Suíte 106 - O mistérioso viajante
 
Tudo o que Alice queria era se jogar de uma ponte bem alta para se esborrachar de uma vez lá embaixo. Seu desastroso romantismo tinha feito uma vítima. Ela ouvia diariamente seu amigo dizer: “te amo, te amo tanto”, mas ela não se importava, pensava ser apenas um sentimentalismo passageiro e nada mais. O tempo correu ligeiro e, tudo, a cada minuto, se tornava mais sério.
Quase sete meses de insistência e, ele, não se conformava em não tê-la possuído.  Constantemente resmungava pelos cantos: “deixarei tudo por você” e deixou. Um poema sem endereço chegou ao coração dele, como uma resposta positiva. Sua obsessão era tanta, que confundia carinho com promessa de amor e, nessa quase insanidade, se lamentava: “se você não for minha, não será de ninguém”.
Numa ligação lastimosa, ele fora taxativo: “sai de casa, estou te esperando, venha até aqui ou me jogarei na frente de um ônibus. Você tem 30 minutos”. De alguma forma aquela situação pegou Alice de surpresa. Quase teve um choque. Todavia, resoluta, não pensou duas vezes em ir socorrer o amigo.  Antes de sair de vez telefonou para Marcos um dos amigos de Frederico, e em poucas palavras explicou a ele, a situação de “Fred”, como a turma carinhosamente o chamava.
Ao chegarem no lugar aprazado, puderam ver o estado deplorável em que Fred se encontrava. A criatura  apresentava o rosto arranhado, a roupa rasgada - resultado de uma briga recente com sua esposa. A mulher de Fred afirmava categoricamente que ele nada podia esperar dela, Alice, a formosa e bela poetiza, a não ser um punhado de palavras melosas, versos bucólicos e sem uma gota de amor e sentimento verdadeiros.
Toda tentativa resultara inútil. Nada convencia Fred a voltar ao lar, porém, Alice, extremamente nervosa,  enfatizara bem as palavras: “Não te amo, nunca te dei esperanças. Você se engana toda vez que lê meus poemas, não posso fazer nada. Marcos ficará com você. Ele te ajudará. Eu não posso”. Ato contínuo partiu deixando a dor da sua ausência impregnando o ar.
Durante a madrugada Marcos telefonou: “Alice, Fred tomou um vidro inteiro cheio de chumbinho pra rato e está morrendo”. Transtornada, Alice foi ao hospital.  No hall de entrada se deparou com a esposa e os filhos do moribundo, se debulhando em choro A família a encarava, como que lhe imputando a desdita de Fred: “a culpa é sua”.
Só ela sabia o quanto era atormentada pelo sentimento dele. Marcos a abraçou e discretamente sussurrou em seu ouvido: “aproveita e vai embora daqui. será melhor. Se ele morrer, não se culpe. Se escapar, nunca deixe que te encontre. Te manterei informada.
Para Alice, entretanto, o “ir embora” dito de maneira lacônica pelo amigo, implicaria em muita coisa ao mesmo tempo. Sair do emprego, deixar seus projetos com jovens da comunidade, trancar a faculdade, enfim, tantos pormenores!  Não havia alternativa, não havia saída  para descrever aquela situação crítica, caótica na qual se encontrava. 
 
Atrelada a aflição, havia um ponto mais crítico a ser ponderado: perder um amigo. Isto fez com que ela caminhasse a esmo, até se ver a beira do rio que cortava a cidade. Havia uma marina que era cercada por um muro enorme e ela batizara essa construção de “meu muro de lamentações”.  Dali o nascer do sol parecia mágico. Alice  se recostou no velho muro, mas desta vez, não se lamentou -  apenas se fez em  lágrimas que rolaram sem endereço. 
Antes de deixar o hospital, pediu a Marcos que entregasse um poema que escrevera para Fred: “Se ele sobreviver, entregue. Se, ao contrário, morrer, ponha junto ao caixão”.   

Não era uma ironia cruel. Alice queria que ele entendesse que eram apenas poesias, versos simples e bobos, não necessariamente o que sentia, sem desmerecer a poesia.  “A poesia – vivia dizendo e fazia disso seu bordão – "a poesia é de quem a lê e não de quem a faz”.
Alice acreditava que a poesia funcionava como uma flecha lançada ao vento que sobe sem direção, mas, na queda  feri muito profundamente um coração.
 
Alice se foi. Fred sobreviveu. Voltou a vida sem seqüelas físicas e, de certa forma, sentimentais. Perdeu, de vez, o gosto pela vida. Do que ganhou de Alice (a poesia) mandou fazer um quadro e o pendurou na sala, frente à cadeira de balanço, onde passa seus dias entristecidos de lembranças imorredouras.
 
Estigma  
 
Construístes tua casa na areia,
Serei a tempestade a jogá-la ao chão,
Até que me libertes, pois não ando em nuvens,
Clamo, tire sua vida de minhas mãos.
 
Não sou da vida o presente, pouco estimo o passado,
Num branco vazio da manhã, direi adeus a este mundo,
Desfaça desta imagem que de mim tens criado,
Assim, seguirei meu próprio rumo em direção ao inesperado.
 
Sou do mar a fúria, do vulcão as lavas,
Sou da moeda a outra face, procurando achar-me neste espaço,
Sou a carta na manga de quem ganhou
Do que perde - sou a dor, não me verás em qualquer braço.
 
Olhei na água, vi meu reflexo,
Paradoxo do que sou,
Os olhos são as janelas da alma!
Abri os seus, ainda assim não sabe quem sou.
 
Diga meu amor que não consegue me ver quando me olha
Parece bom, me fiz enigma, e isto  me satisfaz,
Se for um jogo darei as cartas, se não for, perderá ainda mais!
 
Não sou a aura que vês, nem a calma que criastes,
Não sou o esteio, nem o principio,
Penso, todavia, não poder sustentar-te,
Procura achar felicidade nisto, porque mais, não posso dar-te.
 
Ao saber da noticia que Fred havia desistido da vida, Alice resolveu não fazer amigos, nem se apaixonar por ninguém. Escrever apenas o necessário, ou seja, Alice fez seu casulo como o da Mariposa Imperial, mas não imaginava que o toque em um de seus fios a fizesse perder as estruturas e a força das suas pequenas asas.
 
Atenta a tudo, alheia a vida sentimental Alice limitou-se a escrever sem que seus escritos demonstrassem sentimentos reais.
Porém, um dia, um homem bateu em sua “janela”, insistentemente. Alice totalmente arredia tentou afastá-lo, mas isto resultou  em vão.
  
Passou, então,  a crer que poderia ser Fred e tudo que ele dizia parecia estar ligado a Fred, o que, de pronto,  a irritou deveras.
Qual é seu nome? Alice perguntou, de chofre. E ele respondeu: “Viajante”, Alice.
Alice perdeu o sono por dias e aquele viajante se tornou seu desafeto.
A figura dele estava em sua mente e falava consigo mesma: “se for o Fred, não farei mais nada, nem abandonarei meus sonhos e projetos por causa dos sentimentos dele”.
 
Mas conhecer o “Viajante” se tornara questão de honra, um ponto final, a última cartada, Alice estava tão entediada que atirar-se da ponte era mesmo a sua real vontade, mas o “viajante” dizia: “não se jogue me espere do outro lado”. Ao que dizia: por que você insiste?
Um dia ele foi mais contumaz: “Eu vou te ver”.  Ela disse: “venha”. Sua irmã, sabendo de todo o acontecido, alertou que não a deixaria sozinha com ele, pois ele poderia matá-la. Alice não tinha medo, pois nunca deu crédito aos sentimentos, amor, amizade, coleguismo. Paixão, isso era usado apenas como enredo nas suas composições poéticas.
 
Estava tudo marcado. Os dois se encontrariam na rodoviária. Alice foi, esperou uma hora e meia, além do tempo marcado: “ele não veio”, respirou aliviada! Pouco tempo depois de ter chegado em casa ele volta a ligar avisando que acabara de chegar.
 
Sua irmã, de sorte alguma a levaria de novo ao local de encontro. Ela estava certa de que se tratava de Fred, e começou a pensar no pior e temer pela vida de sua irmã Alice. Sua sobrinha dizia: “tia, ele vai te matar, não vá, aonde você arranjou tanta coragem? Pelo amor de Deus, vemos isso na TV todos os dias. Ele é um assassino! Mãe a senhora vai levar minha tia pro matadouro, não faça isso!”
 
Alice não tinha certeza de nada alem do só querer ir que lhe empurrava porta afora.
O encontro ficou para o dia seguinte às nove horas. Somente depois que Alice e a irmã dela vissem o viajante e tivessem certeza de que não era Fred ela a deixaria no hotel onde ele estava hospedado.
 
Quando chegaram ao hotel elas o viram e o cumprimentaram. Tudo estava dentro das normalidades. Contudo, no coração de Alice, não.  Uma voz do fundo da alma a irmã suplicava: “não me deixe aqui”. Tarde demais.
Ela entrou no carro e foi embora, confiante em ter  deixado a sua irmã em boas mãos. Alice sabia que se não fosse Fred, se fosse realmente o “Viajante”, tratariam apenas de assuntos profissionais.
 
Ele a convidou a subir até a suíte. Alice fitou os olhos atentamente no recepcionista do hotel, como que dando um grito de alerta em surdina: “Se ouvir um grito me socorra, ele pode ser enviado pelo Fred”. Cômico!
 
Alice e o “Viajante”, passaram a manhã falando de suas obras e suas experiências, desceram, almoçaram e voltaram à suíte 106.
Intrigado o coração de Alice dava sinais de falha, já não sabia o que pensar: ora ele dizia que tinha varias obras literárias, em seguida dizia que poderia estar mentindo. Ela tanto insistiu  que ele tirou de bolsa de viagem vários livros mostrou e presenteou-a com um deles, o que tranqüilizou o coração. Neste momento Alice se viu, enfim, longe dos olhos aterradores de Fred.
Então ele se aproximou e a abraçou carinhosamente...
 
No final do dia ele a pede que fique com ele. Ela, porém decide que não (contra sua intima vontade).
O “viajante” era apenas um Viajante solitário, um ser carente e romântico assim como ela. Nada mais.
Num gesto de ternura ele encosta a cabeça em seu ombro. Ela, retraída, afaga seus cabelos e seu coração de poeta a faz perceber o quanto será difícil sua ausência. E mais que isto, SUA PRESENÇA já havia sido, sem saber, por ela, profetizado.
 
Aquele poema, antes sem endereço foi como uma flecha lançada ao vento, que ao cair atravessou o coração de Alice...
 
A sua presença
 
Sentada em um banco, alheia a tudo em minha volta
pude tocar um anjo, alvo, humano e celeste
minha mão, pela primeira vez, desobedeceu meu temor
perdi, por um momento, o controle e toquei o amor
 
Sua presença, seu cheiro agora são reais em minha mente
não há mais como fugir: a tristeza tomou-me, estou doente,
tenho desistido de tudo, não vejo por que viver
se não pelo que restou em mim
do que pude ter de você
 
Tenho, porém,  a esperança perdida, não há mais o que perder
não continuo, apenas sigo só... Só assim como se vê
fechada em meu casulo, vivendo apenas por viver
 
Naquele banco onde o anjo demonstrou sua clemência
permitindo-se ser tocado doando de si a virtude,
houve um milagre real.
Experimentei,  da  vida, um minuto de essência
 
O que será da minha vida com sua definitiva ausência?
tive do meu jeito de amar a justa e cruel recompensa
viveria do amor, mas hoje, existo de lembrar sua presença