GRITOS NA NOITE *

Quando o silêncio da noite vencia os últimos alaridos dos notívagos, os mais recalcitrantes ao sono entregavam-se ao torpor do cansaço, fechando livros, apagando seus televisores, desligando computadores, aprontando-se para o sono, dando por terminadas as atividades de um dia. Luzes se apagavam, imperando absoluta mudez, como se reservando o sossego no descanso dos mortais. Ao longe, ainda vestígios de alguns carros, o vago ladrar de um cão de distante casario, de resto o manto noturno acolhedor descerrava as últimas resistências dos sonâmbulos.

Reinando a paz no condomínio, até que impertinentes gritos, das proximidades, da rua, interrompem a calma, na malemolência dos corpos pesados na sonolência o atrevimento da quebra do descanso, voltando-se aturdidos e acabrunhados, ainda refazendo-se da inusitada perturbação, entre acordados e sonados.

Os sons em berros chegam indistintos, não era pesadelo, ouvia-se nitidamente. Sim, gritos intermitentes, angustiados, faziam-se ouvir em inaudíveis clamores de socorro. Quebrando a calma, no meio da noite mansa, arrepios gelavam as almas. O sono em abalo brusco, momentos de apreensão, luzes furtivas se acendem, ocultos sob cortinas, olhos curiosos vasculham a origem daqueles gritos, querendo perscrutarem de onde,sem se exporem ou demonstrarem-se aos demais. De onde viriam aqueles barulhos intrusos e ousados, aviltando o sossego?

Ninguém aventura-se a abrir janelas, escondendo-se sob os mantos das cortinas.Em cada expressão o estupefato da interrupção do justo recolhimento, vidas atribuladas, cada qual com sua jornada ao amanhecer a serem cumpridas. Silêncios questionadores, lamúrias repetidas, em pausas angustiadas, apelos constrangedores, azos a especulações tenebrosas, espantando e despertando a todos, que mantinham-se, contudo, encarcerados em suas paredes, ocultos sob cortinas, no quebra luzes de abajures.

Ninguém atrevia-se a uma atitude, apenas espectadores daquelas manifestações estranhas, sons de reclamos angustiados de alguém sendo supliciado. Ligar para a polícia, àquelas horas e ter que se identificar, parecia muito a qualquer daqueles observadores furtivos. Atitudes de medos, encurralados em si mesmos, como vendo alguém da coletividade sendo alcançado por um predador, certo alívio de se saber a salvo e protegido, a si e aos seus, quanto aos demais, Deus que cuide de todos.

Claro estava que ouviam os reclamos, mas deles não tomavam parte, restando a cada qual seus problemas, o mais que percebiam era o despertar inusitado, incomodados. De onde viriam os lamentos secos, sofridos, angustiados, lentos em insistentes tormentos? Paralisados em seus cantos, atocaiados, medrosos, ninguém se atrevendo a por as caras de fora, a tomar providências, como se o imprevisto fosse materializar-se a qualquer momento dentro de cada apartamento, fazendo deles vítimas daquele enredo tétrico...

A cidade grande, de todos e de ninguém, palco de mistérios, rodeada de imprevistos, casos melindrosos, estórias escabrosas, mortes horripilantes,assaltos e assassinatos... Ocultos atrás daquelas paredes, sitiados em si mesmos, como se temessem ser descobertos por um perigo iminente, na paranoia coletiva de sentirem-se acuados. Sem perceberem pisavam com cuidado, como se não querendo denunciar sua própria presença, assistiam ou buscavam ver o que se sucedia, aterrados e impotentes, suores frios nas têmporas.

No avançar das horas, superados os sustos momentâneos, embora existentes ainda os lancinantes lamentos, todos buscam o conforto de suas fronteiras de cimento, refúgio no aconchego de seus aposentos, no calor de seus leitos, e desconhecem o que se passa no exterior, algo aliviados de não ser consigo mesmo ou com os seu mais próximos... Aquilo que vinha de fora não lhes pertencia, um outro mundo, outras vidas e realidades. No amanhecer mais um caso , uma nota de jornal na crônica da polícia.

Passado o susto, o pavor da gritaria estridente já não assusta, são ecos presentes e distantes, recuam cômodos, inúteis ecoam os pedidos de socorro, retraem-se todos de incômodos, acostumados já com a rotina dos sinistros, acautelando-se para não se envolverem. Nada sinaliza que os tormentos alheios tenham cessados, as luzes se apagam indiferentes, cortinas se fecham sonolentas, inúteis os apelos exteriores, surdos aos apelos clementes, como se oriundos de uma ficção, um filme de aventuras que se desliga no controle remoto da TV, coisas de um outro mundo...

* TEXTO SELECIONADO PARA FIGURAR NA ANTOLOGIA CRÔNICAS DA CIDADE, MAIO 2011, EDITORA CBJE, RIO DE JANEIRO/RJ