A FLORESTA DOS VIAJANTE

O orvalho úmido e doce impregnava os tênis de William David. Era um tênis velho, surrado a tal ponto de solicitar três vezes sua aposentadoria, que lhe foi negada por um tubo de “super-bonder”. As bermudas cargo e a camiseta promocional de um bazar qualquer não eram a melhor vestimenta para a floresta, repleta de espinhos e arbustos nada amistosos, cujo sadismo se revelava nos arranhões em suas pernas. Um tronco de madeira tão podre quanto á vida do viajante, serviu de assento para aquela alma mais perdida que cachorro cego em tiroteio no escuro. Era preciso descansar.

O homem estava cansado. Talvez por causa da juventude que considerava ter escapado naquele mesmo ano, sessenta dias antes de partir, vinte e quatro horas depois de seu trigésimo aniversário. No fatídico dia de sua partida, seus olhos estavam tão opacos quanto os dos peixes expostos na feira. Nem mesmo o bolo de chocolate preparado por sua jovem esposa, e mãe de seus três filhos lhe trouxeram ânimo. É preciso dizer que ela chorou. Triste pela desfeita, e pelo sacrifício feito para economizar para os ingredientes do bolo. Foram necessários onze dias de um corte de cinqüenta por cento na merenda das crianças.

_ Por que gastou?

_ Queria ver você feliz.

_ Quem em sã consciência comemora estar mais perto da morte.

_ Não fale bobagens, William. Você é jovem demais para pensar nisso.

_ Um jovem não teria tamanha coleção de fracassos, meu bem! Ele disse da forma que ela mais odiava que ele falasse, com ironia.

_ Eu só queria... Soluçando Margaret não conseguiu concluir a frase, e partiu para o banheiro a chorar. Era sua caverna de cristal, seu canto de pensamentos.

Sentado no tronco, William se recordava daquela noite. Sua modesta casa alugada – cujos aluguéis estavam atrasados – estava tão triste quanto nos dias anteriores. O quarto apertado lhe parecia mais opressor do que nunca, e seus pulmões davam mostras de não quererem mais o ar ao seu redor. Achou isto interessante, talvez fosse à solução, e aguardou deitado na cama. Talvez a morte lhe visitasse sem convite.

Os filhos pelo jeito já haviam desistido dele. Nenhum o procurou, ou por medo, ou por falta de carinho mesmo. Aquele homem há algum tempo definhava, e se distanciava cada vez mais da imagem de um pai. Crianças não gostam de pessoas rudes. Mas ele também não sentiu falta dos três pequenos. O forro de pinus estava mais interessante.

Por ironia pinheiros o rodeavam. Há mais de duas semanas entrara na floresta. De que forma? Isto era algo que não tinha a mínima resposta. Sua memória o levava apenas para a aurora que partiu, vestindo aquele mesmo tênis, carregando a mesma mochila com mais quatro camisetas, como a que vestia, brindes. Foi forro que lhe orientou partir. Os nós da madeira se embaralhavam em letras, e palavras sempre num mesmo sentido: sua família seria mais feliz sem ele.

As letras não lhe contaram da mágoa e das lágrimas de cada um deles. Abandonados uma pobreza que ele não tivera coragem de enfrentar. Saiu como um errante pelas estradas, e de carona em carona, foi para muito longe. Tão longe que ele não sabia mais onde estava.

Um louva-deus de olhos esbugalhados fez-lhe lembrar da camionete de olhos redondos, que lhe ofereceu carona. William aceitou, andava sem rumo, como se tivesse esperança que algum poder divino lhe indicasse o caminho. Por isso seguia sempre em frente. Não queria voltar para trás, e como os antigos navegadores, partiu rumo ao fim da terra, ou quem sabe do seu início.

Enquanto bebericava a água que descia de uma folhagem larga e grande, lembrava-se da fala engraçada do velho que lhe ofereceu carona. Ele contava piadas, e quando ria sua boca, com apenas “um centroavante” provocava risos de William David. Quanto às piadas, bem ele não se lembrava. Eram muito ruins. A camionete cruzava a rodovia em algum lugar ermo, onde casas eram vistas a cada, seis ou cinco quilômetros. Sede de sítios ou pequenas fazendas, cobertas por plantações, bosques, e campos onde vacas de leite ruminavam, aguardando o seqüestro de sua produção.

_ Deve ser um bom lugar para se viver. Disse William.

_ Não creio, meu jovem. Só tem gente velha. Como eu [risos...] E para piorar não acontece nada de diferente. O sol nasce sempre após os montes, e se esconde atrás das campinas. Vez por outra aparece um viajante, e não fosse a tevê via satélite, muitos aqui talvez não conhecessem o fogo.

_ Mas o senhor não vive aqui?

_ Me considero um prisioneiro, filho. Onde eu mais eu poderia viver? Só me ensinaram a plantar e colher. Não tenho estudo, e exceto minhas piadas, acredite, sou muito matuto.

_ Mas talvez, se o senhor tentasse... Ou tivesse tentado.

_ Pensei nisso algumas vezes. Mas sempre olhava a cara de minha mulher, de meus filhos. Eles podiam não estar felizes por completo... Mas não sei por que, algo me dizia que se mudasse toda a forma que nós vivíamos eles não compreenderiam.

O silêncio imperou na camionete. William David decidiu não continuar a prosa, que começava a tomar um rumo que não lhe agradava. Além disso, aquele velho não seria a melhor pessoa para abrir seus fracassos, e sua covardia. Naquela noite estrelada ele sentia-se o mais covarde dos homens, e pela primeira vez, questionava sua atitude, e contra o vidro empoeirado do veículo podia ver a imagem de cada um de seus familiares se formarem.

Margaret tinha um rosto tão doce qual ambrosia. Seu sorriso tenro era macio como o queijo trespassado pela faca. Seus olhos iluminavam mais que as lâmpadas da pracinha onde os meninos brincavam à noite. Ele suspirou ao vê-la no pára-brisa. Sua imagem parecia real. Seus dedos foram ao seu encontro, mas...

Repentinamente como uma turbina de avião ecoou um som ensurdecedor. A camionete começou a dançar sobre o asfalto que se quebrava como casca de merengue. Um clarão capaz de cegar o mais ávido dos olhos invadiu a noite, e como uma cortina sendo rasgada, o céu estrelado foi cortado ao meio por uma gigantesca esfera flamejante. A última coisa que William ouviu foram os gritos estridentes dos freios, e o estrondo como se a terra fosse atingida por uma bomba atômica.

Quando acordou, uma nesga de luz penetrou entre os frondosos pinheiros. Ele continuou a fazer o que começara quando partiu ás escondidas de casa. Caminhou. Caminhou. Caminhou ainda mais. Até suas pernas cansadas, e seus olhos marejados pela paisagem que jamais se alterou encontrarem aquele velho tronco para descansar.

Sozinho, no meio do nada não restava mais nada, que não fosse chorar.

Douglas Eralldo
Enviado por Douglas Eralldo em 30/03/2010
Código do texto: T2167190
Copyright © 2010. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.