Enchente

Numa cidade com um rio de verdade, moram pessoas quase que nas margens. As lavadeiras estendem roupas nas cercas perto do rio e, ficam de conversa, comendo debaixo das árvores, rindo e contando casos, enquanto aguardam pelo sol enxugar a roupa. Naquelas conversas de lavadeiras, com o vento quente batendo na pele, havia tempo para um cochilo nas pedras que ficavam à sombra das árvores.

Naqueles descansos, vinham os meninos com suas traquinagens. Meninos, com suas baladeiras, olhos levantados para o céu, seus pés sujos de terra... E algumas roupas no quarador, estendidas ao chão... Os meninos proferiam desculpas apressadas: “Desculpa, tia!”... E as lavadeiras com galhos de plantas a correr no encalço deles... “Vem cá, moleque! Deixa eu te pegar que te ensino a lavar roupa!”

Mas quando se ouviu foi o grito de seu Nélson: “É o rio, escutem só!”

E eu vi de cima da ponte de ferro aquele mundão de água barrenta (em meio aos espantos de todos) chegar até a metade do cercado de seu Nélson e embeber tudo como um grande lago. Meus olhinhos de menina de nove anos ficaram sobressaltados. O tambor de meu coração perdeu o ritmo. Havia, no entanto, algo mais a nos desassossegar – O homem, que pescava de tarrafa mais acima do lugar das lavadeiras, fora levado pelas águas.

Minutos depois, vozes de mulheres ergueram-se em padres- nossos pelas margens do rio. Era como se articulassem dentro de mim: “Pai nosso que estais no Céu...”. Todos seguimos o grande volume de água, margem a margem. “Deus tenha piedade dele!”, ouvíamos das lavadeiras. E repetiram, noite adentro sem resposta do corpo do homem. E dias vieram tristes, até que as árvores foram ganhando folhas...

Eu era apenas uma criança magra saltitando nos dormentes da ponte de ferro... E nunca havia visto o rio com esses ares de selvagem... Assim... O corpo tal engolidor de gente. O que eu conhecia dele eram as águas mansas, até um pouco amarelo-barro em épocas de chuva. Então tive medo. Aquilo não era enchente... Aquilo era o rio metendo os dedos na vida dos homens para reclamar. Eu sei. Eu estava lá.

Teresa Cristina flordecaju
Enviado por Teresa Cristina flordecaju em 11/03/2011
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