A morte da velha benzedera

Naquele dia saí de casa disposto a matar. E não mataria qualquer pessoa. E se por acaso minha pena for ampliada por causa da premeditação. Que assim seja. Mas confesso, eu premeditei o crime, no instante que sai da cozinha empunhando a faca, que de costume desossava a carne do churrasco de domingo. Eu já sabia que iria matar. Como iria matar. E quem iria matar.

Nem mesmo tive compaixão ao lembrar as tantas vezes em que Dona Josefa benzeu meus meninos. Contra cobreiro, quebrantes, e tantas outras malevolências que vez por outra castigava as crianças.

Dona Josefa andava arqueada, rastejando seus pés, e afirmando-se numa vara fraquejada dum pé de aroeira que tinha nos fundos do pátio. E se isso caracterizar modo torpe, que seja. Sou culpado.

A velha tinha quase noventa anos. A Bugra velha conhecia uma enormidade de truques, e isto me assustava. Mas não foi por isto que a matei com sete facadas e um talho no pescoço. Sabe como é, não basta fazer o serviço, é preciso se certificar que tudo deu certo.

Pois bem. Matei-a numa quinta-feira. Não lembro ao certo o dia, mas fazia já algum tempo que cogitava tal proeza em pensamentos. Minhas desavenças vinham crescendo cada dia, e ver aquela pobre velha desfilar pela vizinhança, enchia meu coração de cólera.

Aquela quinta-feira tinha amanhecido normalmente. Estava preparado pra fazer as coisas de sempre. Passar posto, botar gasolina na pampa, diesel nos galões e ir até o sítio capinar a lavoura com o tobatinho. Antes ainda passei no banco, para dar uma olhada a quantas ia minhas dívidas. O último ano a seca tinha sido cruel. E este se desenhava igual.

Sabe como é colono. Pior que brasileiro. Não desiste nunca mesmo. Pode vir á seca que vier, o prejuízo que vier, que no ano seguinte ele vai continuar plantando. Mesmo sem ganhar um tostão. Assim era eu. Igual a qualquer outro colono. Persistente.

A lavoura tava feia. Nem pra capinar deu. Terra dura, plantas murchas. Secas. Tinha dado na previsão de manha que choveria. Só isso salvaria minha lavoura, e minha conta no banco. Então da pra imaginar a alegria quando vi as nuvens pretas se deslizando atrás do cerro.

Moro numa vilinha na cidade. Vendo que a chuva era iminente, resolvi voltar para casa e aguardar pelo líquido sagrado que estava prestes a cair do céu. E Deus bem sabe o quanto fiz orações para que isso acontecesse. Dirigi os doze quilômetros assobiando musica sertaneja, de tão feliz que tava.

Mas minhas feições mudaram logo ao chegar no portão de casa.

Lá estava á velha. Carcomida pelo tempo, e que ainda não nos tinha feito o favor de bater as botas. Ia com seus passinhos lerdos em direção aos fundos da casa. Numa das mãos enrugadas, vi um objeto. Um colar. Desconfiava do que era.

Ela arrastava seu corpo moribundo. Dava umas paradinhas. Olhava o tempo. As nuvens que dançavam num balé violento, lançando suas faíscas sobre a cidade. A cada trovão a velha apressava o passo.

Eu sabia o que ela iria fazer.

Entrei em casa com pressa. Minha patroa disse que perguntou o que eu queria. E confesso que não a vi. Não podia perceber nada, e nem ninguém. Estava resoluto em mandar aquela velha pros infernos. Em fazer o que Deus ainda não tinha se encorajado fazer. Iria de uma vez por todas apresentar Dona Josefa a são Pedro. E se o criador andava lento em suas decisões, eu não.

Entre nossas casas há apenas um muro. Fui pelos fundos, já que conhecia seus rituais. Pulei o muro num pulo só. Era baixinho. Sempre fomos bons vizinhos.

Ela não teve tempo para perguntar o que eu queria. Estava entretida com o início de sua oração a Santa Bárbara. Tinha até mesmo feito a cruz com o machado. Faltava pouco para ela acabar comigo. Mas naquele dia não ia permitir.

As sete facadas interromperam a reza. Naquele dia ela não conseguiu conter a chuva. Velha medrosa. Que mal tem um temporal vez por outra. Os primeiros pingos começaram a cair ainda quando o corpo quente da velhinha se contorcia no limiar da morte.

Ergui as mãos aos céus e agradeci. Minha lavoura estava salva. Aquela velha não traria mais seca.

E foi assim que aconteceu Senhor Juiz. Tenho pra mim que foi legítima defesa. Era ela, ou eu. Naquela quinta-feira resolvi que era minha vez de vencer. Afinal, tantas outras vezes que ela espantou a chuva com suas mandingas ninguém a condenou. E eu tinha que agüentar a quebradeira em silêncio... Pelo menos dessa vez o milharal está lá, frondoso e fértil... Só esperando a colheita.

Douglas Eralldo
Enviado por Douglas Eralldo em 03/05/2010
Código do texto: T2234505
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