Sangue nas mãos

Estava eu sentado à frente de uma árvore frondosa, sua sombra trazia-me confortável abrigo, que ótima sensação de alívio depois de correr tanto. Afinal de contas, eu não podia fazer nada contra aqueles moleques, se eu não fugisse iria levar uma surra. Havia aproximadamente uma hora que eu estava ali, fui forçado a matar aula naquele dia, assim como ocorrera várias vezes. Enquanto estava à sombra, pensava em como tudo aquilo era uma desgraça. Vida injusta, eu era atormentado todos os dias e nem podia dizer nada a ninguém. Fechei meus olhos e encostei minha cabeça no tronco da árvore, pensando sobre tudo o que eu sofria, subitamente caíram sobre mim golpes, socos e pontapés, as pancadas vinham de todos os lados, uma delas acertou-me implacavelmente a cabeça. Caí desacordado.

Quando abri os olhos, parecia-me tudo escuro, o ambiente estava à meia luz, o silêncio era perene, olhei assustado tudo ao meu redor, vi somente paredes e cortinas, percebi que estava num hospital e vi que estava ligado a aparelhos. Eu ouvi passos ao corredor, a porta abriu-se vagarosamente e por ela entrou uma enfermeira alta, magra e de cabelos louros. Aproximou-se de mim, com uma ampola na mão e na outra uma seringa, sugou todo o conteúdo da ampola com a seringa e colocou em meu soro. Então se aproximando disse-me:

- Que bom! Você acordou! Fique tranquilo, está tudo bem!

Acenei com a cabeça e perguntei.

- Eu estou aqui por quê?

Ela respondeu com um ar de espanto.

- Você está aqui há um bom tempo, por que precisa de cuidados, mas não se preocupe!

Sem paciência, perguntei novamente.

- Poxa, por quanto tempo fiquei aqui e o que aconteceu?

Ela deu-me um sorriso e depois fez cara séria e respondeu.

- Você ficou em coma seis meses.

Minha cabeça estava confusa, pesada e os pensamentos alentados. Tentei lembrar-me de quem era, do que havia acontecido, mas não me recordava se quer meu nome. Olhei para o rosto da enfermeira e ela saiu dizendo que iria chamar o médico. Eu estava me sentido cansado. Então fechei os olhos e logo adormeci.

Estava de olhos fechados, uma luz irritava-me os olhos, ouvia barulhos, sons de movimentos e de pessoas que conversavam, fui abrindo aos poucos os olhos e me adaptando a claridade, vi novamente aquele quarto de hospital do dia anterior, girei a cabeça para todos os lados que conseguia e não havia ninguém, mas vi através de uma vidraça, onde em uma das paredes bem ao lado de uma porta, pessoas passando nos corredores e parados ao lado da vidraça, um homem todo de branco, que deduzi ser um médico, ele estava acompanhado por um casal de meia idade, eles conversavam e olhavam para mim, só consegui ouvir uma frase do médico... Vamos fazer mais alguns exames e conforme os resultados, vocês podem leva-lo para casa.

Depois entraram pela porta os três, olharam bem para mim, a mulher tinha um grande sorriso e lagrimas que escorria pelos olhos, o homem olhava-me com um semblante sério e depois desviava o olhar para a mulher. O homem saiu da sala.

O sorriso daquela mulher era tão familiar, porém tentei recordar-me dele e daquela mulher, mas não me lembrava de nada. Aquele homem sério me causou um calafrio. Contudo, quem eram aquelas pessoas? Essa era a pergunta que me atormentava naquele momento. Tentava lembrar-me, forçava a memória, mas nada me vinha. Comecei a suar frio e a sentir uma falta de ar, tentava forçar a lembrança. De repente comecei a ver pontapés e socos que me atingiam, eram vários e de todos os lados, foi então que senti uma pancada na cabeça, uma grande dor. Levei a mão à cabeça, depois a levei ao meu campo de visão, olhei e vi muito sangue, senti uma dor latejante. Abri os olhos, estava novamente naquele quarto de hospital. Aquela mulher segurava-me e bradava... Meu filho! Meu filho! Eu que também gritava e me debatia, parei e olhei para ela, ela me dizia: Meu filho! Acalma-te, mamãe está aqui!

Olhei para ela fixamente!... Minha mãe, essa mulher é minha mãe, como? Nunca a vi antes, daí ao mesmo tempo em que a olhava, tentei pensar em quem era minha mãe, quem eram a minha família, em minha mente não me vinha nada novamente. Segurando-me o médico, deu-me uma injeção e disse que era para acalmar-me, aos poucos me acalmei. O médico perguntou-me:

Você reconhece essas pessoas? Olhei para eles e disse que não.

O médico comentou:

- É como pensei. Perguntou novamente.

Do que você se lembra, então? Por que estava se debatendo?

Olhei para um canto da sala. Aquela mulher e aquele homem estavam lá. Olhei para o médico e disse:

- Lembro-me somente de socos, pancadas e pontapés e também muito sangue em minha cabeça.

Novamente levei a mão sobre minha cabeça, depois olhei para ela, novamente vi sangue em minhas mãos, o médico percebendo, chamou uma enfermeira e pediu que cuidasse do curativo. Ela entrou pela porta, era aquela mesma enfermeira do outro dia. Era muito simpática e conversava comigo.

- Logo você vai para casa e vai ficar tudo bem! Seus pais vão cuidar de você. Vai rever seus amigos e tudo isso vai te ajudar a lembrar-se do que esqueceu. Olhei em direção à vidraça que dava visão para o corredor e vi o médico conversando com meus pais.

Realmente, uma semana depois eu estava em casa, já conseguia me lembrar de algumas coisas: festa de aniversário, alguns momentos com meus pais, tudo era muito estranho, não me lembrava de muitas coisas importantes. Por exemplo, dos carinhos de meus pais, e principalmente quando eu olhava para meu pai, via um olhar que aos pouco se desviava com muita indiferença. Ele demonstrava-se muito distante e recluso.

Eu descobri que meu nome era Carlos Henrique Celestino e que tinha 14 anos, que meu pai era funcionário público federal, ele era gerente de um banco público e por isso eu estudava em um bom colégio. E quanto à escolha, descobri ser bom aluno na maioria das matérias, especialmente em matemática, física, química e biologia. Disseram-me tudo isto, mas lamentavelmente não me recordava de nada.

Chegou o dia da volta às aulas, eu iria descobrir como a vida e severa. Eu iria aprender da maneira mais difícil. Que as informações, muitas vezes, distanciam-se em demasiado dos fatos concretos. Assim como a teoria da prática.

Era uma manhã de segunda-feira e o dia estava ensolarado e muito belo. Estava muito animado, para chegar logo ao colégio, já havia arrumado minha mochila, levava dinheiro para o lanche e minha mãe comprara um tênis novo, da última moda.

Oito horas, cheguei ao colégio, meu pai levou-me de carro até a esquina do colégio, parou o caro, abriu a porta disse-me:

Vê se toma juízo agora moleque! Tenha coragem! Óh! Esse tênis custou caro, cuidado!

Não entendi muito, o que ele disse, saí do carro de presa e fechei a porta.

Caminhei pela calçada até chegar à frente do colégio, olhei de baixo a cima aquele belíssimo colégio, era grandioso. Não sabia nem para onde ir, somente que deveria encontrar o primeiro colegial A. Minha mãe pedira que eu procurasse um inspetor, o senhor Paulo Soares, procurei. Apontaram-me um homem muito alto e forte, que estava perto de uma das entradas dos pavilhões que davam acesso às salas de aula. Fui caminhado até ele, ele estava de costas para mim, eu o chamei:

- Senhor Paulo Soares, bom dia! Por favor, onde fica o primeiro colegial A?

Ele olhou para mim e disse-me:

Senhor Celestino está de volta, como está de saúde?

Respondi que estava tudo bem e ele me acompanhou até a sala. Chegamos à porta de sala, e lá estávamos a bater a porta, pois a aula já havia começado há alguns minutos.

- Com licença professora Juliana! Bom Dia! Disse o Senhor Paulo ao abrir a porta e me colocar para dentro.

Entrei rapidamente e assentei-me ao fundo da sala. Todos olharam para mim durante algum tempo, como se estivessem vendo um fantasma. Alguns sorriam, um garoto que estava sentado ao meu lado direito olhava-me de uma forma estranha.

-Carlos Henrique, seja bem-vindo como está de saúde? Perguntou o garoto ao meu lado direito.

Disse que estava bem e dei um sorriso. Do meu lado esquerdo avistei um garoto ruivo e pequenino que somente me deu um sorriso.

A aula era de matemática e o professor explicava algumas equações, aliás, eu gostei muito, pois tinha muita afinidade com a matéria. Bateu o sinal para o intervalo, a maioria da sala saiu em turbilhão, restando quatro garotos e eu na sala, quando o professor saiu, levantei-me e caminhei em direção à porta, subitamente agarraram-me por trás dois dos garotos e os outros dois ergueram-me as pernas e arrancaram-me os tênis, eu esperneei tentando livrar-me, sacudi de todos os jeitos, mas não tive como escapar. Por fim soltaram-me. Um dos garotos com um dos tênis à mão disse-me:

-Vem pegar de volta se puder! E saiu correndo.

Eu fui ao encalço do garoto que correu por volta de toda à escola. Chegando então a beira de uma cerda de alambrado, parou e disse a mesma frase:

-Vem pegar se puder! Jogou por sobre a cerca o calçado e correu.

Escalei a cerca e recuperei o meu tênis novo. Foi quando percebi que estava somente com um dos tênis. Voltei aflito à sala, chegando lá, os alunos já estavam voltando do intervalo, procurei os quatros moleques, eles estavam sentados, fui tirar satisfação, deram-me um soco no estômago.

O professor adentrou-se à sala, eu já estava em meu lugar de cabeça baixa e sentido muita dor. Sentando-se, o professor sentiu algo duro lhe machucar o traseiro, levantou-se rapidamente e viu sobre a mesa um papel escrito... Professor pederasta merece pé na bunda. Virou-se e viu o meu tênis todo sujo de fezes e de sola virada para cima. Enfurecido voltou-se para a sala e gritou... Quem foi “a peste” que fez isso?!

O Professor dava voltas por toda à sala, ensandecido. Chegando à minha mesa olhou-me como cão danado, parecia até babar. De baixo à cima olhava-me. Vendo que me faltava um dos calçados. Interpelou-me:

-Celestino, não percebes que a falta de um dos tênis lhe incrimina, és pouco inteligente, ou és imbecil mesmo?

Dizendo isto, pegou-me pelo pulso levantando-me de supetão e arrastou-me à diretoria. O diretor me passou o sermão da montanha acrescido de muitas laudas a mais. Depois me enviou a detenção onde fiquei até o fim das aulas.

Quando cheguei à minha casa, papai já sabendo do ocorrido esperava-me na saleta, quando adentrei a porta, imediatamente meu pai me chamou.

Olhei para a porta da saleta, que ficava ao lado esquerdo da copa, caminhei trêmulo, a longos passos pela copa, em direção àquele homem, meu pai, do qual nenhuma lembrança eu tinha. Somente aquele ar de indiferença, que incomodava.

Entrei pela porta, ele me fez um sinal para que eu sentasse à sua frente. Começou a falar:

-Carlos Henrique, o que você fez dessa vez, superou todas as suas idiotices! É claro que sempre lhe faltou algo nesta sua cabeça de bagre, agora depois desse seu coma, lhe faltam os miolos. O que você tem a dizer seu burro?

Quando comecei a falar:

-Pai, foi culpa daqueles moleques...

Levei um sopapo ao queixo que me derrubou ao chão, fiquei ali por um tempo. Meu pai esbravejava, soltava xingamentos... Covarde, maricas, sempre culpas a outrem. Vagabundo, você é uma desgraça para essa família. Dizendo essa batelada e ofensas, saiu deixando-me ao chão.

Levantei-me, andei pela casa, percebi que mamãe não estava, subi para meu quarto e por sob os lençóis da cama, chorei até adormecer, acordando somente no outro dia, com mamãe batendo à porta. Ela entrou e disse... acorde moleque, vamos não demore, pois seu pai tem que ir falar com o diretor e não pode atrasar-se para o trabalho. Eu tentei explicar a ela, mas simplesmente ela virou-se e saiu.

Eu estava muito furioso, meus pais não me escutavam, desci já vestido com meu uniforme e dessa vez com um tênis velho, eu estava transtornado. Começaram a surgir às lembranças como que em cascata, todas as surras que meu pai me dera, recordei-me daqueles moleques desgraçados, vinham-me também as imagens daquele sangue, socos e pontapés. Passei pela cozinha, abri uma gaveta, procurava alguma coisa letal. Achei um punhal muito afiado. Passei rapidamente pela sala de jantar onde minha mãe e meu pai tomavam o café da manhã, eles falaram alguma coisa que não dei atenção, saí pela porta, entrei no carro e esperei lá. Logo meu pai veio muito bravo. Entrou, bateu a porta e não falou nada, olhou para mim com uma cara de nojo e acelerou o carro.

Chegamos à escola, meu pai saiu do carro, deu a volta no carro, abriu a minha porta e arrancou-me de dentro. Arrastou-me e levou-me até o pátio, disse-me para ir para a sala de aula. Fui rapidamente.

Estava sentado em meu lugar, agora me recordava de tudo, das surras, dos rostos dos moleques. Estava ali esperando o momento da vingança, eu queria ver sangue nas mãos novamente, eu ansiava por ele, eu já o via. Entrou Júlio Cesar, aquele que se sentava ao meu lado direito noutro dia, agora ele tinha em minha mente um rosto, eu sabia quem ele era. Ele virou-se para mim e fez um gesto de obscenidades. Aquilo me deixou fora de mim, eu tinha que me vingar, eu tinha que fazer alguma coisa.

Levantei-me vagarosamente, ele estava ali ao meu lado, parei bem à sua frente, estava empunhando a arma, sedento de sangue. Ele olhou-me com um sorriso irônico e disse:

-Bichinha, sente-se antes que eu te acerte a cara.

Olhei para seu abdômen, minha cabeça fervilhava, as imagens de socos, pontapés e do sangue voltaram à mente, não tive dúvida, segurei com mais firmeza o punhal... olhei para a lâmina afiada e para aquele abdômen e fiz um corte preciso, parece que naquele momento o tempo parou...Deram-me um toque no ombro, olhei para o lado vi aquele rosto suave, os cabelos que saiam um pouco para fora da touca cirúrgica e os olhos azuis. Com voz suave e sonora disse-me:

-Doutor não vai estancar o sangramento?

Olhei para minhas mãos e vi aquele mesmo sangue viscoso e carmesim, estanquei o sangramento e encerramos à cirurgia com sucesso. Depois de tantos anos ainda me lembrava daquele episódio do punhal. Tive muita sorte, por que naquele dia, tomaram-me o punhal, antes que eu extirpasse uma preciosa vida humana. Hoje tenho sempre sangue nas mãos, porém hoje ele é símbolo da vida, que é tão suprema preciosidade.

Autor: Fábio Tamburi

Fábio da Silva Tamburi
Enviado por Fábio da Silva Tamburi em 23/07/2011
Reeditado em 02/05/2015
Código do texto: T3114315
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