NÃO IREI CONTIGO, BARQUEIRO!

A cabeça ainda doía. Seus sentidos giravam como da última vez que tinha tomado cinco garrafas de whisky. Jean tinha pouco mais de trinta, e despertou totalmente perdido. Ao passo que seus olhos formavam uma imagem, menos ele reconhecia onde estava. Era noite. Absoluta e negra, onde nem mesmo o luar se atrevia chegar. Uma névoa que carregava um cheiro repugnante de fragmentos apodrecidos entranhava em seu nariz sensível. Apenas as linhas de árvores velhas e secas construíam a paisagem inóspita e arrepiante.

Jean Não tinha medo. Tantas foram ás vezes que ele invadiu cemitérios movido pelo álcool e pela vontade de desafiar, e provar para seus companheiros o tamanho de sua coragem. Não menos foram as confusões em que participou. Socos, pauladas, e até de tiro ele não se esquivava. Para alguns o homem tinha o corpo fechado, para outros era mais um que logo seria visitado pela qual ninguém gosta de esperar, a madame da capa preta, a senhora de ossos largos, e foice mais afiada que língua de político falastrão. A morte.

Mas como até ela temia ele, segundo o próprio Jean, não seria um pântano qualquer que o assustaria. Grogue, ele levantou-se. Deu os primeiros passos, ainda cambaleante, embora ele não lembrasse qual cachaça havia tomado. “Só pode ter sido a que matou a mãe do guarda.” Sem saber por qual motivo, lembrou-se deste velho ditado de Anastácio, seu pai. Era deste modo que o homem pedia seu martelinho.

O solo era fofo, e pegajoso. Jean tinha a sensação de estar caminhando nos esgotos subterrâneos. Talvez até fosse um lugar deste, secreto, onde as árvores, mais encurvadas que circuito de corrida, formavam um jardim sem vida. Vez por outra ele esfregava os olhos para ver se enxergava algum sinal de vida. Nada. Só ele estava perdido ali. “Quando eu pegar o desgraçado que me pôs aqui, ele vai preferir conversar com o diabo que comigo.” Murmurou

Depois de quinze minutos de caminhada no asqueroso deserto, ele viu-se impedido de seguir. Um lago de águas barrentas, donde emanava toda a névoa que cheirava a pêlo de cachorro molhado se apresentou como uma barreira a qual nem mesmo ele pudesse transpor. “Ou atravesso a nado, ou volto para trás. E aí?” Conversar com ele mesmo já começava o irritar. Sentou sobre uma pedra coberta de musgos para tirar um bando de sanguessugas que começa a invadir o território de suas coxas. Mas logo foi interrompido pelo som de um remo cortando a água fétida.

Descortinado pela névoa um pequeno barco, conduzido por um homem alto e esguio apareceu. Jean tinha por hábito num olhar mais rápido que cobrador de ônibus, reconhecer o perigo, ou qualquer fato novo ou ambiente que lhe surgisse. Uma simples olhadela foi o suficiente para antipatizar com o sujeito. “Essa gente que o queixo afina, não presta.” Esse inclusive foi o primeiro detalhe que ele percebeu, mas também não passaram em brancas nuvens os vincos profundos na testa, a cicatriz abaixo dos olhos, que por sinal eram esbugalhados, o nariz longilíneo e encurvado mirando os lábios finos e sem cor. Aliás, sua aparência hepática também não lhe era agradável.

Mas o que mais irritou Jean foi ás vestimentas do homem. Parecia fardamento de garçom de bordel de beira de estrada. Uma calça negra de pano barato, uma camisa larga de cor branca espremida por um colete preto, surrado e velho, completado por uma infalível gravata borboleta. Para compor toda a fisionomia o cavanhaque abastado e desleixado. O estranho remou até a margem. Ele estava de pé no barco, puxando para traz o pedaço de pau disforme que servia de remo.

Acordar perdido num lugar horrível daqueles, sem ter a mínima noção do que aconteceu, era uma boa pedida para ninguém se aproximar de Jean que permaneceu calado sentado sobre a pedra. No entanto o barqueiro parecia estar dispôs a ignorar o gênio do homem.

- Vamos senhor. O caminho é por aqui. Vou conduzi-lo até o outro lado. Diz o homem, muito mais para morto, do que para vivo, e proprietário de uma voz anazalada, e irritante.

- Quem lhe disse que quero ir por ali. Retrucou, iniciando uma conversa a contragosto.

- Na verdade é necessário, senhor. O aguardam do outro lado. O senhor está sendo esperado.

- Quem me espera?

- Isto não posso dizer-lhe.

- Então não me enche a paciência. Vou ficar aqui. Estes insetos desgraçado já me causaram irritação suficiente por hoje.

- Mas senhor! Estou aqui, exclusivamente para levá-lo para a outra margem.

- Ora, meu amigo, pra começar, nem te conheço, então perca suas esperanças. Não entro em barcos com esquisitos que nunca vi mais seco em toda vida.

- Pode me chamar pelo nome que quiser senhor. Desde que entre neste barco. É necessário. Não tem porque o senhor relutar tanto. Na verdade, nunca encontrei alguém que preferisse ficar deste lado da margem.

- Olha aqui amigo. Acordei tonto de um porre que nem me lembro como começou. Estou neste lugar imundo, fedido, e com um chato querendo que eu entre numa droga de barco. Sinceramente isso não vai dar certo.

- Mas senhor. Todos precisam cruzar o leito do lago. Do que o senhor tem medo?

- Pode ter certeza que não é de você.

- Então porque este relutância?

- Pela ultima vez. Não te conheço. Não estou a fim de conhecer. Não quero entrar nesta merda de barco, muito menos conhecer a porcaria que seja que me espere do outro lado. E se por acaso você tiver alguma coisa a ver com os motivos de estar aqui, é melhor remar depressa, pois não serei nem um pouco sutil com os palhaços que fizeram esta brincadeira.

- Não tenho nada a ver com os motivos de o senhor estar aqui. Na verdade, o senhor é responsável por estar onde está.

- Que bonito! Gosta de filosofia?

- Sarcástico como sempre. Não vê que continua errando como sempre errou?

- É melhor interrompermos esta conversa. Meu pai era gordo e careca, e já faz muito tempo que bateu as botas.

- Não se preocupe, logo o encontrará...

- Não fale, nem brinque com a minha família...

- Calma senhor! Desejo apenas que venha comigo.

- Se queria me irritar, conseguiu. Quer que eu vá contigo. Então me leve. Mais vai ter que ter braço pra isso. Disse Jean erguendo seu corpo e arregassando as mangas de sua camiseta vermelha. Fechou os punhos, e estava preparado para uma conversa mais íntima.

O barqueiro ainda tentou ponderar. Ela conhecia bem o gênio difícil de Jean, mesmo assim não estava preparado, pois levou o primeiro soco. Jean sabia. Ganha quem bate primeiro, e por isso um cruzado de direita deslocou o maxilar do barqueiro, e um segundo soco afundou-lhe as têmporas. O estranho ainda tentou lutar, mas levou tanta pancada, que caiu desmaiado. Jean jogou o corpo dentro do barco e empurrou-o para a outra margem.

Cansado da discussão, e daquele lugar, começou uma caminhada no sentido inverso. Quanto mais caminhava, mais distante de qualquer coisa parecia estar. Um cheiro de unha queimada ardia em suas narinas, e aos poucos urros e berros de terror começaram a invadir seus tímpanos suave e lentamente. Depois de sete dias caminhando, começava a cogitar ter sido melhor decisão acompanhar o barqueiro...

Douglas Eralldo
Enviado por Douglas Eralldo em 17/03/2010
Código do texto: T2143121
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