Abandonada no altar

Clarice era uma moça tão fina, que foi uma verdadeira lástima Ronaldo tê-la abandonado no altar. De fato, o infeliz deixara de aparecer no dia do seu casamento e não fosse um vizinho dele surgir, correndo, igreja adentro, Clarice teria ficado esperando até que o mundo desabasse sobre a sua cabeça ornada com véu e grinalda.

- Ele fugiu! – disse o vizinho, parando diante da noiva atônita, fazendo o sinal da cruz para Nossa Senhora – Eu o vi tomar um carro que saiu cantando os pneus, há quase uma hora atrás.

- Como? – perguntou o pai da noiva, dando um passo para frente, principiando uma vermelhidão medonha na cara inteira – Explique isso direito, homem!

O vizinho, pálido por ter que encarar tal carranca, soltou a língua na hora:

- Bem, seu Gerardo, a questão foi que o Ronaldo fugiu. Fugiu mesmo, senhor. De terno e tudo. Saiu de casa correndo quando aquele carro parou na calçada e sumiu dentro dele. Não tenho bem certeza, mas parecia que ele estava rindo.

- Rindo?

Todos olharam na direção de Clarice, cuja maquiagem escorria dos olhos como sangue preto, uma imagem horrível de se ver.

- Ele estava rindo?

- Ah, sim, estava sim. Sinto muito.

O vizinho estava sentindo uma pena danada da coitadinha. Todos ali estavam.

- Calma, minha filha, deve haver uma boa explicação para isso.

- Ele fugiu, papai! Fugiu de mim!

Lágrimas, mescladas com camadas e mais camadas de rímel preto, delineador e sombra – infelizmente, ela tivera tanta certeza de que iria rir e não chorar, que decidiu usar a maquiagem normal em vez da à prova d’água.

- Ele me abandonou!

Todas as senhoras presentes colocaram a mão sobre a boca, incrédulas, quando Clarice jogou o lindo buquê de rosas brancas no chão, onde ele se espatifou, desmembrado.

- Minha filha, calma!

A mãe, agoniada, tentou abraçar a filha, sendo imediatamente rechaçada por uma Clarice que mais parecia uma harpia de tão ensandecida.

- Ele fugiu de mim!

Sob os olhares penalizados dos convidados, do padre, dos santos de cerâmica importados de uma Itália onde alguns artistas realmente depositam o próprio sangue nas suas obras, Clarice correu desembestada, chorosa, em direção à luz púrpura da praça.

- Ronaldo! Por quê?

Então, gritando o nome do noivo que a abandonara, Clarice tombou sobre o calçamento, numa confusão de panos brancos. E não se levantou mais.

Aconteceu que, alguns meses depois, Ronaldo reapareceu. Trazia consigo uma bela menininha lourinha. Como ele próprio era de uma alvura nórdica muito singular, as pessoas não precisaram matutar muito para admitirem, rancorosamente, que aquela era a sua filha.

Ele se dirigiu, constrangido, à casa daquela que teria sido a sua esposa, não fosse o infeliz ocorrido.

Atendido por um homem que não chegava a lembrar absolutamente coisa alguma do seu ex-futuro-sogro, Ronaldo esperava consertar o que pudesse ser consertado.

- Seu Gerardo...

- Ronaldo.

- Será que eu posso conversar com a Clarice? Por favor? Preciso explicar porque eu não apareci no casamento. Será que posso falar com ela?

Ronaldo, munido de uma explicação que parecia ser bastante razoável sob a sua própria ótica, pretendia realmente se desculpar com Clarice, afinal ela sempre fora um doce de moça e não merecera a cachorrada que ele havia feito.

- Seu Gerardo, esta é Malu, a minha filhinha. Eu não sabia da existência dela até o dia do casamento. Eu sinto muito por ter sumido sem dar explicação.

Seu Gerardo olhou com indiferença para a garotinha que se escondia atrás de uma das pernas do pai.

- A sua filha, é?

- Sim, senhor.

- ...

- Será que eu posso entrar? Preciso falar com Clarice...

- Clarice não mora mais aqui.

Ronaldo sentiu o coração murchar.

- Onde ela mora, então?

Seu Gerardo fez um movimento mecânico apontando para algum ponto além do ombro de Ronaldo.

- Lá.

Ronaldo se virou.

Na direção indicada pelo braço do homem cujo rosto parecia querer se desmanchar havia o cemitério local.

Ronaldo engoliu em seco.

- Lá onde?

- Numa sepultura, seu filho da puta!

A menininha se encolheu e apertou a perna do pai.

- Ela está morta, seu desgraçado! Morreu de tristeza!

Isso não era bem verdade. Clarice morreu ao bater a cabeça no calçamento. Quando a levantaram do chão e a viraram, havia uma feia mossa numa das têmporas. Ela sofrera traumatismo craniano. Se não a tivesse matado, teria feito com que ela babasse pelo o resto da vida.

Mas, isso não teria acontecido se Ronaldo não houvesse desaparecido.

- Seu Gerardo, eu sinto muito! Meu Deus, eu sinto tanto!

Isso era verdade.

Naquela noite, depois de deixar a filhinha dormindo em segurança na sua nova casa, Ronaldo se dirigiu ao cemitério, chorando silenciosamente durante todo o trajeto.

Na igreja, o padre preparava-se para ir dormir quando resolveu verificar a tranca no portal de entrada. Fazia alguns dias que alguém havia entrado e roubado um castiçal de prata de lei do altar da Nossa Senhora. Ele não queria que nada semelhante voltasse a acontecer.

Sob a luz difusa da nave, o sacerdote teve uma incrível surpresa.

No púlpito, todas as imagens sacras choravam lágrimas de sangue.

Diante do túmulo de Clarice, Ronaldo se ajoelhou e alisou a superfície fria da lápide nova, coberta pelo sereno da noite.

- Me perdoe, meu amor.

Em algum lugar, um corvo crocitou.

- Eu queria muito ter me casado com você. Eu te amava tanto...

As suas costas, o som de passos irregulares.

- Quem está aí? – perguntou Ronaldo – Olá?

Uma sombra assomou no corredor entre os túmulos.

- Cráááááááááááá!

Ronaldo girou nos calcanhares, pasmo.

O corvo havia pousado na lápide de sua noiva.

- Cráááááááááááá!

- Ronaldo...

A voz veio da escuridão, num suspiro.

- Você finalmente voltou...

- Clarice?

- Cráááááááááááá!

- Clarice? Meu Deus!

Claudicando, Clarice saiu das sombras, trajava o vestido de noiva imundo, rasgado. Seu rosto conservava as lágrimas negras do dia em que morrera.

- Ronaldo, você voltou... você voltou para mim.

Ela caminhou, derrubando larvas do buraco que havia em um lado da testa.

- Por Deus, Clarice, afaste-se! Afaste-se!

- Vamos casar, meu amor... eu estive esperando por você...

- Não! Por favor, vá embora!

Clarice parou a meio metro de distância, ergueu uma mão para tocar o rosto de Ronaldo e, então, o corvo deu seu último cráááá, raivoso, e voou.

- Você não vai me abandonar agora...

Andhromeda
Enviado por Andhromeda em 03/06/2011
Código do texto: T3012651
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