Uma testemunha no interior do C 30

A mulher saiu na portaria do edifício e correu e parecia desesperada e também sem rumo e logo em seguida desabou: permanecendo ali com os joelhos mergulhados na poça d’água, de cabeça baixa, cabelos molhados a cobrir-lhe a face, estava em silêncio.

A avenida dos costumes, em pleno centro da cidade de Curitiba, lugar quase sempre povoado vinte e quatro horas por dia, estava quase deserta. Próximo havia um ponto de ônibus, eram quatro da madrugada, ali dois moradores de rua, cobertos por seus panos encardidos, a observar a cena.

Ela tenta se levantar e cai rolando para um dos cantos da avenida, tossia muito. Dois carros passaram naquele instante, um deles parou, permaneceu com farol alto, um carro duas portas, não era possível determinar bem sua cor, mas parecia um Volvo C 30.

Desceu dele uma mulher de cabelos curtos, calça colada ao corpo, blusinha de cor clara, de gola e mangas compridas, e quando se aproximou da mulher que estava ao chão, ainda chovia uma chuva fininha. De início ficou olhando como se para conhecer o corpo primeiro, antes de ajudar a desgraçada. Em questão de segundos fora a um só golpe fora puxada e lançada contra o meio-fio, e sua testa se abriu, e o sangue começou a se misturar com lama.

Agora duas mulheres em condições absurdas, uma violenta, outra violentada. Chuva caindo sobre os corpos, e de súbito a porta que havia ficado aberta quando ela desceu do carro se fechou, bateu com toda força, e o C 30 continuou ligado, sem aceleração acima do funcionamento do motor, ou seja, a porta se fechou e pronto. Tudo indicava haver uma segunda pessoa dentro do carro, mas de certo não deveria saber dirigir, apenas estaria se protegendo, impelido (a) pelo terror do acontecimento, poderia até mesmo ser uma criança indefesa.

Sentindo-se talvez impotentes, as pessoas desgraçadas pelo sistema social viram a necessidade de tomar certo distanciamento da cena, e logo atrás deles havia um muro baixo, e cada um o pulou a sua maneira, sem querer despertar atenção de quem quer que fosse. Com o ponto de ônibus também esvaziado do vazio daquelas pessoas, não havia mais testemunhas, não havia mais espectadores, não havia mais nada.

Seria assim se não houvesse lá no alto do prédio, de onde saiu a moça revoltada e agressora, uma silhueta aparentemente de um homem, a olhar fixo para baixo, em companhia de uma planta enorme que ligava uma sacada a outra com seus ramos.

Mas quem poderia afirmar que aquela silhueta fosse ter algo a ver com o desespero da mulher que agrediu a segunda a aparecer em cena? A única testemunha até então ascende um cigarro e em seguida se acomoda no gradeado da sacada. Teria ela consciência da cena que se passava lá em embaixo, ou estaria desligado (a) do acontecimento, preocupado (a) apenas com sua vida, seus deveres e obrigações, quem sabe até estivesse entediado e querendo se suicidar naquele mesmo instante? Então seriam duas tragédias num mesmo quarteirão, num mesmo instante, possivelmente duas situações conectadas apenas pelo símbolo da humanidade, mas sem qualquer parentesco entre as pessoas envolvidas.

Mas sem poder afirmar nada sobre isso, uma coisa é certa, a mulher agressora havia deixado aquele edifício, sem gritos, sem choro, sem gemidos, e aparentemente guiada por certo desespero, desespero que teria extravasado, talvez, quando a mulher do C 30 se dispôs a ajudá-la, a saber o que acontecia com uma mulher que estava na chuva, mergulhada com seus joelhos numa poça d’água, visivelmente solitária.

A cena continua, ou seriam as cenas: uma lá embaixo, outra lá em cima?

troclone
Enviado por troclone em 01/05/2010
Reeditado em 01/05/2010
Código do texto: T2231039
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