IARA

O vasto campo, a grande lagoa, o sol ameno, eu e minha vara de bambu. O anzol não tinha fisgado nada até então. Mas a pescaria era aquilo mesmo. Calmaria, paciência e esperança. Até o pôr-do-sol eu tiraria um peixe, pelo menos, daquelas águas. Nem que fosse uma pequena tilápia.

Não tinha de alimentar família com peixes e nem considerava a pescaria um esporte, muito menos um hobby. Para mim, estava apenas matando o tempo e, com ele, o estresse. Havia pescado algumas vezes quando criança, junto de meu avô e seu barco a motor, em alguns dos vários riachos que circundavam sua fazenda, do outro lado do país. Assisti a uma ou outra pescaria num canal por assinatura, daqueles da matina dominical, mas nada que me surpreendesse tanto a ponto de abrir mão de um fim de semana rodeado de mulheres, amigos e cerveja.

Eu poderia ter ido jogar futebol, andar a cavalo, me trancar numa biblioteca ou ir fazer ioga para ter um sábado e domingo diferentes. Mas não era o que eu procurava. A pescaria? Não sei o motivo. Talvez ímpeto. Talvez insatisfação com a realidade que convivo, dia a dia. Ou, até mesmo, a fuga da própria existência. A fuga do lugar comum. Daquela gosma cinzenta que cobre cada segundo que respiro, entope minhas artérias e cega meu coração. Sempre.

Insatisfação consigo mesmo e com a realidade com que se convive é normal para qualquer ser humano que tenha se frustrado, pelo menos uma vez, enquanto vivo. Ou seja, todos! Isso me alivia um pouco, pois significa que sou normal. Ou não.

Escuto pessoas reclamando todos os dias, e eu não posso reclamar disso, pois também reclamo sempre para outras pessoas e por aí vai. É um ciclo. Um tilintando inquietações pessoais no tímpano do outro. E a culpa é a rotina. Ou a vida. Chame como quiser. Só não suporto mais a mesmice. Isso me sufoca a ponto de tirar o ar de meus pulmões e enchê-los de angústia e solidão, ainda que conviva com milhares de pessoas.

Existe quem concorda com a minha opinião de que o que vivemos é um sonho projetado pela nossa esperança de divã, com alguns pesadelos no percurso, mas de que tudo acaba bem no fim e, que a realidade, nua e crua, é cegada pela nossa mente ilusionista. Filosofia. Loucura. Chame do que quiser. Eu chamo isso de reflexão. Me sinto menos sufocado quando paro meia hora de minha vida para pensar justamente nela, a vida. E, com certeza, não é desperdício de tempo. Na verdade, pelo menos para mim, é uma vitória temporária em cima da avassaladora rotina.

Finalmente fisguei alguma coisa. Usei miolo de pão como isca. Não tinha encontrado minhocas no terreno daquele matagal abandonado e isolado no município de minha cidade. Era eu, a natureza e, a partir daquele momento, o peixe. Pelo menos é o que eu esperava. Poderia ser uma bota enroscada, um dedo humano ou qualquer outra coisa parecida. Mas eu não poderia ser tão azarado assim.

Ainda que não acreditasse em sorte ou azar, destino ou coincidência, era sacanagem o acaso me fazer passar horas embaixo daquele sol tardio, queimando minha pele pseudo-albina e tendo meu sangue sugado a todo instante por mosquitos, sem que conseguisse pescar nada. Mas o corte bruto que a vara de bambu faz no ar indica que eu fisguei um dos grandes. Seria um cação? Não sei.

A confirmação de que era um peixe só veio cinco minutos depois de muita luta, quando eu, então, posso ver uma enorme cauda levantar sobre as ondulações e bater com tamanha força nas águas, que faz minha esperança tornar-se tênue. O anzol arrebenta. A vara se quebra ao meio. Lá se vai minha isca.

Se horas mais tarde eu chegasse na cidade contando que quase pesquei um peixe do tamanho de um boto, meus colegas ririam de minha cara, me taxando de mentiroso e tornando o que restou da minha existência, algo mais medíocre e hipócrita. Mas eu teria que suportar, com certeza. Ainda mais para quem agüentou uma tarde inteira na beira de uma lagoa vasta de peixes incapazes de serem pescados, pelos menos para um iniciante.

É então que noto não estar só. Não estava considerando a presença de pássaros, insetos e animais silvestres. Tinha alguém lá e, certamente, que era humano. No centro da lagoa havia uma grande rocha não notada antes. Por ela alguém rastejava lentamente até o seu centro, onde então senta. A silhueta indicava ser uma mulher. Ou melhor, conforme as sombras do crepúsculo foram chegando, a silhueta indicava ser uma garota, muito bela e curvilínea. Seus olhos verdes me encaravam. Sua boca carnuda não se movia, talvez em contraste com seus cabelos ruivos que esvoaçavam com a forte brisa.

Esqueço do peixe e da pescaria em segundos. No meu corpo, excitação. Na minha mente, nova distração. Nos meus ouvidos, um chamado. Havia encontrado uma outra maneira de matar o estresse. E essa maneira tinha um corpo superior a o de uma modelo e um cheiro que exalava tulipa. Dava para sentir e enxergar daquela distância. Ela era exuberante e me chamava. Estava nua e tinha a pele bronzeada. Aquele som subiu de meus ouvidos para o cérebro. O calor, no entanto, desceu do pescoço até mais abaixo da cintura. Tiro a roupa e mergulho. Vou a seu encontro, fazer sua vontade e satisfazer a minha.

Se horas mais tarde eu chegasse na cidade contando que tinha conhecido a garota mais bela de todas, meus colegas ririam de minha cara, me taxando de mentiroso e egocêntrico. Aí sim eu saberia de onde vem o termo conversa de pescador. Mas não era lorota. Era real. Ela estava ali e eu, quase lá. Fisguei um dos grandes, com certeza.

Conforme nado e vou me aproximando daquela beldade, também vou notando coisas que não havia notado até então, assim como a rocha, segundos antes.

A lagoa tinha águas cristalinas, dava para se ver alguns peixes menores e pedregulhos coloridos. Pude notar, também, a imensidão daquele lugar, parecia bem maior dentro da lagoa. O som na minha cabeça então se torna uma bela canção. Um chamado lírico irresistível. Não entendi e nem compreendi a língua em que ela cantava, mas era lindo.

Fui sentindo, então, a profundidade daquelas águas, um pouco antes de me aproximar da rocha onde se encontrava minha ninfa. Era bem fundo e escuro, um pouco diferente de alguns instantes. Como poderia haver uma rocha no centro daquilo tudo?

Noto seu belo corpo mais de perto. Vejo um ferimento no seu tornozelo esquerdo. Ainda sangrava. Me aproximo conformo nado e noto coisas um pouco mais feias acima de seus pés. Eram cascas que brotavam de suas coxas e se estendiam por toda sua perna. Não! Aquilo lembrava escamas. Logo a coloração mudou do bronzeado para o esverdeado. Aquilo, com certeza, eram escamas. Me aproximo da rocha e logo, de seu corpo, até então belo, uma cauda surge. A canção em meus ouvidos se cala. Fico imobilizado.

Era cético demais para acreditar em divindades, demônios, fantasmas e superstições. Imagine então acreditar em mulheres-peixe. Mas ela respirava por brânquias. Pode chamar de assustador. Eu prefiro chamar de bizarro. Seria algum problema de nascimento ou alguma deformidade física mutagênica? Não sei dizer. Mas aparentava ser algo além. Tudo se transformou de repente. Deveria ter notado seu olhar de rancor. Eu literalmente a fisguei. Ela não estava contente com aquilo. Mas me seduziu até aquela rocha. Fico confuso.

Depois de tentar inutilmente por alguns segundos entender aquela situação, noto sua expressão triste e sua boca prestes a se abrir. No entanto, nada ouço daquela vez.

Começo a afundar. Ela, a falar. Antes que meus pulmões se enchessem de água, pude notar mais alguma coisa e, desta vez, vinha da beira da lagoa. Lá estava minha vara de bambu intacta e um bagre-africano se debatendo antes de morrer, assim como eu. O peixe no meu habitat e eu no dele.

Ironia? Fantasia? Loucura? Não sei de mais nada. Meu tempo se esgotou. Não a escuto mais. Logo não a vejo mais. A rocha também some. No entanto, posso ver as águas, mas elas não são mais cristalinas. Tudo escurece. Silêncio.

Tive um final de semana diferente dos demais. Inesquecível, com certeza. Consegui matar o estresse, um peixe e algo mais.

Douglas MCT
Enviado por Douglas MCT em 12/01/2007
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