A chuva caí lá fora

Muita gente reclama dos dias chuvosos. Dias esses, nos quais o cinza é a cor que predomina. Alguns dizem que esse tipo de tempo sufoca, deprime. Eu discordo dos que assim pensam. As chuvas ritmadas, constantes são um auxílio para reflexão. É como um convite ao pensar, pensar sobre a vida, os sentimentos e sobre nossos rumos. Na minha cidade isso é especial. O clima úmido daqui proporciona dias e dias de chuva.

Alguém do meu lado pede mais uma cerveja. A minha ainda nem foi tocada. Eu estou olhando para o lado de fora vendo as pequenas gotas d’água caírem em uma poça e indiferenciarem-se num conjunto que reflete a luz de um poste da rua. Essas pequenas gotas caem em solidão e se juntam na poça formando um só grupo homogêneo. A simplicidade da natureza contrasta com a complexidade que atribuímos a vida. A água evapora, eleva-se aos céus, condensa-se e caí na forma de chuva e assim forma a poça que observo. Tão simples e, ao mesmo tempo, tão bonito.

Pelo menos era bonito. Uma bota, ou melhor, um coturno negro de couro repleto de barro pisou na minha poça. Sim, minha poça, só eu a observo com tanto carinho. Mesmo assim o coturno foi insensível e com ferocidade acertou minha poça em cheio. Pequenas gotas separaram-se do grupo espalhando-se na calçada. A lama escorria manchando minha poça. Tudo isso acontecendo em uma fração de segundo. Mas mesmo assim tão nítido que posso descrever com detalhes as voltas cruzadas dos cadarços do coturno sujo que pisava minha poça d’água. Eles estavam firmes, os cadarços, bem amarrados. Eles foram alvo de atenção, quem os amarrou não os fez de maneira mecânica ou apressada, mas sim cuidado e esmero. De quem é o coturno que ofende a mim de forma tão... tão... Idiota?

Os coturnos têm canos altos, feitos de couro e enlameados. Acima deles posso ver meias grossas de lã de cor preta. Elas ultrapassam os joelhos, joelhos roliços por sinal. Não são joelhos de um homem, quem pisou impiedosamente a minha poça é uma mulher. Pouco acima do joelho consigo ver a saia também de lã em cores pretas e vermelhas num quadriculado de tabuleiro de xadrez. A jaqueta de jeans e os cabelos pintados em vermelho como em um desenho animado contrastam com a simplicidade da natureza, com a minha poça e os coturnos sujos e insensíveis com minhas reflexões.

Poderia dizer, que, não era só um par de olhos a observar a entrada do bar, mas sim, pares, vários deles. Todos eles foram atraídos por outro par, este, de olhos negros marcados com uma pintura negra que se destacava entre o vermelho que os circundava como fogo em volta de lenha seca. Cores que chamam atenção. Alguns se assustam, outros se atraem. O certo é que não há indiferença em relação à combinação de vermelho com preto, é quente, provocante, irascível, desobediente, sexy.

Aqueles olhos se ajustam a pouca luz do bar... Piscam para ver melhor. Enquanto isso a chuva caí lá fora como prantos de luto em um ritual fúnebre. Minha cerveja ainda está na metade. A poça continua lá fora a refletir a luz de algum poste da rua, agora mais turva pela lama deixada pelo coturno da dama de cabelos de fogo. Estalido metálico. Alguns olhos arregalados enquanto os meus se fecham, se fecham em serenidade. Talvez até um sorriso tenha surgido em minha face e assim se imortalizado. Mas depois do estouro, nada mais pude ouvir. Ainda restam alguns gritos de pânico na memória, provavelmente algum tipo de ilusão.

A chuva cai lá fora.

Parkxs
Enviado por Parkxs em 13/11/2006
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