Cinco horas

"Queria não depender de remédios para dormir, assim, não precisaria de tanto café para conseguir acordar. Preferia que o despertador não tocasse tão cedo, ainda são cinco horas da madrugada e não sei por fui acordado. Acho que esqueci de deixar um bilhete explicando o por que deste horário.

Gostaria que minha casa não fosse cheia de papeis colados com recados para mim mesmo, gostaria de lembrar do momento em que eu os escrevi. Não sei como foram os outros dias, mas, hoje foi particularmente desagradável descobrir meu problema de memória pelo bilhete dentro de minha caneca. O bilhete só me diz que minha memória de curto prazo tem duração de cinco horas e que devo ler o diário, mas, não diz nem mesmo onde a porcaria do diário deveria estar, preciso lembrar de melhorar este bilhete depois do café.

Acabei de ler no diário o que escrevi nos últimos dias, e embora a caligrafia seja a mesma, não parece ser algo que eu escreveria. Queria que minha cabeça não doesse tanto, assim não precisaria ingerir tantos analgésicos, mas, a dor é menor do que o susto ao me olhar no espelho. Meu diário diz que tenho vinte e nove, mas, o espelho me mostra um velho cheio de hematomas. As feridas e cortes ainda estão frescos em meu rosto e em meu peito. Descobri que meus dedos estão quebrados, por isso me maltratam tanto para registrar os pensamentos que tenho. Gostaria de não pensar a respeito, mas é impossível não imaginar que meu diário atual foi roubado, provavelmente pela mesma pessoa que me causou os ferimentos. Sinto como se houvesse levado uma surra na noite anterior, e acho que foi isso mesmo que aconteceu.

Queria ter escrito coisas mais úteis, revirei meus bilhetes, são apenas lembretes de onde estão as coisas banais e avisos para tomar os remédios, nenhum indicando perigo, embora seja evidente que algo errado está acontecendo.

Telefonei para a policia e o policial me chamou pelo nome, riu de mim por que todos os meses, no dia 15 eu conto a mesma história, contou que há tempos não enviam mais policiais para me proteger de minhas paranoias. Contei a ele de meus ferimentos e fui surpreendido com o fato de que todos os dias 14, eu caio da escada por alguma razão... Gostaria de poder acreditar nisto, mas, além da memória, também não tenho muita fé.

Voltei para meu quarto e a caixa de remédios para dormir amassada na penteadeira me chamou atenção. Ainda havia remédios, eu sei que não a amassaria sem motivos. Examinando a caixa, percebi algumas gotas de sangue, provavelmente meu sangue, e um xis em relevo, feito com as unhas. Foi assim que a caixa amassou. Eu fiz o xis por algum motivo. Gostaria de poder lembrar por que...

Procurando pela casa, encontrei um xis desenhado no balde do banheiro. Revirei um por um daqueles papeis imundos que não lembro de ter usado, e encontrei um bilhete amassado para mim mesmo dizendo que um homem vem todos os dias 14 me cobrar a mesma dívida. Não haviam muitos detalhes, mas, sou capaz de imaginar por que caio das escadas sempre nesse dia. Segundo o bilhete já quitei essa dívida anos atrás. O diário antigo que li por engano, fala sobre uma dívida de jogo na última página que não foi arrancada. Reparei que existem 4 números escritos na borda da página. Outros números também aparecem, escrevo-os em sequencia, parecem uma conta bancária. Devem ser minha conta bancária e a senha.

Voltei do banco, tenho em minhas mãos o extrato dos últimos 4 meses, gostaria que a caixa eletrônica me permitisse consultar períodos maiores, mas, pude perceber que todo mês, no mesmo dia, retiro uma grande quantidade de dinheiro. Queria saber como ainda tenho dinheiro na conta, não acho que eu tenha um trabalho remunerado ou que ainda tenha algum parente vivo. Existe um depósito periódico em minha conta que talvez seja uma aposentadoria por meu estado de invalidez, embora, o valor pareça um pouco alto para um simples aposentado. Aparentemente, alguém me visita sempre no dia seguinte para me roubar mais do que a metade.

Tenho certeza que nos espaços em branco das paredes havia bilhetes que me diziam quem eu sou, quem eu fui e por que recebo tanto dinheiro uma vez por mês, ainda posso ver a cola que ficou no lugar de onde eles foram arrancados. Preciso encontrar um lugar seguro, onde ninguém possa roubar minhas memórias, e onde eu não possa acidentalmente as jogar fora como a que escondi no lixo do banheiro. Queria ser mais inteligente para encontrar um lugar onde fatalmente eu precisaria olhar e onde ninguém mais pensaria.

Encontrei um tijolo solto atras do meu armário, ele ocultava uma grande porção de cartas para mim mesmo e outros extratos bancários de anos atrás. Em todos pareço ter revivido o dia de hoje. Queria não ser tão nervoso, assim não tremeria tanto ao ler meu pesadelo recorrente em papeis manchados de sangue e tijolos. Pensei em fazer uma cópia da carta e colocar no buraco, mas, já fiz isso antes e aparentemente não serviu para nada.

O telefone tocou, e uma gentil senhorita me pediu para confirmar o recebimento da indenização mensal. Pelo valor é o mesmo depósito periódico em minha conta bancária. Peço a ela mais detalhes, ela ri como se eu sempre perguntasse a mesma coisa. Aparentemente ajudei o exercito a testar uma nova droga em minha juventude e esta droga destruiu um pedaço importante de meu cérebro. Por isso recebo a indenização até hoje. Tentei pedir ajuda a moça, mas, ela me recomendou ligar para a polícia. Queria que a polícia me desse mais atenção, assim, não precisaria comprar uma arma e tentar resolver esse pesadelo com minhas próprias mãos.

Escrevi bilhetes para mim mesmo, contando o que descobri até agora e colei nos espaços vazios da parede. Vou embrulhar essas folhas que escrevi hoje e levar comigo dentro do sapato, junto com uma pedra para que eu não me esqueça, minha memória não vai durar o suficiente para voltar para minha casa. Quase esqueci de tomar meus remédios, preciso colocar bilhetes mais visíveis sobre isso.”

“Eu estava perdido na rua, e a garçonete de um restaurante me chamou como se me conhecesse. Gostaria de saber quando a conheci. Ela me explicou que que tenho um problema grave no cérebro que faz minha memória durar apenas períodos de cinco horas, e que sempre almoço naquele local. Ela me deu o papel em que estou escrevendo agora, e me disse que sempre escrevo tudo o que acontece. Acho que gostei dela. A comida é excelente, a garçonete parece adivinhar meus pratos favoritos.

Nos meus bolsos encontrei bilhetes dizendo para comprar uma arma. Queria saber no que estava pensando quando escrevi isto. Gostaria que meus dedos não doessem tanto quando seguro o garfo ou a caneta, ou pelo menos me lembrar de como foi que os quebrei.

Senti uma pedra pontiaguda no meu sapato esquerdo e tive vergonha de tirá-lo na frente de todas as pessoas. Fingi que precisava ir ao banheiro e encontrei uma carta que me deixou apavorado. Agora entendo por que preciso comprar uma arma. Queria ter mais detalhes sobre minhas ultimas cinco horas.

Estou me sentindo vigiado, vou esconder esse papel junto com o outro e a pedra, e começar outra vez contando coisas banais para enganar quem quer que seja que eu possa encontrar em seguida.“

“Encontrei duas páginas de memórias em meu sapato esquerdo logo que cheguei em casa. Ainda estou nervoso com o que li. Os bilhetes que devo ter colocado nas paredes de casa foram arrancados, gostaria de poder lembrar quem me trouxe para casa. Meus bolsos estão vazios, nenhum bilhete e nenhuma arma. Alguém roubou minhas memórias e achou que eu não perceberia. Como eu gostaria de lembrar o que escrevi durante a tarde. Queria saber se cheguei a comprar ou não uma arma ou se alguém me desviou do caminho antes disso acontecer.

Já é noite, não é sábio sair agora para comprar uma arma, preciso lembrar de fazer isso amanhã e não confio mais nos bilhetes que colo pelas paredes. Seja lá quem for que me trouxe aqui, deve ter a chave de minha casa, desconfio que a noite alguém entra para me fazer esquecer das coisas. Vou fazer uma cópia dessas memórias, retirando alguns detalhes que podem me comprometer e guardar as originais no buraco atrás do armário. Depois vou colocar uma lasca do tijolo da parede dentro do sapato e dormir com ele. Preciso escrever na palmilha para lembrar de procurar no armário. Vou polvilhar farinha na porta de entrada para ver se amanhã encontro alguma pegada. Os bilhetes dizem que eu preciso, mas, eu queria não precisar de tantos remédios para dormir, assim talvez eu acordasse quando alguém invade minha casa. Vou colocar o despertador para às quatro horas da manhã, talvez, ainda acorde com alguma memória, talvez acorde a tempo de flagrar o invasor. Gostaria de ficar acordado, mas, já não consigo suportar a dor em minha cabeça.

Me ocorre agora que não sei por que tomo esses remédios, nem se eles são realmente medicamentos ou drogas que me mantem nesse estado de memória interrompida. Hoje tentarei suportar a dor e não irei tomá-los.”

“Passaram-se seis horas desde que decidi não tomar meu remédio antes de dormir. Quase não pude dormir, mas, minhas memórias continuam comigo. Não sei quanto tempo isto irá durar, a dor em minha cabeça não parece querer diminuir. Sinto-me tentado a tomar o remédio, mesmo que ele pareça ser o causador de meus problemas. O despertador tocou e eu já estava acordado. Fui até a sala para constatar que a farinha que joguei havia sido varrida e minhas memórias copiadas haviam sido roubadas. Talvez eu tenha dormido mais do que me pareceu, não ouvi ninguém entrar, mas como ainda consigo lembrar, sei que alguém entrou aqui. Não deve voltar mais hoje, imagino que posso registrar minhas memórias sem medo, mas, mesmo assim, guardarei este papel no junto com o tijolo no sapato. Vou voltar a deitar, mas antes, para o caso de minha memória desaparecer como sempre, vou remover os bilhetes sobre os remédios. Trocar a palmilha furada.”

“Acordei e descobri que tenho um problema de memória por causa de um bilhete em minha caneca de café, queria que não fosse verdade, mas parece que todos os dias descubro meu problema assim. Preciso lembrar de melhorar esse bilhete, ele não me diz onde o diário que eu deveria ler. A casa esta cheia de caixas de remédio e não sei de quem são. Existem bilhetes espalhados pela casa sobre todo o tipo de futilidade, mas, nada que me diga algo útil, como quem eu sou, quantos anos tenho ou para que servem estes malditos comprimidos espalhados pela casa!

Encontrei uma pedra em meu sapato, junto com um pequeno texto que me sugere que não devo tomar os remédios, que alguém invadiu minha casa durante a noite para varrer farinha e algo sobre trocar minha palmilha furada.

Tenho farinha sob as unhas, devo ter jogado no chão para revelar os passos do invasor. A pedra parece ter sido arrancada de minha parede. É o tipo de coisa que eu sei que faria se quisesse lembrar de algo, gostaria apenas de ter sido mais esperto com isso. O bilhete me diz para trocar uma palmilha furada, mas, não tenho nenhuma palmilha assim.

Retirei as palmilhas dos sapatos e encontrei um aviso para procurar atrás do armário, encontrei um tijolo solto, e uma série de memórias que me deixaram em pânico.

Tenho um pouco menos do que um mês para fazer alguma coisa a respeito, antes que chegue o próximo dia 14. É fato de que seja lá quem for, não olha em meus sapatos. Vou esconder novamente essas cartas, e manter esta pedra em meu sapato com algumas instruções até o dia certo. ”

“Compre uma arma e a esconda muito bem, fora de sua casa. Risque a primeira frase se já comprou. Devolva a pedra e este bilhete para o sapato, use até o dia 14. No dia 14 troque a palmilha deste sapato. Não escreva sobre a pedra. Não tome os remédios, minta sobre isso. Escreva aqui onde esta escondida a arma.”

“Segundo minhas anotações dos dias anteriores, tive um mês tranquilo, mas, uma pedra em meu sapato diz que comprei uma arma e escondi num vazo de flores do quintal. Tenho escrito mentiras em meu diário oficial, e a verdade em folhas como essa, que encontro todas as manhãs no buraco atrás do armário. Minhas anotações dizem que os remédios estão me fazendo melhorar, mas, sei que não tenho tomado meus remédios, e graças a isso tenho conseguido manter alguma de minhas memórias por mais que 12 horas, se continuar assim, logo não precisarei mais escrever tudo o que ocorre. Ontem, dia 13, dois homens armados me obrigaram a escrever bilhetes e a tomar os remédios. Por sorte, substituí os originais por bolas de farinha. Eu fingi que não lembrava mais deles, e eles foram embora. Hoje acordei e as anotações falsas que fiz sobre dois homens que eu não conhecia em minha casa haviam desaparecido. Não lembro quem eles disseram ser, mas, sei que era mentira.

Não imagino o que irá acontecer hoje, mas sei que é hoje que alguém me faz retirar meu dinheiro do banco. Hoje alguém me da uma surra, talvez por puro prazer, sabendo que não me lembrarei no mês seguinte. Hoje estarei esperando por eles e venderei caro minhas memórias.”

---- O que significa isso coronel? Como vocês deixaram isso passar desapercebido?!

---- Nunca nenhum dos detentos tentou algo tão ousado senhor!

---- Instruí claramente para tomar todo o cuidado com o detento 306, ele era provavelmente o mais perigoso de todos! Ele já fez parte desta operação!

---- Sim senhor! Todas as noites limpávamos a casa e verificávamos as memórias! Quando percebemos que ele não estava tomando a medicação nós o forçamos, tudo conforme o protocolo!

---- E o protocolo diz para espancarem ele no dia do pagamento?

---- Não senhor! Mas ele sempre reagia!

---- O protocolo diz para atirarem nele?

---- Não senhor! Ele havia matado dois de nossos melhores homens.

---- Sabe o que é isso coronel?

---- Sim senhor! É a substância experimental X-41 que usamos para interromper a memória.

---- Sabe o que fazer com isso coronel?

---- Não senhor!

---- Beba! A partir de agora você é o novo detento 306, e sua indenização irá ajudar a financiar essa operação.

---- Mas senhor...

---- Beba, ou eu atiro. E sua esposa será a nova detenta.

---- Quero que saiba senhor. Foi uma honra servir com você.

=NuNuNO==

(Que gostaria de saber como a substancia X-41 vai parar no depósito de água antes das eleições no Brasil...)

NuNuNO Griesbach
Enviado por NuNuNO Griesbach em 10/12/2011
Reeditado em 10/12/2011
Código do texto: T3381692
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