A bruxa dos cabelos de fogo

A desobediência sempre foi combustível de grandes feitos. Do mesmo modo serviu de sepulcro a muitos que não temeram ultrapassar os limites e as ordens de seus pais e suas mães. Este foi o caso de Pedro Bill, e seus outros dois amigos, David e Cléber.

Era uma sexta-feira de neblina. De uma manhã chata de aula de geografia na sexta série, e uma tarde que se apresentava monótona, trancafiados no quarto de Pedro, pois sua Mãe, Dona Elisabeth, o proibira de sair para rua. ― Não saiam do quarto meninos. Não quero que peguem uma gripe. Disse ela, zelosa.

Mesmo com um Playstation, e um filme da sessão da tarde, um quarto bagunçado nunca terá para uma criança o charme que a rua e seus mistérios lhe proporcionam.

― Cansei deste jogo. Falou Pedro evidentemente com a intenção de liderar os demais para alguma empreitada.

― E o que faremos? Vamos continuar pô! Redargüiu David. Mas não encontrou apoio nem em Cléber, que ao lado de Pedro contemplava o velho sobrado, no fim da rua, numa saliência dos campos.

― E se formos até lá. Pedro tinha em seus olhos a chama da aventura, e da desobediência.

― Está louco. Se sua mãe descobre, vai ser semanas de castigo. Em toda turma há sempre uma voz de coerência, que normalmente é vencida pela democracia e pelo direito ao voto. E mais uma vez David Fora vencido.

Mesmo contrariado ele pulou pela janela, e saiu de cócoras para que a vidraça da cozinha não os denunciasse. Pedro morava num bairro comum, de gente comum. Casinhas enfileiradas uma ao lado da outra, e lá no fim, um beco terminava a rua, contra um pequeno bosque, numa Saliência que alguns chamavam de morro.

O velho sobrado estava aos pedaços, e há muito não era alugado. As últimas três famílias haviam fugido temendo assombrações. E como uma possibilidade dessas encanta crianças. Afinal, é só mais uma história... Uma lenda. E crianças gostam de lendas. E como nesse mundo, elas não passam disso, que mal teria ir até lá. No máximo uma pequena gripe, que com remédios cura-se rápido.

Não tinha mais ninguém na rua. Fazia frio. Um dia chato, onde todas as recomendações seriam um chocolate quente, e muita pipoca para ver televisão. Mas os três avançavam como soldados avançam suas posições. Com passos marcados, lentos e cuidados.

Lendas são lendas. Mas sempre causam um frio na espinha.

Além disso, o clima era propício para uma aventura daquelas. Tempo pesado e cinzento. O matagal no pátio da casa, cujas madeiras estavam corroídas por cupins, e os vidros cobertos por liquens. Três pares de olhos atentos se cercavam de reconhecer o local. O jeans de suas calças, já estava encharcado pela umidade. Mas eles continuavam.

― Minha mão disse que mora uma bruxa nessa casa. Disse Cléber. É uma velha bem fedorenta, maltrapilha que consome com as crianças. Completou.

― Deixa de ser bobo. Criticou Cléber, cuja valentia estiva prestes a ser testada. Bruxas não existem. É coisa de livros e filmes.

― Sim, mas de onde surgiram essas idéias? Foi á interrogação de David. De algum lugar eles se inspiraram. Terminou.

― Isso é fruto da criatividade dos homens. Ô raça para inventar histórias. Pedro se revelava cada vez mais cético, enquanto empurravam a porta, que rangia como os velhos clichês de Hollywood.

A casa toda era envolta por sombras, e pelo cheiro de mofo insuportável que penetrava nos jovens narizes. Não havia móveis na sala de entrada, e as madeiras que compunham o assoalho estavam podres, que Pedro quase foi engolido. ― Tome cuidado Pedro. Quero ver se te machucas. Resmungou Cléber.

Os três meninos continuaram sua incursão. Mas a aventura lhe parecia tão chata quanto o quarto bagunçado, e o Playstation. Não havia nada de anormal naquela casa, a não ser seu abandono. A cozinha até que era um pouco mais assustadora, com seus azulejos quebrados e sujos, por respingos estranhos. ― Credo. Será que isso é sangue? Os olhos de David estavam arregalados um pouco mais que o normal.

Estavam prestes a voltar, quando passavam novamente pelo saguão, e Pedro decidiu que tinha de ver a parte de cima do sobrado. ― Pode ser perigoso. Olha só o estado desta escada. Mas, mais uma vez a voz da coerência foi vencida pela democracia.

Pisavam na velha escada de madeira, como se escalassem pilhas de ovos. Em muitos degraus, seus pés se afundaram no vazio. E quando eles venceram a escada, esta se despedaçou.

― E agora?

― Por aqui, não vai dar mais.

― Deve haver alguma janela.

Por alguma razão, o sobrado parecia maior em seu interior. Os corredores dos quarto de cima eram largos, e bem mais sombrios que os ambientes térreos. ― Vamos até aquela porta. Disse Pedro apontando para uma porta no fim do corredor.

Era uma porta grossa, de carvalho reluzente. Parecia a única coisa a não estar podres naquela casa. ― Acho melhor não entrarmos aí. Disse uma última vez á voz da consciência, perdendo novamente para democracia. Mas isto não voltaria a acontecer.

No que Pedro empurrou a porta, o breu lhe cobriu. Não viam um palmo na frente do nariz. Suas mãos procuravam pelos outros, mas encontravam o vazio. De repente ouviram um sibilar, e ao fundo um fogo iniciar abruptamente. Devia ser alguma lareira, pensaram o três.

Era um fogo vívido. Fruto de boa lenha talvez. Pois apenas boa madeira cria tal colorido entre laranja e amarelo capaz de enfeitiçar e deixar os pequenos estáticos. Havia alguma coisa de estranho naquele fogo. As pernas dos meninos estavam imobilizadas, mas o fogo parecia caminhar até eles.

Pedro já não conseguia falar nada. Nem ouvir. Estavam como estátuas, observando o fogo se aproximar, e agora entre suas chamas dois gigantescos glóbulos oculares fitavam os meninos como olhos famintos.

As palavras não vinham, e o grito estava preso na garganta de cada um dos três. Em seus últimos pensamentos Pedro maldizia sua desobediência, enquanto via se projetar sobre eles um grande focinho de réptil.

Foram exatas três bocadas, e a bruxa dos cabelos de fogo engoliu uma por uma das crianças. E como era feia aquela bruxa protuberante, na forma de um imenso jacaré, maltrapilha, gelada e fedorenta. Porém, saciada, até a próxima criança desobediente resolver visitar-lhe.

Douglas Eralldo
Enviado por Douglas Eralldo em 09/08/2010
Código do texto: T2427836
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