ADÔNIS

ADÔNIS

—Bem, vamos ao seu caso.

—Insistem em afirmar que estou doido, doutor!

—Doido? Por quê?

—Não sei, dizem que também matei.

—E você matou mesmo?

—Eu não sei. Não gosto de lembrar.

—Mas você matou ou não matou?

—Não sei.

—Qual era a idade dele?

—Acho que tinha uns cinco ou seis anos, ou seria oito. Não me lembro. Só lembro o seu olhar. Um olhar bonito, doutor. Olhar de noite azul. Ele me fitava sorrindo pelos olhos. A alegria se espalhava pelo resto do corpo. Eu não estou doido doutor, é mentira deles. Fui internado porque falo muito e passo as noites acordado, brincando com meus amigos abandonados, deitando com eles pelas calçadas. Isso não é doidice, doutor, é apenas uma maneira de levar essa vida miserável. É verdade que falo muito, mas é só pra mim e meus companheiros. Só eles me compreendem.

—Conte do início. Quero saber como tudo começou.

—Ah! O começo. Muito bem. O senhor vai estranhar doutor, mas foi amor à primeira vista. A gente se amou no primeiro contato. A língua dele roçou o meu pescoço e o meu cheiro incorporou-se à sua alma. Ele tinha a sua cama arrumadinha, com cobertor e tudo, mas sempre vinha pra minha, se enfiando nos lençóis, buscando meu corpo. Sua devoção era total. Nem precisava falar para ser entendido. Bastava fixar o olhar nos seus olhos imensos. Ah! Aqueles olhos de céu aberto, me pedindo uma carícia, uma ordem, um abraço.

—Como era o nome dele?

—Adônis. Um nome bonito para o mais bonito os seres. Tinha que ver a elegância das linhas, o peito erguido, os olhos espertos e atentos a tudo. O senhor pode pensar que realmente enlouqueci, mas o Adônis excedia o natural. Toda manhã ele me trazia o jornal. Logo que terminava a leitura ele se esgueirava por baixo da cama, procurando meus sapatos, pois sabia que tinha de sair para trabalhar. À noite então só vendo. Enquanto eu estudava xadrez ele permanecia ao meu lado, concentrado nos meus movimentos. Gosto muito de xadrez doutor. Até cismei de jogar com o Adônis. Mostrei-lhe um xeque-pastor e ele arreganhou os dentes. Parecia sorrir. Durante dezesseis dias servi ao Adônis, a cada dia um prato associado a uma peça de xadrez. Depois lhe mostrei fotografia dos pratos. De acordo com sua reação fui compondo minhas jogadas, sempre que o lance fosse possível. Fiz excelentes combinações.

—Interessante essa idéia do xadrez com os pratos.

—Sabe doutor, gostaria de saber quem precipitou os fatos. Às vezes penso que fui eu, às vezes penso que foi ele. Ou não foi nenhum de nós, apenas o destino, a fatalidade. O senhor disse que queria saber tudo, desde o início, então tenha paciência que a gente chega lá. Como ia dizendo o Adônis era tudo para mim. Na rua ele era muito mais respeitado do que qualquer policial. Quando a gente passava todos se voltavam para olhar o Adônis. Ele parecia gostar daquela admiração. Estofava o peito e olhava por cima com um ar superior. Eu ficava muito orgulhoso. Um dia um desavisado levantou a mão com rapidez para espantar um marimbondo que passeava pela minha camisa. Foi o suficiente para Adônis quase decepar-lhe a mão. Fiquei com pena do rapaz, mas não pude fazer nada. O bichinho só queria me proteger.

—Mas você pagou despesa médica para o rapaz, não?

—Claro doutor, sou homem justo e gosto de tudo certinho. Mas vamos em frente com a história que ainda tem muita coisa. Olhe doutor, eu gostava tanto daquele danado que passei um tempão com ele em um pequeno apartamento em Boa Viagem. No começo foi uma luta para o pessoal do prédio aceitar, mas o Adônis conquistou todo mundo, principalmente o síndico. E olhe que ele já tinha sido mordido por um cachorro. Quando a moradora do quinto andar viu meu Adônis apanhar nos dentes um saco do supermercado e subir com ele sem deixar cair nada, deixando-o na frente da porta ficou encantada, até chorou emocionada. Bem, a gente se dava muito bem, mas tinha uma coisa doutor: eu não podia levar mulher pra casa. Quando eu arriscava e fazia menção de agarrar alguma, ele rosnava ferozmente, preparando-se para atacar a infeliz.

—Mas você se casou, vejo uma marca de aliança no seu dedo.

—Sim, eu consegui me casar, mas convencer o Adônis a aceitar Leninha foi um trabalho de muita paciência. Ela levou uns seis meses me visitando diariamente, levando comida para ele, até que um dia, finalmente, consegui jogar uma partida de xadrez com ela sem que ele nos perturbasse com seus uivos de ciúme. Aos poucos fui pegando na mão, nos cabelos, e um dia a gente se beijou sob o olhar complacente do Adônis. Daí para o casamento foi rápido. A Lena não tinha ninguém por ela, a não ser uma preta velha que veio morar conosco. Eu estava bem doutor. Tinha um bom emprego como funcionário do governo. Na área de finanças ninguém era melhor do que eu. Com minha competência e esperteza consegui construir uma senhora casa na praia do Janga. Uma maravilha de casa, doutor, toda decorada com pedras portuguesas e azulejos que mandei buscar na Espanha. Meu quarto no primeiro andar tinha uns carrilhões lindos que tocavam quando o vento balançava os sinos. Tinha uma tela belíssima do Gil Vicente, meu escritório…

—Dizem que aquela área de Olinda é muito perigosa, muito ladrão…

—É, mas não me preocupava muito com isso. Eu tinha o Adônis. Ele era muito inteligente doutor. Não comia nada que não fosse dado por mim ou pelo pessoal da casa. Durante a noite ficava rondando, atento ao menor barulho. Uma vez cercou um ladrão, fazendo-o entrar no mar, retendo-o te a chegada da polícia.

—Parece que o bicho era bom mesmo!

—Ponha bom nisso chefe. O Adônis era muito mais gente do que muita gente.

—Então porque você o matou?

—Deixe-me terminar a história, depois o senhor faz o seu julgamento. Como já lhe disse, o animal era muito bom, mas não existe bom sem defeito. O Adônis guardava rancor. Tinha-me falado sobre isso, mas eu não acreditei. Um dia Lena bateu nele, de leve, umas palmadas. Ele obedeceu. Ficou lá no canto, quietinho. Depois de seis meses, mais ou menos, ela foi dar comida para ele. Um simples levantar de voz resultou em uma patada violenta no rosto da pobrezinha. Se eu não tivesse chegado a tempo ele tê-la-ia feito em pedacinhos. Passamos a ter mais cuidado com a maneira de tratar o Adônis. Depois de dois anos sem nada de grave acontecer, Leninha ficou esperando um filho meu. Fiquei muito alegre doutor, afinal ia ser pai, ia ter um ser humano meu. Sangue do meu sangue. No dia em que fiquei sabendo tomei um porre daqueles. Acordei no outro dia com o Adônis lambendo o meu rosto. Não doutor, não me interrompa agora, já estou chegando ao fim, mas antes me deixe falar um pouco da minha filha Rebeca, para que o Senhor possa compreender melhor como e porque tudo aconteceu.

—Rebeca é um nome bíblico…

—Lá vem o senhor me atrapalhando. Eu ia colocar Marlene, em homenagem àquela famosa cantora de rádio da década de cinqüenta.

—Ah! Eu me lembro, mas eu gostava mais da Emilinha Borba, que tinha a voz mais bonita.

—Bem, gosto não se discute. Não coloquei o nome da cantora. Lena me pediu para colocar um nome de mulher que tivesse na bíblia. Perguntei por que e ela me disse que gostaria de homenagear a preta velha que a tinha criado desde o berço. Fora ela que lhe ensinara a ler e escrever, contando as histórias do Velho Testamento. Então Lena me falou de Moisés, um cara que falou cara a cara com Deus; e de Daniel, um copeiro que foi jogado em uma cova de leões famintos, mas que nenhum tocou nele. Falou também de Sansão, um israelita cujo segredo de sua força sobre-humana estava nos cabelos, mas que foi traído por uma mulher chamada Dalila, que lhe cortou os cabelos e o entregou a seus inimigos. Citou muitos nomes de mulheres: Sara, Ana, Miriam, Ester, Rute, Débora, mas fiquei mesmo com Rebeca, por achar o mais interessante. No dia em que ela nasceu Adônis se comportou de uma maneira muito estranha. Primeiro começou a pular no quintal querendo morder alguma coisa invisível no ar. Depois ficou latindo, furioso, olhando em direção ao quarto da menina. Por fim soltou uivos longos e penosos como alguém ferido na alma. Até comentei com Lena: o Adônis deve estar com ciúmes. Fiquei realmente impressionado e com uma terrível premonição.

—E depois?

—Bom, procurei esquecer o acontecido. A menina cresceu e com dois anos era a coisa mais linda do mundo. Passava horas e horas conversando com o animal, amarrando fitas ao redor do pescoço dele, colocava suas bonecas sobre o dorso para que ele as conduzisse à escola, ao supermercado, à praia. Muitas vezes ela brincava tanto que terminava cansada e pegava no sono no colo de Adônis. Ele parecia entender e ficava imóvel, esperando que eu ou Lena viesse levar rebeca para a cama. Uma noite aceitei o convite de um amigo para ouvir uma seresta. O doutor sabe como são essas coisas. Noite de lua cheia, o céu repleto de estelas, as ondas quebrando na areia da praia, a roda de amigos, as músicas antigas muito mais bonitas do que as de hoje. A gente esqueceu o tempo. Lena então me alertou para o adiantado da hora. Eu lhe disse que não havia motivo para preocupação. Com Adônis em casa Rebeca e Mãe Preta não corriam risco nenhum. Mesmo assim, perto das três horas Lena não se conteve. Ameaçou deixar-me ali com os amigos e voltar de táxi para casa. Concordei a contragosto. Entramos no carro e seguimos pela beira-mar. Na beira da praia os coqueiros agitavam-se, inquietos, sob a brisa que vinha do mar. Olhei para o céu e as estrelas tinham desaparecido. Nuvens negras ocultaram a lua e o contorno delas formou a cabeça de um grande urso negro. Um pavor assaltou-me a alma ao lembrar o dia em que Rebeca nascera. Sem a luz da lua tudo era uma terrível escuridão. Ao meu lado Lena tremia o queixo numa expressão de angústia. Tentei espantar o clima pesado cantarolando uma música de Nelson Gonçalves. Acho que foi Boneca de Trapo, mas quem disse que consegui. Afinal chegamos. Havia luz no quarto de Mãe Preta. O mau pressentimento tornou-se mais forte. Ao me aproximar da porta ouvi o latido de Adônis. Um latido estranho, meio cansado. Senti-me melhor. Quando abri a porta… Que susto doutor. Adônis estava com o corpo todo coberto de sangue. Foi horrível. Ele ergueu as patas dianteiras para ame receber, como sempre fazia, e pude ver pedaços de carne entre os seus dentes. Um demônio havia se apossado de Adônis e o levara a despedaçar a minha Rebeca, aproveitando a ausência da gente. Fiquei louco doutor. Na minha mente eu só via minha filhinha sendo arrastada para lá e para cá, sob os dentes daquele miserável. E ele estava ali, doutor, apoiado nos meus braços, com a língua de fora, o sangue escorrendo. Não pude me conter doutor. Apontei o revólver bem no meio dos seus olhos. Estranhamente ele ficou quieto, me olhando com aquele olhar de cão azul que ia até o fundo de minha alma. Ele latiu doutor, um latido fino, cortante, um som que foi se arrastando, se alastrando, se transformando em um longo uivado. Um uivado que até hoje, nas noites de lua cheia, eu posso ouvir, saindo de dentro das palmas dos coqueiros, ou vindo do mar cobrindo as areias como uma mortalha negra. Um uivado meloso, triste, que se espraia pelas ruas contagiando os cães abandonados e me fazendo rolar pelo chão como o mais miserável dos mortais.

—Então você disparou no cachorro?

—Toda a carga do revólver doutor. Ele caiu aos meus pés com um baque surdo. Corri para dentro de casa e o que vejo? Lá no canto da sala, o resto do que parecia ser um corpo humano. Era um homem forte, pude ver pelo volume de suas pernas, mas a cabeça estava quase separada do corpo, os olhos esbugalhados, tudo numa poça de sangue enorme, doutor.

henrique ponttopidan
Enviado por henrique ponttopidan em 06/08/2011
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