Goteira

O relógio de vidro na parede andava devagar, segundo por segundo, as rosas brancas no vaso ao lado do sofá já haviam deixado se exalar qualquer cheiro, o tapete felpudo que cobria o piso da sala não estava mais perfeito, ele disse que viria, mas ele ainda não havia aparecido, os olhos dela já começavam a se encher de lágrimas. As palavras dele refugiavam-na, “Vai ficar tudo bem, nós vamos superar”. Ela sorriu involuntariamente ao lembrar da voz dele.

A campanhinha tocou, uma, duas, três vezes, até ela se situar novamente no presente e no real, olhou a hora no relógio, e o tempo pelo janela, iria chover. Ela foi até a porta em passos demorados, queria deixá-lo apreensivo, tanto quanto ele a deixou. Abriu a porta com o coração fragmentado em suas veias. A rejeição lhe cortou a face, ele trazia a morte consigo, e a segurava com firmeza, apontando para a cabeça dela, “por que”, ela pensou em perguntar, “não”, ela pensou em pedir, “por favor”, ela pensou em implorar, mas como as outras tantas vezes, as palavras desapareceram.

“Sinto muito”, a voz dele era calma, transparente, ela encontrou a voz e balbuciou as palavras como se fossem prece, “então é isso?”, ele apenas sorriu. Ela olhou em volta, querendo guardar tudo na memória, pediu por ajuda em silêncio, suplicou por socorro sem palavras, as lágrimas escorreram e mancharam a face, com um preto que desceu dos olhos e percorreu o rosto, lembrou como tudo fora mágico, lembrou como tudo acabará, se sentiu impotente, frágil, machucada, o vermelho vivo manchou sua roupa, como o mar vermelho se fechando ao seu redor.

Havia implorado por piedade, havia rastejado por uma chance, havia acreditado na mentira, havia tido esperança, mas acabara, como tudo tem que acabar, aquilo também acabou, ela desejou nunca ter acreditado, mas acreditou.

Não se lembrava mais de muito, o som alto lhe estourou os tímpanos, a rachadura que se formou em seu peito, o grito de angustia, a dor insuportável, o lamento, o baque, o chão duro, palavras inaudíveis, dobradiças rangendo, uma porta batendo e frio.

Um relâmpago cortou o céu, ela pudera ver pela janela, um trovão gritou alto, as gotas começaram a cair, uma a uma, pingo por pingo se fez ouvir, bateram no telhado, lentamente, tudo era lento, o tic-tac do relógio era insistente, o relógio de vidro pendurado na parede, a goteira na cozinha, o cão de vizinho que não para de ladrar, a goteira na cozinha, ela odiava aquela goteira, chovia e os pingos caiam, não respeitavam nada ou ninguém, ela odiava aquela goteira.

Rastejou-se até a cozinha, a luz branca criava um ambiente mórbido e sombrio, o frio estava pior no piso de lajota, foi até o armário abaixo da pia, pegou uma tigela grande, voltou de barriga no chão até a goteira, ajeitou a tigela, e se deitou, para esperar, ouvindo o gotejar, lembrou de como aquelas gotas que se instalavam ai cada vez que chovia fizeram vir o primeiro tapa, chorou e riu, dor e graça, e antes que pudesse imaginar ou perceber as moiras já haviam feito o que lhes cabia.

Amanda França
Enviado por Amanda França em 02/06/2011
Reeditado em 01/07/2011
Código do texto: T3010008
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