O gaúcho de olhos de fogo

Fezes de cavalo nas ruas é o indício que chegou setembro nos pampas ao sul do Brasil, um pouco mais acima da argentina. Nestas noites frias de chuvisqueiro trançado e vento que faz gelar até o mais calorento dos amantes afasta todo mundo das ruas, e os andarilhos mais valentes se enfurnam em galpões de madeira, que por carinho chamam de CTG. A bailanta que avança a madrugada, é a oportunidade para que o vil ser a espreita, ataque os últimos peões a deixar o festejo.

Naquela segunda-feira Natércio Duarte levara sua prenda, que é como os gaúchos chamam suas mulheres para a abertura da semana farroupilha. O aceno ao patrão deu início ao regresso para casa depois de uma churrascada regada à cerveja e muita dança, não capaz de lhe fadigar as pernas rotundas. Natércio era um destes homens fortes, alto e protuberante, muitos o temiam. E naquela época do ano era ainda mais perigoso, com sua adaga às costas, não havia inimigo a importuná-lo.

Mas naquela noite, alguém o olhava.

O gaúcho moderno ocupa o cavalo mais nos desfiles que para outra coisa. E para Natércio, funcionário público, era só pra isso mesmo que servia o animal. Assim entrou em seu carro confortável, ligou o ar quente, e iniciou a interrompida jornada para sua casa.

Interrompida jornada?

Muito crêem que só se morre quando chegada á hora. Natércio muitas vezes insinuara tal frase. Então, aquela data deveria ser a que registrava no livro que tudo registra que Natércio partiria para outro plano. E a condução lhe vinha no melhor estilo gaudério, á cavalo.

A perseguição demorou a ser percebida, pois muitos ortodoxos preferem o cavalo á outra condução durante a semana farroupilha. Por isso o tropel acelerado não chamou a atenção de Natércio. “Enchem a bunda de cachaça e saem pela madrugada fazendo arruaça”. Falou para a esposa enquanto fitava o cavaleiro pelo retrovisor do carro.

Ao longe, e sob a parca iluminação pública de pequena cidade, apenas as siluetas podiam ser distinguidas. O peão lhe parecia alguém muito alto. Não vira ninguém com aquela estatura na festa. Ao passo que os dois se aproximavam do carro, Natércio contemplou a beleza do tordilho negro cavalgado abruptamente por seu peão. Como um raio a dupla cruzou pelo carro, e cinqüenta metros a frente o gaúcho empinou o animal, fazendo-o relinchar como nunca antes Natércio ouvira um cavalo relinchar.

Os pneus do carro também gritaram, acionados pelo freio, pisado bruscamente pelo motorista. Todo gaúcho é bravo por natureza, e com o sangue entupindo suas veias, Natércio desceu do veículo com a adaga em punho. “Seu peão de merda!”. Protestou.

O chapéu do gaúcho que apeava do tordilho escondia as feições de seu rosto, encoberta pelas sombras. Mesmo com cabisbaixo a soturna criatura, trajada de uma pilcha tão negra quanto petróleo bruto era extremamente alta. Natércio partiu com virulência contra a figura sinistra que permanecia impassível. Estavam prontos para um duelo, e menos de quinze metros o separavam.

Então, quando Natércio estava a poucos segundos de ter condições de estocar a criatura com sua adaga, o sombrio começo a revelar-se erguendo lentamente seu rosto. Tinha traços esquálidos como quem portasse a peste negra, alguém tão próximo a morte, capaz de inclusive ser sua porta voz.

Mas o que paralisou Natércio não foram suas linhas cadavéricas. Foram seus olhos, que de negros como jabuticaba, foi sendo tomado por uma cor alaranjada, incandescente como fogo. O corpo de Natércio enrijeceu-se, e hipnotizado pelas chamas que se avolumavam sob o chapéu estagnou-se como uma estátua sem vida. A criatura agora era tomada por um turbilhão de chamas que circulavam seu corpo magérrimo, e como passos planejados de um balé, envolveram a face horrorizada de Natércio.

Por meio minuto, uma fogueira, como aquelas erguidas em São João iluminou a rua, e quebrou as trevas que a envolvia.

E tudo findou com o sopro de um vento gelado, e todo o fogaréu dissipou-se como se fosse engolido pelo horripilante peão sombrio, que montou sobre seu cavalo e partiu em trote manso, como uma fera saciada após matar sua fome. A viúva trancada num manicômio tenta alertar, mesmo assim muitos gaúchos se aventuram e desaparecem nestas noites geladas, e não raro, são encontrados como Natércio, mortos, murchos, e com o rosto tomado pelo horror, que só as almas roubadas produzem quando partem.

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Douglas Eralldo
Enviado por Douglas Eralldo em 14/09/2010
Código do texto: T2497732
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