assemelhava com a vasta extensão de terra entre o oceano atlântico e pacífico.

Sem falar nada, ele levantou-se. Ela, mesmo sem ânimo ainda teria de lavar as louças. O som da torneira enxurrando água sobre os pratos gordurosos lhe permitia sonhar. Assoviava uma canção sertaneja, e pensava como podia ter sido diferente. Quando ele chegou ao quarto, depois de levar as crianças ao beliche, jogou-se cansada sob os lençóis amarrotados. Há meses ela dizia para Geraldo que precisava trocá-los. Pensou em tocar no assunto, mas desistiu. Não queria brigar mais. Até mesmo das discussões estava cansada.

Duas ou três vezes ela olhou para seu homem. Quieto. Ele não dormia. Vislumbrava na luz tênue de um abajur de porcelana comprado do camelódromo do centro, uma pilha de papéis. As letras miúdas traziam números, e mais números, a frente de cada um sempre o maldito e repugnante sinal de negativo. Maria podia jurar que se encontrasse o matemático que inventou tal sinal, o mataria ali mesmo.

No entanto os números eram de seus problemas, os menores. Quinze anos de casamento era experiência suficiente para conhecer Geraldo. Seu olhar vazio era princípio de más notícias. Assim foi quando julgando injustiçado demitiu-se de uma grande multinacional. Da mesma forma, quando resolveu a fechar o pequeno negócio, justo quando ela pensava que poderia começar a dar-lhe resultados. E cada olhar daqueles, cem passos para trás era dado em suas vidas. Porém ela não via mais sentido, não havia mais para onde regredir.

A tensão e o medo lhe seqüestraram o sono até o meio da madrugada. Sua sorte era que as crianças iam para escola apenas a tarde. Quando os braços de Morfeu aninharam-na, Geraldo despertou para um novo dia. Glorioso ele desejava.

Rabiscou em seu cérebro dezenas de variáveis, centenas de possibilidades, mas as portas lhe pareciam sempre bem fechadas. O ultimo foi de consciência se fora junto aos últimos trocados, resquícios da venda de uma televisão. Geraldo era homem firme, tradicional, e sabia que o sustento da família dependia única e exclusivamente, e até então ele falhara.

Na fruteira um pão velho foi seu café da manhã. A massa dura desceu arranhando-lhe a goela, que amenizava com uma xícara de café fraco. Ligou a TV, olhou os noticiários da manhã. “Talvez eu apareça nos jornais da tarde”. Pensou. Foi até uma gaveta da cômoda, pé sobre pé. Mesmo que fizesse barulho Maria não despertaria. Ninguém lhe impediria tal insanidade. Eram nove horas quando partiu para o centro.

A caminhada levou quarenta minutos. A cidade não era muito grande, mas naquele horário, e naquele dia, o fluxo era intenso, principalmente por causa dos aposentados. Dia de pagamento. Geraldo conferiu o artefato surrupiado da cômoda. Um tresoitão, com oito balas. Não queria usar.

Entrou no auto-atendimento do banco, e com o revólver envolto a uma sacola de supermercado como se recentemente tivesse feito compras, pôs-lhe na bandeja de objetos. Se o vigia o conhecesse melhor saberia que dificilmente Geraldo portaria uma sacola de compras, muito menos iria ao banco. Ninguém desconfiou.

Atravessou a porta giratória, e pegou a sacola do outro lado. Com o cano do berro na cabeça de um dos guardas anunciou: - É um assalto. Quem pode saiu correndo. Outros se deitaram no chão, e uma senhora gorda chegou a urinar no piso branco. Geraldo mais veloz que uma gazela, percorreu caixa por caixa, e foi até o cofre e pôs todo o dinheiro que cabia na sacola plástica. Tirou as armas dos vigias, e iniciou sua fuga, desvencilhando-se por primeiro da porta giratória.

Correu para a rua, e o dia quente contrastou com o ar gélido e condicionado do interior da agência. Correria para casa, contar o dinheiro. Mas no primeiro passo na calçada sentiu uma ferroada ardida em sua perna. Suas carnes pareciam queimar. Ouviu um chispar cortando o ar, e logo sentiu a segunda ferroada. Nas costas. Seus olhos intumesceram. Contra sua vontade seus joelhos dobraram-se. Quando a terceira ferroada acertou-lhe a nuca, a névoa cobriu seu olhar. Sua ultima visão foram ás notas voando ao sabor do vento, as pernas de uma multidão que corriam com medo, e os sons cada vez mais distantes, de uma sirene. Geraldo havia descoberto tarde de mais que não era um bandido.

Douglas Eralldo
Enviado por Douglas Eralldo em 16/03/2010
Código do texto: T2141600
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