Olhos Felinos

Naquela noite sem lua tudo o que eu não desejava aconteceria, e por mais que eu negasse meus instintos, eu mataria novamente. E não seria por necessidade, por fome, pelo ímpeto da caça... Seria para minha simples diversão... Era da minha natureza... Era minha maldição...

Não sei precisar como tudo começou. Mas depois da primeira vez, nunca mais consegui parar, e ao ciclo de quatro luas, eu mais uma vez era invocado a minha porção animal.

No entanto não tome conclusões precipitadas. Eu não sou lobisomem, não sou descendente de Licaão. Aliás, nunca vi um para ser honesto, mas enfim, se a aberração em que me tornei era fato, quem seria eu para duvidar de licantropos. Já tinha meus próprios problemas para resolver. Mas como todos sabem nunca fui bom em resolver problemas.

No início, o gosto de sangue, e as carnes entre meus dentes incomodavam a cada vez que acordava nu, em uma rua qualquer da cidade. Focava sabendo das atrocidades pelos jornais sensacionalistas, se bem que também demorei a ligar os fatos uns aos outros. Nunca fui um dos primeiros em tempos de escola.

Nunca fui grande coisa. Mesmo assim a vida de oficial administrativo numa multinacional, o salário mediano, e o apartamento pequeno me eram suficientes. Sinto falta disso, mas com o crescimento das mortes, minha permanência na cidade foi se tornando impossível. Mais cedo ou mais tarde chegariam a mim, e quem poderia crer em meu depoimento? Quem poderia acreditar em minha maldição? E este era o único testemunho que tinha a dar.

Não que isso me absolvesse das mortes, mas por um bom tempo tentei prender a mim mesmo, e a fera que eclodia em dias que a lua não banhava com suas mãos prateadas o seio terrestre. Porém, nenhuma tranca e nenhum artefato que tentei usar para não permitir meus passeios noturnos dias acabou funcionando.

A metamorfose era brutal.

Acontece sempre por volta das 19:00. Há alguma relação inexplicável entre o horário e a mutação. Mas é exatamente assim: Uma angústia invade meu peito, num prelúdio do mal que me aguarda para os próximos sete dias. A tez clara – Se bem que ultimamente a falta de higiene a escureceu – vai sendo tomada por pêlos, felpudos e macios. O rosto vai tomando uma forma oval, bigodes de fios compridos e brancos crescem, e meus ossos se remexem em meu interior provocando contrações indescritíveis. Meus membros se alteram, e nos superiores minha mão é tomada por afiadíssimas e mortais garras. As orelhas felpudas ganham formas pontiagudas, e de poder auditivo incomparável a minha forma humana.

A metamorfose bestial mudava minha vida a cada ciclo da lua. Restou-me o exílio ao campo, onde o número de vítimas era menor. Na cidade, jornais já falavam em uma centena as vítimas do maníaco em série. No entanto, nem mesmo o que fazia após a transformação, ou até mesmo a aparência animalesca que me revelavam os espelhos, incomodava-me mais que aquele par de olhos. Olhos felinos. Amaldiçoados. Glóbulos como bola de gude. Um vidro tomado de tons alaranjados como as fogueiras incendiadas por Lúcifer no inferno, e cortado ao meio por uma listra negra vertical, como os olhos maldosos dos senhores sombrios das lendas.

Aquele para de olhos eram a prova cabal de minha malignidade. De minha porção de besta, que eclodia na lua nova.

Faltava pouco para a metamorfose iniciar. O barraco em que morava na fazenda não tinha tranca alguma. Estava tudo muito bagunçado, e o fogão à lenha queimava brandamente. A chaleira evaporava seu líquido quando as primeiras contrações iniciaram.

O exílio tinha poupado muitas vidas. A vida campeira me permitia brincar com bois e roedores maiores como capivaras. Mas naquela noite meus “brinquedos” preferidos estariam á disposição, mesmo com todos os avisos de perigo que alertei o jovem filho dono da fazenda, ele me ignorou.

Uma orgia com ele, dois amigos e uma dúzia de meninas fáceis tinha sido combinada há dias. Ele não quis desmarcar, não vendo perigo em minhas fantasiosas teorias para o ataque ao rebanho no último mês.

Sua teimosia seria minha diversão. Gatos gostam de brincar. O sabor do alimento é o que menos importa. O que vale para nós é mesmo o prazer que a caça proporciona. Brincar com corpos me dava o mesmo êxtase que tinham os pequeninos com um novelo de lã, ou um ratinho perdido. Eu não sou vidente, mas sabia que daqui a sete dias acordaria nu em algum ponto da fazenda, e aquela turma toda morta.

Douglas Eralldo
Enviado por Douglas Eralldo em 22/09/2010
Reeditado em 22/09/2010
Código do texto: T2513152
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