O Homem-Pássaro (quase comédia)

Entre namoro e noivado, Soraya e Luiz Henrique estavam juntos há mais de nove anos. Desde o início fora um relacionamento baseado em um companheirismo mútuo, muita amizade, cumplicidade, afeto e tesão – o que, somado, dá naquilo que se costuma denominar amor. A demora no desenlace dessa união aparentemente incomodava mais aos outros, sobretudo aos familiares, do que propriamente ao casal, muito embora, nos últimos tempos, ao contrário de Luiz Henrique, Soraya se exasperasse com o que chamava de falta de um projeto para as suas vidas, sem jamais se dar conta de que talvez fosse precisamente este o projeto de Luiz Henrique: ir vivendo assim, embaixo das asas da mãe, trocando de carro todo ano, mas sem nenhum compromisso mais definitivo e concreto. Foi então que começaram os sonhos.

Quando sua irritação e frustração atingiram o grau máximo naqueles últimos anos, Soraya começou a ter sonhos estranhos. Iniciavam geralmente de modo agradável, feliz, de um modo que até dava gosto continuar mergulhada, saboreando o que acontecia nesse outro plano da realidade. Com o andamento do sonho, porém, a atmosfera se transformava, passava a ser sombria, imprecisa, confusa, enevoada. E culminava invariavelmente no terraço de um prédio e com a aparição súbita de um incrível ser alado. Nesse momento, inexplicavelmente, a angústia e a tensão de Soraya cresciam a tal ponto que ela se agitava na cama até conseguir acordar.

O humor de Soraya começou a se deteriorar rapidamente. Com a persistente repetição do sonho, ou melhor, do desfecho do sonho – porque a ação anterior era sempre diferente, podia se desenrolar num dia ensolarado na praia, num barco fazendo a travessia de um caudaloso rio, no ambiente de trabalho ou na rua, mas Soraya sempre acabava se encaminhando para um terraço, o mesmo terraço sempre, onde então surgia o ser alado.

- Mas como assim um ser alado? – quis saber Mathilde, a melhor amiga de Soraya.

- Não sei. Um homem, com asas.

- Um homem com asas? Tipo um anjo?

Soraya pensou um pouco.

- Não. Um anjo, não – ela olhava para dentro de si, revirando o próprio cérebro, em busca de uma lembrança. – Me parece uma figura mais máscula do que a desses anjos que a gente imagina. Não sei direito.

- Mais máscula? – Mathilde se interessou pelo assunto. Mas preferiu não demonstrar tanta empolgação. – Se bem que um Anjo da Guarda, para nos livrar de todo o mal, deve ser alguém bastante forte, bastante... másculo.

- Você acha?

- É. Esse mundo hoje anda tão perigoso, tão violento, que só mesmo um guerreiro, bem musculoso, com uma lança superpoderosa para nos proteger...

Soraya olhou bem para a amiga, intrigada.

- E muito inteligente também – acrescentou Mathilde, rápido. - E sensível. Afinal, nunca se sabe exatamente por que tipo de situação se vai passar, é ou não é? Uma das piores violências que se pode exercer sobre alguém é domínio intelectual. Não sei se você sabia disso. Por isso é que é muito importante que o nosso Anjo seja sagaz, e esperto.

- Não... Eu sei, eu sei... Mas não é isso... Sei lá... Ele não é exatamente um anjo. Não sei explicar direito.

- Uma figura alada que não é um anjo... Vai dizer que é o Batman?!

- Não. Sem brincadeira. Tem a ver com a sensação que ele me passa.

- Como assim?

- Você vê. Sempre que ele aparece, eu faço tudo para acordar. É uma sensação de perigo iminente, de medo, não sei.

Mathilde encarou Soraya, com os olhos bem arregalados, como se quisesse ver melhor o que se passava na cabeça da amiga.

- Ué. Tenta não acordar. Só para ver onde vai dar esse sonho.

Soraya inclinou a cabeça, pensativa. De noite, procurou seguir o conselho de Mathilde. Conseguiu ir um pouco além do que costumava.

Dessa vez, o sonho começara numa fazenda, um sítio ou algo que o valha e que a confusão dos sonhos sempre impede de precisar. Lá pelas tantas, do meio do prado, das vaquinhas e dos cavalos, apareceu o edifício, altíssimo, imponente. Num instante, mais rápido do que se subisse de elevador, Soraya já estava no alto do terraço que, reparando melhor, ela descobriu ser um heliporto. Em seguida, de repente, surgiu o ser alado.

Soraya se agitou na cama, angustiada. Mas, com o subconsciente programado, não interrompeu o sonho.

O ser alado aproximou-se. Era lindíssimo, alto, ombros largos, peitoral amplo, braços fortes. Ele pegou Soraya pela mão e os dois alçaram um breve vôo. Nesse momento, absolutamente desesperada, Soraya se remexeu tanto na cama que conseguiu acordar.

- Não é um anjo. Agora eu tenho certeza – disse a Mathilde, quando as duas tornaram a se encontrar.

- Não é?

- Não é. Definitivamente, não é. Dessa vez, eu vi bem a cara dele. Não é anjo, tenho certeza. É bonitão, mas tem um ar assim meio... safado. Sabe como?

- Safado? Sei... Quer dizer, acho que sei. Ou melhor, não sei se sei. Você pode explicar melhor, Soraya? Porque não entendi muito bem.

Soraya ficou impaciente – como, aliás, vinha ficando com muita freqüência ultimamente.

- Você não está entendendo, Mathilde? Ele queria me levar a algum lugar. Entendeu agora? Eu que acordei antes. Fiquei com medo.

- Ah... Deixa ver se entendi. O... Como iremos chamá-lo agora que você já sabe que anjo ele não é mais?... Ser alado?... Não. Forma uma cacofonia horrível. Homem... Homem-Pássaro? Que tal? O lindo Homem-Pássaro?

Soraya bufou, contrariada, e não respondeu.

- Bem, o Homem-Pássaro pousou no heliporto e... Aliás, peraí. Ele já está no heliporto quando você chega ou você chega primeiro e o vê pousar?

Soraya comprimiu os lábios, irritada.

- Mathilde, já falei isso milhares de vezes. Eu sempre vou ao heliporto porque sei que ele vai aparecer. Só que das outras vezes, quando ele chegava, eu ficava nervosa e acordava. Dessa vez, não. Dessa vez, eu consegui prolongar o sonho um pouco mais.

- Ah, tá... Então você está lá no heliporto e o Homem-Pássaro chega.

- Isso.

- Mas ele pousa ou surge de algum de lugar?

- Mathilde...

- É que isso pode ser importante para compreensão do sonho.

- Tá bom. Eu acho que ele pousa... É, ele pousa.

- Pousa? Tá. Então ele pousa, pega você pela mão e quer te levar embora. Não é isso? Não entendo porque você não deixa o sonho rolar, Soraya. É só sonho, menina, não está acontecendo de verdade.

- Você não está entendendo. Eu sinto que vai acontecer alguma coisa muito ruim comigo. Eu sei disso.

- Mas você sabe no sonho ou sabe mesmo, na vida real... enquanto pessoa... dormente?

Soraya revirou os olhos, sem paciência.

- Nos dois. No sonho e dormindo, eu sou sempre a mesma pessoa. Isso não acontece contigo? Não é possível.

- Sabe que ultimamente eu nem lembro dos meus sonhos. Às vezes até lembro, mas logo esqueço. Não sei por quê.

- Eu também era assim. Mas esse sonho eu não esqueço. Isso que está me deixando louca.

- É verdade.

- O quê?

- Hãn?

- É verdade o quê? Você acha que eu estou ficando louca? Eu ando um pouco nervosa mesmo, né?

- Não. Desculpe, Soraya. Não foi isso que eu quis dizer. Mas eu acho sim que você poderia procurar um profissional...

- Um psiquiatra?

- É. Quem sabe? Ou pelo menos alguém que saiba interpretar sonhos. Acho que ia te ajudar a desencanar.

- É, né?

- Eu acho. Mas tem uma coisa nesse teu sonho que eu ainda não entendi direito. Por que você acha que o Homem-Pássaro tem um ar safado? Por que ele te passa essa impressão? Só por que ele quer te levar?

- Não, Mathilde. Infelizmente, nem no sonho nem na vida real eu tenho um censor que acusa a aproximação de um canalha, de um safado. Infelizmente, não tenho.

- É, né? Infelizmente mesmo. Nos pouparia tanto sofrimento, né?

- Pois é.

- Mas é o que então? Palpite?

- Palpite, não. Pau duro mesmo.

Mathilde cobriu a boca com a palma da mão, como se estivesse escandalizada.

- Como é?

- Isso aí que você ouviu. O safado do Homem-Pássaro estava com uma ereção enorme. E-nor-me!

- Mas... Muito enorme?

Soraya fez um gesto com as mãos, mostrando as proporções avantajadas do seu ser alado. Depois baixou os olhos, envergonhada.

- Acho que foi por isso que eu não quis ir com ele – confessou.

- Ah, Soraya! Um homem lindo, forte, com uma ereção enorme apontada pra você e que ainda por cima voa e você dispensa?! Agora você vai me desculpar, mas eu tenho que dizer: você só pode estar louca! Deixa o sonho rolar! Eu, hein!...

Naquela noite, Soraya foi dormir ansiosa. Parecia uma adolescente de antigamente na véspera do primeiro encontro. Conduzida pelo Homem-Pássaro, um verdadeiro desconhecido e com uma ereção imensa, aonde aquele sonho poderia levá-la? Ela estremeceu. Pensou em Luiz Henrique. Que bom seria se ele estivesse ali ao seu lado. Certamente, ela não teria sonhos daquele tipo. Meio sem saber porque, tinha a sensação de que, permitindo a seqüência do sonho, estaria o traindo.

Assim que começou a sonhar, na evolução habitual dos acontecimentos, condicionada, Soraya decidiu deixar-se levar pelo Homem-Pássaro.

Desta vez chegou ao heliporto, vindo direto da igreja perto de sua casa, onde assistia à missa e, significativamente, pensava em anjos da guarda e em assunção ao céu. Ela buscou em volta aquela presença viril e alada que tanto vinha mexendo com seus mais íntimos sentimentos. Apesar do desejo de seguir a orientação de Mathilde, não encontrar imediatamente o Homem-Pássaro, produziu em Soraya uma sensação de alívio, como se sentisse livre da obrigação de se entregar a um destino que sequer imaginava qual poderia ser. Afinal, e se as intenções dele fossem cruéis? E se ele a soltasse durante o vôo ou a abandonasse numa ilha deserta?

A sensação de alívio durou pouco. Subitamente, ela o avistou, parado na beira do heliporto, solene e majestoso.

“Tenho que lembrar de contar à Mathilde que dessa vez não o vi pousar, tenho que lembrar de contar isso a ela”, pensou Soraya num rasgo de lucidez, esforçando-se para não acordar.

Imediatamente, ela correu em direção ao Homem-Pássaro. Somente assim, engolindo aquele medo, conseguiria superar a aflição que a consumia.

Ele estendeu os braços, e Soraya atirou-se neles. No instante seguinte, sem que ela sequer pudesse sentir o momento da decolagem, os dois já estavam sobrevoando a orla da cidade.

Uma intensa euforia, quase como o efeito de um orgasmo, dominou-a inteiramente por um breve instante. Então, logo, o pânico venceu-a novamente. E Soraya acordou, sobressaltada.

- Luiz Henrique! Não posso fazer isso com o Luiz Henrique! – ela disse.

Ofegante, Soraya procurou manter os olhos abertos para não sonhar outra vez. Sentia o coração bater forte em seu peito.

- Dessa vez, eu vi que ele não pousou – Soraya disse à Mathilde.

- Ah. Dessa vez você viu – repetiu Mathilde com aquela entonação que se usa para falar com crianças. Ou com doidos.

Porque falar de um sonho como se fosse realidade, esperar por ele como se espera um capítulo de novela, ah!, só podia ser loucura.

- Soraya, tem certeza que você não está fantasiando? Transferindo para os sonhos a persona de alguém que você anda a fim? Aquele motorista de ônibus gatíssimo que você falou que viu outro dia?

- Motorista de ônibus o quê, Mathilde!

- Bom... Não sei. Mas continua, vai. Você viu que ele não pousou.

- Vi. Quer dizer, o que eu não vi foi ele pousar, entendeu? Quando olhei, ele já estava lá, na beirada do heliporto.

- Ã-hã. Entendi, entendi.

- Quer dizer, quando eu olhei primeiro, ele não estava. Depois já estava. Mas pousar, pousar mesmo, eu não vi.

- Então foi tipo uma aparição. Tchãm!

Soraya inclinou a cabeça, um pouco confusa.

- Isso.

O demorado silêncio de Mathilde após uma observação tão importante como aquela, deixou-a ressabiada.

- Você deve estar me achando doida, né? Fala sério. Você acha que eu estou ficando maluca?

Mathilde respirou fundo, buscando coragem para dizer.

- Não... Maluca, maluca, não – ela disse, constatando que, para certas coisas, coragem não vem com o oxigênio que se aspira. – Um pouco nervosa, um pouco estressada de repente... Mas maluca, não. Pelo menos, eu acho que não.

Não foi uma resposta plenamente satisfatória, então Soraya estalou os dedos das mãos, agoniada.

- Mas e aí, conta! Você viu o safadão do Homem-Pássaro na beira do heliporto. E depois?

- Depois... Depois ele me chamou e eu fui correndo...

Soraya parecia em transe.

- Não. Peraí – interrompeu Mathilde. – Chamou como? Não entendi. Então o Homem-Pássaro fala?

Soraya piscou os olhos, atarantada. Não tinha pensado nisso. Mas Mathilde também estava perplexa.

- Na minha modesta ignorância, eu pensei que o Homem-Pássaro por ser pássaro devia... sei lá... cantar, piar, trinar, grasnar... Mas quer dizer que o danado então fala?

- Ah! Mathilde! Você não sabe como é sonho? Não lembro de ter ouvido a voz dele, mas eu senti que ele me chamou. Você está entendendo?

- Tipo assim telepatia?

- Não sei, Mathilde! Não sei como foi. Só sei que ele me chamou e eu fui correndo. Sabe que esse modo como você fala comigo me incomoda muito? Nem sei por que eu te conto essas coisas. Parece que você me acha maluca.

- Bobagem, querida. Todo mundo surta de vez em quando. Liga, não. Lembra aquela vez que eu cismei que o Beto, aquele professor lá da academia, tinha sido meu amante numa outra vida? Foi a maior viagem.

- Lembro. Você achava que tinha sido camareira no palácio de um faraó...

- Isso! E o Beto era o faraó... e transava comigo sem a princesa saber...

- É... Aí um dia você ficou até mais tarde na academia só pra ter certeza de que era ele mesmo o faraó da outra encarnação...

- Hã! E pior que não era. O faraó era superbem dotado, mas o Beto... Que decepção, viu?! Tinha um trocinho de nada, fiiiiiino. Por isso que agora eu acredito quando falam que esses caras que malham muito ficam com o piru atrofiado... É a pura verdade.

Soraya suspirou, mais tranqüila.

- Viajei legal... – completou Mathilde, com certeza pensando mais no faraó do que no Beto.

- Tá vendo? Todo mundo surta – ela emendou.

- Eu sei.

- Então. Mas e o Homem-Pássaro? Fala, vai. Quer dizer que ele te chamou e você foi correndo... E aí? Como ele estava dessa vez?

- Como ele estava? Ah!... Como sempre.

- Huuuuummm... E aí?

- Aí ele estendeu os braços, eu pulei no colo dele e nós saímos voando... Aliás – Soraya arregalou os olhos -, quando cheguei perto dele que eu reparei... As veias dele, muito azuis, saltadas...

- Cheio de veias, é? – Mathilde arreganhou as narinas, excitada. – Coisa linda! Aquela pujança!... Adoro essas coisas, adoro!

- Mathilde! Você está viajando. Estou falando das veias do braço dele. Sabe quando alguém faz muito esforço, levanta muito peso e as veias ficam altas? Assim. Ele é muito forte.

- Soraya – disse Mathilde, aborrecida. – Se ele estava excitado como da outra vez, não tinha outras veias pra você reparar não, meu bem? Tô dizendo... Você não tá bem, você não tá bem... E outra coisa: o raio desse Homem-Pássaro tem braço ou tem asa, afinal?

- Ele tem braços. Fortes.

- Saradão?

- É. Cada músculo! Todo definido. Mas tem asa também.

- Ah, bom. Mas onde? Nas costas?

Soraya hesitou por um segundo, tentando lembrar.

- É... Acho que as asas dele saem das costas... ou fazem parte dos braços... não sei direito. Mas ele tem braços. E tem asas também.

- E o que mais ele tem?

- Como assim?

- Sei lá. Bico, penas, pé de periquito, garras, essas coisas.

- Bom, ele tem cabeça de águia, mas o resto do corpo é de homem. Tem umas penas assim na parte de trás da cabeça e nas asas. O rosto é liso, bem escanhoado. O peito também é liso, sem pelos. E os pés são feito pés de pássaro mesmo, só que enormes.

- Sabe que eu tô simpatizando com esse Homem-Pássaro. Ele tem tudo grande, que maravilha!

Soraya balançou a cabeça, censurando.

- Mas e aí? O safadão te levou pra onde?

- Ah... Nós voamos sobre a orla, em volta do Cristo, perto da Pedra da Gávea...

- Então foi o maior passeio.

- Foi ótimo.

- E?... E?

- E aí eu fiquei ansiosa demais e acabei acordando.

Mathilde piscou os olhos, exageradamente.

- O quê?! Não acredito. Você toma o meu precioso tempo pra no fim me dizer que saiu pra dar uma voltinha com o Homem-Pássaro, andou abraçadinha, agarrada no pescoço dele e não transou com ele? Soraya, você tá maluca, viu? Desculpe falar assim, mas é a verdade. Você tá ma-lu-qui-nha!

- Ah, Mathilde... Você não entende. Me deu uma agonia. Pensei no Luiz Henrique. Não posso fazer uma sacanagem dessa com ele.

- Sacanagem o quê, mulher! Luiz Henrique tá numa boa, junto da mamãezinha dele...

- Eu sei. Mas a gente se ama. Ultimamente, a gente até vem brigando pra caramba, mas a gente se ama. Não posso fazer isso com ele.

- Mas é no sonho, criatura!

- Mesmo assim. Não posso.

Mathilde fez que se afastava, mas voltou.

- Você surtou, Soraya. Surtou. Definitivamente.

- Não é. Você sabe muito bem que esses sonhos para mim são momentos muito... intensos.

- Ah! Não amola! Intenso vai ser rebolar na vara cheia de veia do Homem-Pássaro! Isso que vai ser intenso!

Soraya baixou a cabeça, esfregou as mãos e torceu os dedos, absolutamente consumida por aquela situação.

- E escuta bem o que eu vou te dizer. Não fala comigo enquanto não botar essa periquita pra acasalar com o Homem-Pássaro. Ouviu bem? Não adianta ligar, que eu não vou querer nem saber.

Soraya voltou para casa, angustiada.

Nem naquela, nem nas noites seguinte, porém, o Homem-Pássaro apareceu. Soraya bem que tentava dirigir os sonhos, chegava a encaminhar-se ao heliporto, mas não adiantava; nesse momento, invariavelmente, antes de se deparar com o Homem-Pássaro, a seqüência se rompia e ela acordava.

Em uma semana, aquilo a tinha transformado numa pessoa ainda mais nervosa e frustrada.

Luiz Henrique, por sua vez, permanecia alheio a tudo isso. Soraya não tinha coragem de contar a ele os anseios que a povoavam intimamente.

No auge do descontrole, embora houvesse resistido muito à idéia, ela acabou telefonando para Mathilde. Tinha resolvido procurar a ajuda de um profissional.

- Foi só eu querer para ele desaparecer – ela choramingou, no metrô, durante o percurso até o consultório do psiquiatra. – Será essa a minha sina, tudo o que eu desejo não se realiza?

Mathilde estava preocupada com o estado em que encontrou a amiga.

- Calma, Soraya. Você está nervosa.

- Eu sei que eu estou nervosa, Mathilde, não precisa você me dizer. Se eu não estivesse quase explodindo, não ia procurar um médico. Você não acha?

O tom de voz despertou a atenção de alguns passageiros. As pessoas que estavam perto olharam para as duas, com curiosidade.

- Vai ficar tudo bem – disse Mathilde, ternamente. – Como foi você mesma que o trouxe da primeira vez, você mesma o está afastando agora. Relaxa, querida, relaxa. Já, já o Homem-Pássaro volta e vai te fazer feliz. Você vai ver.

O sujeito que estava perto de onde as duas conversavam olhou-as com uma expressão de estranheza.

Chegando ao consultório, Soraya e Mathilde foram recebidas pela secretária. Na pequena sala de espera, havia mais dois pacientes. Diante da possibilidade de ter que aguardar a sua vez, Soraya novamente se descontrolou.

A secretária a chamou para preencher a ficha.

- A senhora tem hora marcada?

Soraya olhou em volta e riu, sem paciência.

- Escuta aqui, minha filha. Você acha que se eu não tivesse hora marcada ia vir até aqui?

Mathilde levantou-se e tocou o braço da amiga, delicadamente, a fim de acalmá-la.

- Não... Essa fulana acha que eu viria ao psiquiatra sem ter hora marcada, só por prazer, como se ir ao psiquiatra fosse alguma coisa muuuuito agradável...

A secretária não se abalou com aquele rompante.

- É a primeira vez? – perguntou.

Soraya sacudiu a cabeça, enlouquecidamente.

- Por acaso parece que eu tenho cara de louca pra ficar procurando psiquiatra assim, toda hora? Lógico que é a primeira vez!

- Pois não. O seu nome, por favor.

Soraya bufou, irritada.

- Soraya, com ípsilon... Silveira de Castro – disse entredentes, tentando controlar a raiva.

- Soraya Konípson? – repetiu a secretária, desviando os olhos da ficha, sem entender.

- O quê?

- Desculpe, senhora. Não entendi o seu nome. É Soraya Konípson?

Senhora, agora mais essa, senhora!

Soraya debruçou-se sobre o balcão e, antes que Mathilde pudesse fazer alguma coisa, tacou a mão na cara da secretária.

- Que Konípson?! Eu lá tenho cara de Konípson?!

Mathilde balançou entre acudir a secretária e tentar acalmar a amiga. Acabou abraçando Soraya.

- Senta ali, querida. Deixa que eu preencho a sua fichinha, tá?

Soraya ainda resistiu.

Os outros pacientes olhavam, assustados. Na bochecha da secretária, via-se nitidamente a marca do tapa.

- Com ípsilon, sua anta! Ípsilon! Conhece aquela letra do alfabeto grego, conhece?

Soraya, descontrolada, juntou as mãos, com os indicadores apontados para baixo e os polegares afastados e voltados para cima, e gritou:

- Aquela assim, olha. Igual a xereca fedorenta da tua mãe. Sua anta!

A gritaria deu resultado. O psiquiatra veio ver o que estava acontecendo e Soraya acabou sendo atendida na frente dos outros. Pacientes em crise tinham prioridade.

- O que você quer falar comigo assim tão urgente? – perguntou Luiz Henrique, desconfiado, assim que chegou.

- Não é nada disso que você está pensando – disse Mathilde. – É a Soraya.

Os dois estavam na praça de alimentação de um shopping.

Luiz Henrique fez um gesto de impaciência.

- O que tem a Soraya?

- Luiz Henrique, a Soraya anda muito nervosa ultimamente. Não é possível que você não tenha notado.

- Claro que eu notei. A Soraya anda péssima. Não sei mais o que fazer, não sei.

Mathilde encarou o noivo da amiga, demoradamente.

- Luiz Henrique, me diz uma coisa. Você anda fazendo o dever de casa direitinho, não anda?

- Que dever de casa, Mathilde?! Eu, hein ! – ele desconversou. – Sei lá de que dever de casa você está falando...

- Você sabe, Luiz Henrique. Não seja sonso. Você sabe muito bem do que eu estou falando. A Soraya anda tensa, anda desmotivada, está praticamente histérica.

- Eu sei disso. Mas o que eu posso fazer? Já falei que ela deve estar com um princípio de depressão...

- Princípio de depressão, uma ova, Luiz Henrique! Mulher só fica assim nesse estado quando não tem ninguém comendo ela direito. Por isso que estou perguntando: você anda fazendo o dever de casa? Você tá comendo a Soraya direitinho como tem que ser?

Luiz Henrique se agitou.

- Ah! Qual é, Mathilde?! Que papo é esse?

- Responde. A Soraya é minha amiga, eu quero saber.

- Ah! Muito amiga...

Mathilde perscrutou o rosto de Luiz Henrique, com raiva.

- Ela te falou alguma coisa? – ele acabou perguntando, com ar de culpado.

- Luiz Henrique, ontem eu fui ao psiquiatra com a Soraya.

- Psiquiatra? Ela não me falou nada.

- Pois é. E me pediu também que não contasse, mas eu acho que você tem que saber. A Soraya não está bem. O psiquiatra disse que ela está se sentindo muito frustrada, que está com uma enorme carência afetiva e que vem sublimando essa situação de um modo até perigoso.

Luiz Henrique engoliu em seco, preocupado.

- Perigoso como?

- Isso ele não disse, mas é um problema muito sério. Então me fala: vocês não têm transado, não é?

Ele permaneceu em silêncio por alguns segundos.

- Você sabe que não. A Soraya está chata, vive reclamando de tudo... Isso acaba com qualquer tesão. Faz mais de seis meses que a gente não transa.

- Mais de seis meses, Luiz Henrique? Por acaso você sabe o que uma mulher pode fazer quando fica mais de seis meses sem fazer sexo com o namorado?

- O médico disse que ela pode se matar, por exemplo?... Ou então me matar?... Ele falou alguma coisa nesse sentido?

Mathilde balançou a cabeça, desanimada.

- Não, ele não falou nada nesse sentido. Por esse lado você pode ficar tranqüilo. Passou só um calmante...

- Ah... Ainda bem.

- Mas eu vou te dizer o que uma mulher jovem e bonita como a Soraya pode fazer quando fica mais de seis meses sem transar com o namorado. Ela acaba é dando pra outro, seu tonto! Isso é o que acontece. Você não sabia?

Luiz Henrique ficou pasmo.

- Não... A Soraya?... Acredito não... Ela...

- Luiz Henrique!... Nós mulheres queremos ser amadas, meu bem, aprenda isso. Se não for possível, que sejamos ao menos bem comidas. Isso é o que nós todas esperamos dos homens. Que nos proporcionem ótimos orgasmos.

Luiz Henrique franziu a testa, pensativo.

- O que você está me escondendo, Mathilde? Fala de uma vez. A Soraya te disse alguma coisa? Ela está a fim de outro cara?

Mathilde piscou os olhos, saboreando aquele delicioso momento. Diante de si, Luiz Henrique, aquele homem tão sério, tão culto, tão convencido de suas qualidades, era o retrato vivo de um rapaz inseguro, assustado com a possibilidade de estar carregando na testa, sem saber, um belo de um par de chifres.

- Tá ou não? – ele perguntou, quase se desmanchando de agonia.

Mathilde moveu a cabeça, fingindo um ar de gravidade.

- Luiz Henrique, você precisa ser forte... – ela começou.

Forte? Então o chifre deve ser pesado, ele pensou por um instante.

- A Soraya conheceu um cara – prosseguiu Mathilde. – Um piloto de avião, charmosíssimo, todo grandão, forte, bonito...

Luiz Henrique olhou de lado, como quem duvida.

- Não acredita? Pois ele já levou a Soraya pra voar e ela está caidinha pelo manche dele... Por isso que ela anda assim nervosa... não quer te magoar.

- É sério?

Com muito custo, Mathilde tentou manter o ar sério.

- E eu só estou esperando ela dar o aval pra depois pegar esse comandante gostosão também. Você sabe que a Soraya conhece direitinho o tipo de homem que eu gosto, não sabe? Ela testa primeiro, depois eu dou o bote.

Luiz Henrique riu, descontraindo as feições. Ele olhou em volta. Depois estendeu os braços, puxou Mathilde para perto de si e a beijou.

Uma das mãos de Luiz Henrique acariciava as coxas de Mathilde por baixo da mesa há vários minutos quando o seu telefone celular começou a tocar.

- É a Soraya – ele disse, olhando o registro no visor.

- Atende, ué – disse Mathilde. – Se não, ela pode ficar desconfiada de alguma coisa.

Luiz Henrique hesitou por mais alguns segundos. Quando atendeu, antes de falar, ainda puxou um leve pigarro.

- Alô... Alô...

Soraya não respondeu. Estava dentro de um táxi. Preferiu desligar. Não podia desabafar com Luiz Henrique, não podia falar com ele sobre o Homem-Pássaro. Preferiu não falar nada.

- Não respondeu – murmurou Luiz Henrique, olhando para o telefone sem entender.

Dois minutos depois, foi o celular de Mathilde que tocou. Ela viu o nome de Soraya no identificador de chamadas e atendeu rapidamente.

- Oi, Soraya. Tudo bem?

- Tudo bem – respondeu Soraya, intrigada.

Tinha reconhecido o mesmo ruído ambiente de quando ligara para o telefone de Luiz Henrique um pouco antes.

- Onde você está? – perguntou.

- E... E... Eu? – Mathilde gaguejou. – Estou no shopping. E você?

- Por acaso o Luiz Henrique está ai com você, Mathilde?

Mathilde enrijeceu, preocupada.

- O Luiz Henrique?... Não. Por quê? Aconteceu alguma coisa?

- Estranho...

- Que foi?

- Não, nada... Deixa... Você está no shopping, né? Tá bom. Tchau.

Mathilde desligou.

- Ela perguntou se você estava comigo... – disse Mathilde, intrigada.

- Será que ela desconfiou de alguma coisa? – perguntou Luiz Henrique.

- Não sei. A Soraya anda tão esquisita...

Os dois se olharam, preocupados.

- Acho melhor a gente ir embora – decidiu Luiz Henrique.

Mathilde pensou por mais um momento.

- É. É melhor – ela acenou para o garçom. – Vamos pedir a conta.

Nesse momento, Soraya desceu do táxi em frente ao shopping. Estava trêmula e fragilizada.

Alguns minutos depois, quando Luiz Henrique e Mathilde desciam a última escada em direção ao primeiro andar do shopping, Soraya vinha subindo pela escada rolante ao lado.

Entre cochichos e risos, entretidos um com o outro, nem Luiz Henrique, nem Mathilde perceberam que Soraya os via, assombrada.

Soraya sentiu as pernas tremerem. Uma súbita sensação de desmaio quase a derrubou. Duplamente traída. Pelo noivo e pela melhor amiga. Há quanto tempo estaria fazendo papel de boba?

Ela começou a vagar sem rumo pelos corredores do shopping, esbarrando nas pessoas, sem enxergar nada a sua volta. Não tinha mais qualquer ambição. Todas as suas ilusões pareciam ter-se desvanecido. Sentia-se vazia, completamente vazia.

Quando deu por si, estava chegando ao terraço do prédio. Exatamente como nos seus sonhos.

Olhou em volta, atordoada, procurando nem sabia direito o quê.

Sentia o rosto quente em contato com o ar fresco da noite. Andou até a beira do terraço e olhou para baixo. A altura causou-lhe uma leve vertigem. Ela recuou.

Dominou-a então uma momentânea sensação de dèja vu. Aquele momento... quando não se gosta da música que está tocando... o cara com quem se estava flertando foi embora com outra... a pouca cerveja que há é muito disputada e já chega quente... e o pensamento que resta é um só: quero ir embora dessa festa.

Novamente, Soraya teve a impressão de que ia desmaiar. Tentou sentar, para evitar que se machucasse. Ao se curvar, acabou se desequilibrando. Deu dois passos, cambaleando, e despencou em queda livre do alto do terraço. Dessa vez, diferente dos seus sonhos, por mais que se agitasse, não havia do que acordar.

Enquanto, na calçada, Luiz Henrique e Mathilde se separavam para não despertar suspeitas, surgindo de uma sombra, o Homem-Pássaro mergulhou no vazio e recolheu Soraya em seus braços fortes e de veias saltadas.