Névoa

Os olhos parados, a boca aberta, a respiração continua, ele não acreditava, como pudera acontecer aquilo. Olhou para os lados, se certificou de estar sozinho, com sua angustia, com sua profunda tristeza. O breu era total, dos dois lados da rua, um breu noturno, acentuado pela densa neblina que cobria o chão como o manto branco de um recém nascido. Ele olhou para trás, se certificou de que tudo estava certo, ele não havia tido muita dificuldade para colocá-la ali, tinha sido fácil na verdade. Ele havia parado o carro na esquina, já era muito tarde, ninguém prestaria atenção em um homem carregando uma mulher nos braços, ela, coberta por um cobertor marrom, os olhos ainda vivos suplicaram para que ele não a deixasse ali, mas ele não voltaria atrás, não podia, ele a amava, mas aquilo era ridículo, ele tinha que tomar uma providencia, e deixá-la ali seria o melhor para todos. Certificou-se de calçar as luvas, não deixar digitais. Tomou cuidado com os vizinhos, principalmente com a vizinha de porta, que era com toda certeza, e conhecimento de todos do prédio, a mais abelhuda que já viram.

Ele andou até o carro, não olhou para trás, não tinha certeza se conseguiria continuar se o fizesse, mas sabia que era necessário, ele sabia que era aquilo, ou ir preso, e isso ele não suportaria, não, de maneira nenhuma. Não era um assassino, havia sido só um imprevisto, uma discussão que passara dos limites, não aconteceria de novo, nem com ela nem com ninguém. Agora ele teria que dar seguimento à vida, tinha um futuro brilhante pela frente, não jogaria tudo fora por uma noite mal calculada, uma força que ele não conhecia.

Já dentro do carro ele se lembrou da sensação que teve, sempre imaginara como uma coisa horrível, horrenda, nunca poderia ter pensado que aquilo o faria se sentir tão bem, que o doce aroma do sangue dela em suas mãos era tão bom e quente, tão maravilhosamente libertador, aquele era o cessar de gritos, de dores, ele tinha que ser considerado um herói por ter colocado fim naquilo, tinha que ser considerado um verdadeiro herói da pátria.

Parou o carro em frente ao prédio, desceu, tinha que pensar no que dizer, tinha que pensar no que as pessoas acreditariam. Não foi difícil, ela tinha saído de casa naquela noite, iria fazer uma visita surpresa para a mãe, afinal ele a havia deixado no caminho, ele fez o boletim de ocorrência, relatando o desaparecimento, na manhã seguinte, e a alguns quarteirões deixou a bolsa dela com os documentos dentro de uma lixeira, fora cuidadoso, sempre usando luvas e com cuidado que ninguém percebesse, todos acreditaram, a policia disse que fora um assalto que não dera certo, provavelmente ela tentara se defender, fora morta com uma facada na barriga,fora jogada ainda viva, em cima de panos de mendigos que provavelmente vivam ali, mas morreu alguns minutos após. Ele representou seu papel muito bem, até lágrimas escorreram dos olhos dele quando falava dela com as pessoas.

Mudou-se, para uma área mais afastada da cidade, a sensação de liberdade não durou muito, logo foi substituída pelo remorso, nas noites, que ele estava deitado com damas noturnas, a via, sempre branca, nua com sangue escorrendo das entranhas, não tinha medo ou pavor, era apenas um sentimento de profunda raiva que o tomava, puro ódio, batia em quem quer que estivesse perto, sem piedade. Uma noite bateu tanto em uma das mulheres, que o faziam urrar a noite, que a matou, fizera o mesmo que fizera com sua mulher, a abandonara em uma viela, jogou a bolsa em outro canto e sumiu. Volta e meia um corpo era achado na penumbra da noite, prostitutas, donas de casa, colegiais, ele gostava da sensação, do doce do sangue, do pavor nos olhos delas, tudo aquilo era uma experiência única, além de poder vê-la, aquela primeira, toda noite que perdia a linha.

Os olhos parados, a boca aberta, a respiração continua, ele não acreditava, como pudera aquilo acontecer. Olhou para os lados, se certificou de estar sozinho, com sua angustia, com sua profunda tristeza. O breu era total, dos dois lados da rua, um breu noturno, acentuado pela densa neblina que cobria o chão como o manto branco de um recém nascido, segurou firme o revolver, estava cansado, o corpo doía, ela o olhava, bem a frente dele, o sangue escorrendo como sempre das entranhas, ela sorria, tinha aquele jeito doce, sincero, ele gostava disso, ele a amava, depois de alguns segundos as outras apareceram, todas elas, todas sorrindo, todas estavam ali, menos uma, a ultima, ele a deixara para morrer em uma das ruelas da cidade, mas a socorreram antes, a policia viria atrás dele assim que ela acordasse, o levariam, ele não poderia deixar. Depois de alguns segundos, por fim, todas foram embora, só restou uma.

Finalmente estavam só ela e ele, ela envolveu as mãos dele com as suas pálidas e mortas, puxaram o gatilho juntos, os dois, sorridentes.

Amanda França
Enviado por Amanda França em 08/06/2011
Reeditado em 01/07/2011
Código do texto: T3022324
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