Noite Obscura

O primeiro a acordar quando os malditos sons começavam era sempre a garota Bianca. Acordava assustada e nervosa. Mas o que seria aqueles sons?

O namorado Maciel, dormia como uma pedra virado para parede. Como ele não acordava com aquele barulho – era algo que Bianca não compreendia. Os sons se pareciam com gemidos – o que levou a suspeita de: serem um casal fazendo amor, pensara Bianca. Mas não. Não era uma mulher, apesar dos gemidos serem familiarmente femininos.

Bianca sacudiu o braço do namorado bruscamente:

– Maciel... Acorde. Começou de novo.

O jovem mal abriu os olhos.

– Maciel! – chamou Bianca, mais alto.

– Aaaannnhh...? – balbuciou o sonolento rapaz – Me deixe dormir...

Em algum lugar na escuridão do quintal da casa, um gato soltou um longo e agudo miado. Bianca virou o rosto para lá, assustada. Deu um pontapé na coluna de Maciel.

– Ei! – resmungou Maciel, se virando para Bianca com a mão nas costas – O que porra está fazendo?! Puta merda Bianca, tenho que trabalhar amanhã!

– Fique quieto! – mandou ela, olhando para os lados – Aquele barulho começou de novo. E agora a pouco ouvi uma mulher gritando, vou chamar a polícia!

Maciel enfim levou a sério. Sentou-se na cama e rapidamente agarrou a mão de Bianca a centímetros de tirar o fone do gancho do telefone sobre a cômoda. A namorada lançou-lhe um olhar confuso e irritado.

– Me solta!

– Não. Não pode chamar a polícia, garota burra. Enlouqueceu? Por acaso esqueceu dos duzentos quilos de maconha escondido na garagem?

Bianca fez que não, cabisbaixa. Maciel prosseguiu colocando de volta o fone no gancho:

– E pode crer que os "homens" levarão você também. Quer ir pra cadeia? Cagar na frente de todas as outras mulheres?

Ela meneou a cabeça negativamente, cabisbaixa como uma escrava.

– Então fique quieta e não diga mais nada. Vamos acabar com isso de uma vez... – terminou Maciel se levantando.

Bianca olhou para ele alarmada:

– Aonde você vai? O que vai fazer?

– Vamos ver o seu fantasminha...

Bianca fechou a cara e fez bico.

– Ah... Não. Não vou não! Pode ir se quiser.

Maciel agarrou-a pelos cabelos.

– Você vai sim. Anda. Veste a roupa.

30 Minutos depois...

A casa que Bianca e Maciel pretendiam explorar, que para eles era a casa de um vizinho barulhento e festivo, na verdade se tratava de uma casa abandonada e devidamente isolada pelo centro de zoneamento da cidade. O motivo: as várias reclamações dos antigos moradores sobre pragas no terreno e na própria casa; ratos, cobras, escorpiões, morcegos e aranhas. Aranhas grotescas! – como afirmara a última moradora ao qual o nome é irrelevante nesta história. Desde então, há mais de 6 anos, ninguém teve coragem de morar na casa; apesar do dono, um cara misterioso e esquisito, oferecer um preço favoravelmente baixo.

Bianca esfregava os braços cobertos pela blusa de moletom – uma porcaria de blusa que de nada amenizava o frio – enquanto Maciel tentava comicamente fazer funcionar uma velha lanterna de pesca.

– É isso que dá comprar essas "porcarias" em camelôs – reclamou, dando batidinhas na lanterna.

Bianca soltou uma risadinha e se aproximou do namorado. Seus cabelos loiros cor de cobre brilhavam à luz da lua. Os dois se encontravam em frente de sua residência. A rua estava deserta. As luzes dos postes criavam sombras sinistras nas latas amassadas transbordando de lixo nos cantos das casas.

– Me dá aqui – pediu ela, tirando delicadamente a lanterna das mãos calejadas de calos de Maciel. Bianca retirou as pilhas e colocou-as novamente. Como imaginava, Maciel as tinha colocado de forma errada, mas não disse nada a ele. Não queria levar uma bofetada.

– Vamos logo – falou Maciel, tomando a lanterna de Bianca.

Bianca o seguiu pelo meio da rua. A casa do vizinho ficava exatamente nos fundos da casa do casal de modo que eles teriam que contornar o quarteirão até lá.

Depois de uns 10 minutos de caminhada lenta e silenciosa chegaram enfim ao portão de grade da casa. Uma placa ao lado de uma grossa corrente com cadeado lia-se: MANTENHA DISTÂNCIA - CENTRO DE ZONEAMENTO

– É aqui – anunciou Maciel, olhando para dentro do quintal com o auxílio da lanterna. Bianca aguardava a uma distância segura. Tinha uma expressão amedrontada no rosto. Ela mantinha as mãos cruzadas sobre a virilha; como uma garotinha pronta pra recitar um versinho na escola.

– Essa lanterna é foda mesmo – reclamou Maciel, ainda olhando pelo portão – Não consigo ver a casa daqui.

Maciel afastou-se do portão e observou o muro. Não era muito alto. Daria para pular e puxar Bianca depois.

– Vou subir – anunciou ele, entregando a lanterna à Bianca.

– Por que não deixamos isso pra lá e vamos embora, Maciel... Hein? Estou com frio.

Maciel tomou distância, correu e escalou o muro com a habilidade de um moleque de rua.

– Por que você nunca fecha a boca?! – vociferou ele, erguendo-se.

Bianca aguardou que o namorado se acomodasse no topo do muro. Quando ele deitou e estendeu o braço para ela, a garota hesitou. Não conseguiria de forma alguma saltar ali.

– Não vou conseguir – disse ela.

– Para de falar merda e pula logo! Anda! – berrou Maciel.

Resmungando impropérios Bianca enfiou a lanterna nos seios e chegou próximo ao muro. Depois de duas tentativas frustradas Maciel conseguiu segurá-la; erguendo-a logo em seguida.

Segundos depois o casal se encontrava no terreno ermo do quintal. Apesar da sujeira e o alto mato, uma trilha levava à casa. O que era estranho, já que a casa, como constatou o casal, se encontrava abandonada.

– Alguém ainda vem aqui – observou Maciel.

– Quem? Os agentes da dengue? – arriscou Bianca, em tom de gozação, enquanto caminhavam pela trilha com o matagal alto e cortante.

Maciel, com o auxílio da lanterna, ia à dianteira clareando parcialmente o caminho à frente.

– Só se eles pulam o muro também – disse ele.

Bianca não falou mais nada e limitou-se a seguir o namorado.

Ventava incessantemente fazendo o capim oscilar e as folhas secas na trilha dançarem. Pássaros ocultos pela escuridão piavam em árvores que ali cresciam.

Passado uns minutos finalmente chegaram a casa. Uma casa velha caindo aos pedaços. A fachada era branca com telhado colonial. A porta de metal que parecia não ser aberta há anos – o que com certeza era verdade. Uma cadeira de balanço rangia com o vento numa varanda empoeirada de madeira.

– Bem... Aqui vamos nós – disse Maciel, lacônico. Tinha acabado de se lembrar de um desenho animado em que assistia nas manhãs. O personagem sempre dizia isso: "Aqui vamos nós”, um pensamento estúpido devido às circunstâncias.

Bianca, no entanto, arrependera-se de ter pelo menos aceitado a ideia de virem para aquele lugar. Estava tremendo de medo. O escuro, o frio, sons furtivos vindo da casa. O último como se uma enorme coisa que antes dormia tivesse despertado e se esgueirado para as profundezas obscuras da casa. Assustador demais para uma mocinha jovem e delicada como ela.

– Acho melhor irmos embora, Maciel. – disse ela contidamente. O medo que tinha do namorado era grande, mas não superava o que sentia naquele momento.

– Você deve está brincando, né? – perguntou ele, mirando o facho de luz bem no meio do rosto vermelho de Bianca. – Você não me fez vir aqui apenas para darmos uma olhada e sairmos correndo não é?

Ele mantinha o facho contra o rosto de Bianca o tempo todo. Sentia prazer em torturar a pobre garota. Um homem com uma mente meio perturbada. Uma criança que deveria ter sido levada a um psicólogo quando ainda menor.

Bianca quis protestar. Dizer-lhe que a ideia de virem ali fora inteiramente dele, mas não era burra o bastante para contrariar Maciel.

Final

Era nesses momentos que ela se perguntava do porquê de ainda estar com ele. Maciel era um cara agressivo, grosso e nunca a tratava com delicadeza. Se não temesse tanto o namorado, ela terminaria com ele.

– Vou abrir – disse Maciel, segurando na maçaneta da porta e entregando a lanterna para Bianca.

Bianca tomou a lanterna da mão do namorado e mirou o facho contra a porta metálica. Seu medo era delatado pela luz vacilante da lanterna.

– Para de tremer essa porra, Bianca!

– Desculpa...

Maciel girou a maçaneta, esta rangeu, mas não cedeu. Os longos anos que se passaram trataram de preservar aquele local de todas as formas.

– Argh! Merda! Está enferrujada. Não consigo abrir.

– Então não tem jeito, né? Vamos embora... – disse Bianca, esperançosa.

Maciel riu. Tirou a lanterna das mãos de Bianca e desceu as escadas da varanda.

– Claro que não. Vou procurar alguma coisa pra quebrar isso aí.

Bianca suspirou e abraçou o corpo. Ficou observando o facho da lanterna reluzindo em pedaços de metal espalhados pelo terreno capinoso. Segundos se passaram e ela perdeu Maciel de vista.

Ela olhou em volta. A cadeira rangia. Animais corriam pelo terreno sorrateiramente.

– Maciel...? – chamou ela baixinho.

– Estou aqui – disse ele, saindo detrás de um arbusto – Veja o que encontrei.

Ele mostrou uma barra de ferro a ela e subiu as escadas. Entregou a lanterna a Bianca e desferiu um golpe potente contra a maçaneta. A ferrugem acumulada por anos contribuiu para que a maçaneta se quebrasse liberando assim, a porta.

– Vem – chamou ele – Vamos entrar logo. Aposto que há algo de valor aqui dentro.

Retesando os músculos, Bianca seguiu o namorado de perto. Quando passaram pelo vão da porta Maciel parou.

– Nossa – admirou-se ele – Veja a sujeira deste lugar.

Bianca cerrou os olhos através da penumbra. Por um instante não conseguiu distinguir nada mais que sombras grotescas cobertas com algo viscoso. Estava prestes a gritar quando percebeu que as sombras eram na verdade, móveis e a substância viscosa, apenas plásticos transparentes.

Ela viu quadros nas paredes quando Maciel iluminou-os, mas não podia ver as fotos por causa da quantidade incrível de poeira. Havia também taças de metal em cima de prateleiras e, em um canto, livros grossos cobertos de teias de aranha.

– Seja quem for que morou aqui. Eles eram ricos – ela comentou inaudivelmente.

– Tá vendo? Eu te disse que era uma boa idéia – disse Maciel, um pouco alto demais.

– Fala baixo! – advertiu Bianca, temendo que a voz deles acordasse algo oculto na casa.

– Aah – resmungou Maciel e deu alguns passos pelo aposento.

A princípio, não havia nada de anormal na casa. Exceto os móveis e objetos abandonados. As taças de metal com certeza não poderiam ser de prata. Ninguém deixaria objetos assim se fosse se mudar.

– Pronto – disse Bianca – Agora vamos embora.

Maciel não deu ouvidos. Algo estranho chamou-lhe a atenção. Ele apontou a lanterna em direção ao piso e um líquido viscoso e verde reluziu por instantes. Seguia numa trilha uniforme em direção ao outro cômodo.

– Veja isso, Bianca.

– O quê?

– Olha.

Bianca inclinou-se e viu o líquido. Deu um grito e recuou assustada.

– Que foi?! – indagou Maciel, virando-se para ela.

– Sangue!

– Deixa de ser burra! Não é sangue. É... Outra coisa.

Maciel começou a seguir a trilha com a lanterna e viu que ela dava mesmo para ou outro cômodo. Ele não admitia, mas também estava assustado.

– Vem. Vou ver o que é isso.

Bianca seguiu Maciel passando pelo vão da porta. Este outro cômodo era uma cozinha. A cozinha mais imunda que Bianca viu na vida. Imediatamente ela levou a manga da blusa no nariz para bloquear o fedor.

– Putz, que catinga! – disse Maciel, tampando o nariz como pôde.

Ele explorou o lugar com a lanterna passando por uma pia encardida com o que pareciam fezes humanas, comida estragada em cima de uma mesa de madeira no centro e uma família de ratos em um armário de louças.

– Ai meu Deus, que nojo – falou Bianca com repulsa.

Passado a impressão de choque, Maciel voltou seu interesse para a trilha viscosa. Ela seguia por todo o piso de cerâmica e dava uma volta na mesa de jantar.

Ouviu-se um ruído.

– Que foi isso?!

– Calma, não começa a gritar, porra! – disse Maciel – Olha o tanto de ratos que tem aqui. Deve ter sido um deles. Quer parar de se assustar com qualquer merda que acontece? Que inferno!

Maciel seguiu a trilha até que ela parou em uma porta no lado oposto da cozinha. Dava exatamente por debaixo de uma porta de aço com uma roda de manivela parecida com uma escotilha.

– Mas quem teria isso dentro de casa? – ele indagou.

– Vai ver eles guardavam carne congelada aí.

Ouviu-se outro ruído. Dessa vez mais alto e mais perceptível.

– Vambora, Maciel. Vambora, por favor... – implorou ela, choramingando.

Maciel estava cedendo ao medo. A brincadeira tinha perdido a graça. Tinha mesmo alguma coisa nojenta naquela casa. Ele não dizia fantasmas ou almas penadas, mas sim algo vivo e perigoso. Um animal que poderia ter entrado na casa para se esconder. Seja o que fosse, ele não ficaria para descobrir.

– Tudo bem – disse ele, ofegante – Vamos embora. Vamos embora.

Ele se virou e parou petrificado. Bianca gemeu.

– Que porra é essa?

No chão, uma poça daquele líquido viscoso havia surgido. Maciel mirou o facho no teto e viu que gotejava. Sua curiosidade foi atiçada.

– Tem alguma coisa aí em cima.

– Você disse que ia embora – queixou-se Bianca.

– Nós vamos. Beleza? Só vou ver o que há detrás daquela porta. Tome. Pegue a lanterna.

Maciel aproximou-se da porta e testou a roda de manivela colocando a barra de metal entre os sulcos. Não parecia enferrujada, mas muito difícil de abrir. Ele fez força. A porta rangeu, mas a roda não girou um milímetro.

– Arg! – arfou ele – Vou precisar que você me ajude. Deixe a lanterna sobre a mesa e venha aqui.

De cara fechada Bianca obedeceu e segurou a barra de um lado enquanto Maciel segurava do outro.

– No três – anunciou Maciel – Um, dois, três!

Eles forçaram e a princípio pareceu que nada aconteceria então a roda girou. Depois ficou mais fácil e a porta abriu-se para dentro com um som oco.

Eles afastaram-se e Bianca correu para a lanterna.

– Trás a lanterna, Bianca. Não estou vendo nada aqui.

Bianca entregou a lanterna para Maciel e esperou.

– Veja só – disse ele – Tem uma escada aqui. Parece que essa casa tem um sótão ou algo assim.

– E você vai subir – afirmou Bianca.

– Vou.

Bianca suspirou e seguiu Maciel.

A escada era de madeira e rangia a cada passo dos dois. Maciel não tinha mais tanto medo. Era apenas um animal. Ele só veria o que era e iria embora. Nada demais.

O líquido seguia pela escada até onde a vista dava. Não tinha porta no final, mas por causa da escuridão a lanterna não conseguia iluminar mais que dez degraus á frente.

Quando chegaram a cinco degraus de distância eles ouviram o pior som possível. Era praticamente impossível descrevê-lo com precisão. Parecia que algo mole, gigantesco tinha se virado e caído de um lado e depois fugido. Não era deste mundo, pensaram os dois.

– Já chega! – berrou Bianca – Eu vou embora, se você quiser ficar aqui que fique. Não estou nem aí.

Bianca virou-se para ir, mas parou paralisada. Nos degraus da escada e pelas paredes, centenas de aranhas enormes avançavam na direção deles.

Ela gritou recuando e tropeçando em Maciel que até aquele momento não tinha visto. Quando ele se virou soltou um grito rouco.

– Meu Deus! Caramba!

Bianca empurrou as costas de Maciel para que ele subisse as escadas.

– Vai! Sobe! Sobe!

Maciel subiu os degraus em passos longos e logo se via no andar de cima, contudo, na subida rápida, perdera a barra de metal que caiu rolando esmagando algumas aranhas.

Bianca chegou em seguida, em pânico e de olhos fechados. Maciel tinha a lanterna na mão trêmula e olhava para algo no canto do sótão.

Quando Bianca seguiu o mísero facho da luz diante daquela absoluta escuridão, compreendeu o que o assustara tanto. Em toda a extensão da parede, uma teia enorme era habitada por uma aranha gigantesca e anormal. Era coberta de pelos e dos lados do corpo, pernas extras resultado de possíveis mutações pendiam oscilando. O mesmo líquido viscoso escorria de todo seu corpo empoçando o chão ao seu redor. Pelo chão, alguns ossos pequenos, talvez de morcegos que tivessem alimentado a criatura.

Bianca e Maciel recuaram, horrorizados, mas quando sentiram algo mole em seus pés, perceberam que estavam cercados das pequenas aranhas.

Bianca começou a rezar enquanto Maciel tremia de medo. Totalmente em choque.

A aranha gigante desceu da teia preguiçosamente e aproximou-se do casal. Eles nem tentaram reagir quando os filamentos esbranquiçados começaram a cair sobre seus corpos. Rapidamente estavam cobertos. A aranha aproximou-se e devorou aquele maravilhoso jantar que veio até sua toca de tão bom grado...

E em uma outra casa, um casal acorda pela noite com o som de gritos horríveis vindo de uma casa vizinha. A mulher se levanta e chama o marido:

– Fernando? Acorde!

O homem abre os olhos sonolentos.

– Que foi?

– Ouviu esses gritos?

Em tom de brincadeira o homem diz:

– Quer ir lá ver?

Sr Terror
Enviado por Sr Terror em 14/10/2010
Reeditado em 09/05/2012
Código do texto: T2556455
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2010. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.