UMA ESTRANHA CONVERSA NUM DIA CHUVOSO

Nunca entendi a mania de certos homens entupirem as praças com árvores. Pinheiros são os preferidos. E o que era para seu um lugar luminoso, fica qual o mais lamurioso cemitério. Esta sensação aumenta em dias nublados, quando a chuva insiste em manter as pessoas em suas casas. Aquela era um destes dias.

Chovera desde o prelúdio da manhã. Como num dia qualquer, saí de casa para trabalhar. Era um emprego medíocre. Mesmo assim era um emprego, e para um sujeito metido em dívidas, com as contas atrasadas há mais de três meses, ainda assim era um emprego.

Mas o dia rabugento, trouxe-me mais infortúnios. O emprego medíocre voou como o papel escrito “Aviso Prévio”. Sequer despedi-me dos colegas. Não gostava de nenhum deles mesmo. A velha gorda, da Dona Odete não perdia a oportunidade de dedurar meus atrasos. O Willians sonhava com a minha cadeira medíocre, e o meu computador com Windows 98. Não havia porque dar adeus.

É como seu o solo sumisse de debaixo dos pés. É como se a luz no final do túnel, finalmente tivesse apagado. Trevas. Sim trevas me envolviam, e aquele dia era propício. A chuva era fria. Gelada como as mãos de um defunto. Meus cabelos mal cortados e a barba por fazer diziam-me que ainda restava vida, mas minha alma pensava o contrário.

Sentei-me num daqueles bancos de concreto. Observei os parcos movimentos de um dia em que não devia ter saído de casa. Qual casa? Dessa vez não me livraria do despejo. Continuei sentado ali. E a única alteração na paisagem foi á escuridão que aumentava. Finalmente anoiteceu. Não sentia nada. Nem frio, nem fome. Apenas a vontade de ficar ali sentado para todo o sempre, em todos os dias sem sol. Sentia-me afeito a paisagem fúnebre. Funesta como minha própria vida.

A noite avançou um pouco mais. Nem mesmo as lâmpadas da praça funcionavam. A chuva continuava caindo. Silenciosa como os mortos. Gelada como os mortos. Pensava nos mortos, quando escutei o silêncio ser rompido pelo toque de um sapato nas pedras irregulares. Olhei por sobre o ombro, e percebi que não estava sozinho. Quem será? Outro perdido como eu?

Logo deduzi que não. O garboso indivíduo não parecia um homem como eu. Era alto, trajava calças elegantes sobrepostas por um casaco negro reluzente. Na mão esquerda empunhava um guarda-chuva pomposo, e seu caminhar era da elegância dos lordes. Magro, rosto de linhas retas, e um par de olhos incriminadores. Ele sentou-se ao meu lado e comichou seu cavanhaque negro, e falou com a postura de um radialista.

- Dia complicado, não é Jeremias?

- Perdoe-me. O senhor me conhece. Respondi de uma forma truncada, e um pouco relutante.

- Sim. Eu o conheço.

- Desculpe-me, mas não me lembro de você... Disse, levantando-me finalmente do banco. Não era dos melhores dias para conversar com um estranho.

- Não vá ainda. Retrucou o estranho, segurando minhas pernas com suas mãos compridas e dedos longos, de uma forma tão persuasiva, que não tive como negar-lhe.

- Acredite. Estou aqui para ajudá-lo Jeremias.

- Me ajudar.

- Sim meu amigo. Você não merece tanto castigo... Sinto com seu sofrimento. Sua família que o abandonou, e agora até mesmo seu emprego medíocre, não é?... Você sempre foi um cara bom, não é mesmo?... Disse com certa ironia, mas que de certa forma eu concordava. Não conseguia falar mais nada, pois o estranho entrava em minha mente, e como os políticos, falava coisas das quais a muito esperava ouvir.

- Toda a noite você nunca deixou de rezar. Em cada natal que não tinha para si, ainda assim compartilhava com os que nada tinham. Quantas vidas você ajudou?... Sua esposa, que sequer reconheceu seus esforços, ao seu chefe, sendo por mais de dez anos um dedicado funcionário que jamais pediu um único aumento... Não é mesmo Jeremias?...

Eu apenas concordei com a cabeça. Humilhado. Sentindo-me o pior dos homens, por ver que mesmo tentando fazer tudo certo, em alguma parte havia errado.

- Jeremias acredite, sinto dó de você. Sou um amigo que olha de longe seu sofrimento, mas que sente cada palmo, e como por todos os diabos, gostaria de ajudar-lhe...

- Mas não há mais tempo. Disse balbuciando um princípio de choro.

- Acreditas mesmo nisso?... Tens a certeza de que não posso lhe ajudar?...

- Olhe para mim. Passei dos quarenta. Tenho pouco estudo, e o melhor dos empregos que possa arrumar não será suficiente para acabar com minhas dívidas...

- Mundo cruel este que envolve cédulas monetárias... Confesso que nunca compreendi estas invenções dos homens...

- Mas o mal está feito. E pode ter certeza, ele nos arrebata como um furacão que não deixa nada vivo por onde passa...

- Mas se no meio do furacão lhe surgisse uma corrente tão forte que não o deixasse ser tragado pelos ventos...

- Há tempos não creio em boas noticias. Principalmente a este horário, de um homem que sequer conheço.

- O importante é que eu lhe conheça, embora muito duvide que não saiba que sou... Mas e se eu lhe dissesse que há sim como sua vida ser brindada com boas notícias?...

- Amigo, faz tempo que Deus me abandonou.

- Esqueça Deus Jeremias. Que ele abandonou-lhe, já sei, olhe o trapo que viraste. Deus não tem nada ver com isso... Eu estou aqui.

- E quem diabos, é você?...

- Já disse: um amigo que sente com sua dor... E alguém que pode oferecer-lhe algo...

- Um emprego?...

- Digamos que sim... Mas para aceitá-lo você terá que abandonar todos os princípios por quais viveu até hoje... Você preparado para isso?...

- Só posso te dizer que com princípios, ou sem eles não vim muito longe.

- Isto é um sim?...

- Talvez! O que teria de fazer?...

- Preciso de um sim, ou um não. Apenas isso Jeremias.

- Sim... Sim... Eu aceito. Acho que não tenho alternativas.

Então o homem se aproximou de meus ouvidos. Estava prestes dar-lhe um soco. Mas continuei parado. Precisava de dinheiro. Precisava de uma nova vida. Com uma voz melodiosa que emanava um cheiro de menta, que refrescava minha face como os ventos da morte, ele disse: - Traga-me alma Jeremias! Traga-me muitas almas!... Quanto mais almas, maior será seu sucesso meu súdito. Disse e partiu caminhando lentamente até ser coberto pela noite sombria e mal iluminada cidade. Por minutos ouviu os cascos dos sapatos troteando, cada vez mais longe até desaparecer.

Resolvi levantar do banco. A chuva continuava caindo. Com a mesma faca que usava para descascar laranjas, invadi a casa de Willians. Já que tinha que começar meu trabalho, que fosse por ele. Aquele idiota não teria o prazer de sentar-se em minha mesa... de usar meu computador...

Douglas Eralldo
Enviado por Douglas Eralldo em 25/05/2010
Código do texto: T2278227
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