Gabriel, um homem perturbado

Quando Gabriel veio ao mundo numa escaldante tarde de março, sua mãe previu seu sucesso. Nunca estivera tão enganada.

Da janela de vidros largos e compridos no décimo quinto andar da Galeria Santa Catarina, no centro de Porto Alegre ele olhava o pôr-do-sol cobrir de tons laranja as águas do Guaíba. A paisagem inspirava seus pensamentos delirantes, em mais um dia que terminava em ostracismo.

Era um homem alto e esquálido. Tinha trinta e cinco anos, mas as marcas em sua face com a barba por fazer, e seus olhos fundos circundados por generosas olheiras causadas pela vida noturna lhe davam um ar mais velho. Os cabelos até os ombros de cor indefinida, numa eterna briga entre o amarelo, o castanho e o marrom, mesmo um pouco grudento pelo hábito de não ver água, e desconhecedor de um artefato chamado shampoo ainda esvoaçavam com a brisa que invadia o parapeito.

Aquela figura depressiva, vestido apenas com sua cueca cinza, fitava a aglomeração de prédios, e o movimento contínuo na Rua Voluntários da Pátria naquele horário em fim de dia, de forma depressiva. Era uma terça-feira, mesmo dia, em que viera ao mundo, como se isso fosse algo relevante. Tinha de saber apenas, que nas terças-feiras, não tinha trabalho, e isso transformou aquele dia, como uma segunda-feira. Uma grande merda.

Aquele era um ritual rotineiro no meio da bagunça de seu apartamento de um quarto, para o qual se mudara há dois anos e meio, quando sua estimada esposa, para sua surpresa calçou uma bota sete léguas, com solado qual pneu de trator, e aplicou-lhe um sonoro e dolorido pontapé em suas nádegas. Mas embora surpresa, Gabriel Marcondes de Oliveira, já havia se conformado com sua sina de fracassos muito tempo antes disso. Aquele dia foi mais uma conseqüência.

Desde moleque quando ainda morava no interior, sonhava com a fama e o sucesso através da música. O apelido de Sabiá, dado por seus avôs – Embora o motivo até hoje não esteja muito claro – era um bom indício de que seus sonhos iriam se concretizar. No entanto ele esquecera que indícios não são fatos, e fato é que o maior público para qual fez uma apresentação musical, foi de setenta e sete pessoas, das quais, vinte e duas eram parentes, primos, tios, e tias... Mesmo assim, as apresentações artísticas nas noites de quinta a domingo em bares e restaurantes, lhe permitiam pagar o aluguel atrasado e as fichas para o ônibus, já que a janta era por conta das casas...

Outro insucesso retumbante lhe foi o amor. Sonhava ter belas namoradas, todas loiras, com mais de um metro e oitenta, mas o que Deus lhe proporcionou foi uma única mulher. A gordinha da fileira do meio da qual foi colega no ensino médio, e que depois de dez anos, gordinha era eufemismo. E como não existem olhos na face do amor lhe bastava apalpar as protuberâncias plurais de sua amada, e depositar toda sua esperança nos filhos a advir. Dois anos depois do casamento descobriu que era estéril. Só mais uma frustração, pois otimista, sabia que pelo menos sua vida era bem melhor que a de Joseph Climber.

Até que o fatídico dia das botas aconteceu, com mais ou menos cinco anos de casado. As marcas da bota ficaram em seu traseiro, de cócoras no chão enquanto sua esposa amada sumia por detrás da porta, abraçada a um ator de teatro, cujos boatos diziam que seria escalado para novela das oito.

Até então, mesmo com os fracassos, ele dizia-se feliz. Mas não existe felicidade duradoura. E não seria ele a ter a felicidade eterna, mesmo que ilusória. Daquele dia em diante, Gabriel mergulhou no caldeirão da depressão, foi despejado, e por alguns meses escondeu-se atrás de garrafas, de cerveja, vodka, ou cachaça. O gosto não lhe importava, pois buscava nelas apenas a anestesia para suas dores.

Foi às duras penas que sua mãe o convenceu a voltar a tocar, alugando-lhe aquele apartamento barato no centro. Digamos que as coisas ficaram um pouco brandas e aos poucos sua rotina se estabilizou. Mas seus olhos continuavam distantes. Seu coração e sua mente aos poucos deram para filosofar. E a filosofia é uma arma perigosa para desajustados, e combustível para potenciais suicidas.

Foi justamente nesta época que resolveu questionar o mundo, e por coobrigação, o criador, cujo nome tinha vários, mas que ele desde as aulas de catequese se habituou por chamar de Deus. Sim quem mais poderia responder pelas incoerências terrenas, que não o próprio inventor dos homens.

Também foi nesta época que fez amizade com o homem de terno alinhado, preso numa caixa negra com tela de catorze polegadas, que diariamente vinha lhe visitar depois das vinte horas.

– Boa Noite. Dizia o elegante cidadão, numa voz melódica que não alternava nunca o timbre, trouxesse boas ou más noticias.

– Boa noite! Gabriel sempre lhe respondia a saudação. – Que me contarás hoje? Que mais de ruim aconteceu? Onde mais as mãos de Deus não puderam salvar pobres almas?...

– Um terremoto de oito graus na Escala Richter assolou hoje a capital da Nigéria e mais de duzentas mil pessoas morreram...

– Não disse. Sou seu amigo, mas creio que os abutres desejem mais do que eu sua amizade. Terás sempre boas dicas de restaurante para as rapinas... Estou certo, ou não de que está tudo errado? Precisava acontecer isso logo naquele lugar? Não bastava a miséria daquele povo?... E você, meu Deus, que me dizes? Evocava uma terceira pessoa para o diálogo, sem obter resposta.

– Em Diadema, São Paulo, filho é preso depois de surto psicótico por uso de crack, e de assassinar seus pais, o avô, uma tia e a namorada. Continuou o homem de terno alinhado.

– Credo! E você ainda acha que sou melodramático. Como permanecesse impassível em dizer isso? Como seus olhos não marejam como os meus, com tanta crueldade?...

– Já no interior de Santa Catarina, Mark Von Plaus, um homem de cinqüenta anos que vivia no interior do estado, confessou ser o pai de seu próprio neto, e que uma voz lhe induzia a abusar das filhas, inclusive da caçula de apenas seis meses...

– Valha-me bom Deus. Gritou Gabriel, na solidão de seu apartamento, amarfanhando ainda mais seu sofá velho e amarrotado. – O que o senhor está fazendo por nós?... Está tudo errado. E você todo dia me fala tamanhos absurdos, que sempre são sucedidos por outros... Depois me criticam quando digo que este mundo está uma merda. Tudo bem. Tenho as minhas dores de cotovelo. Mesmo assim é continua tudo uma merda, e não é por isso, que não deva ser válido o que penso.

– Esquenta o clima no oriente médio, e Israel ameaça atacar o Brasil, caso o Itamarati continue defendendo o Irã. Falou o amigo de Gabriel. Ele já não estava mais na sala, e o homem de terno alinhado ficou a falar sozinho.

Douglas Eralldo
Enviado por Douglas Eralldo em 18/06/2010
Código do texto: T2327361
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