Amor de mãe

De manhã bem cedo ele acorda, e a única coisa que pensa é nos momentos que conseguiu viver até ali. Ele sua debaixo do cobertor que faz com que seu corpo aqueça de maneira inconfortável, olha pela janela e vê a torrente chuva cair proporcionando um barulho dilacerante no telhado, quase trincando a janela de seu quarto mórbido com uma luz moribunda que atravessa os vidros da porta. Sabe que lá fora está frio e que alguma coisa ruim o espera. Para ele, seguro é estar em seu quarto, escondido, fugindo de seu destino trágico e certo, dopado de remédios, não raciocina como deveria, o medo que faz as pessoas correrem e fugirem de si mesmas atacou-o e para ele só há um destino, apenas um destino e não há como reverter esta situação. Ele ainda não sabe o que vai acontecer, em sua mente insana passa um filme com imagens velozes, contando sua história desde seu nascimento. Às vezes ri sem perceber. Às vezes chora e só percebe quando suas gélidas lágrimas molham sua boca insossa e pálida, quase dormente. Agora, ele lembra de coisas que não se lembrava antes. Isso tudo é muito estranho, mas ele ainda não sabe o que está acontecendo e o que exatamente vai acontecer. Silêncio!

Só se ouve o tic-tac do antigo relógio de parede deixado por sua mãe. Pedro já ouvia o barulho do relógio, há alguns minutos, mas só naquele momento, parecia que o barulho rasgava seus tímpanos, Pedro então tem a sensação que o som invade todo o seu corpo. O som do tic-tac é matematicamente correto, mas em sua mente parece que dá intervalos longos entre uma badalada e outra, e às vezes apresenta batidas muito próximas.

O fato de parecer que o relógio estava encarando-o, lhe dava certo calafrio, ele sabia que cada tic-tac do relógio contava um minuto a menos de sua vida. Pedro se lembra de algumas cenas de sua mãe. Todos, inclusive ele acreditavam que ela havia sido assassinada por Péricles seu primo que no momento encontrava-se foragido da polícia. Na verdade, não dava para dizer com certeza se sua mãe estava morta, pois a polícia não encontrou seu corpo. Testemunhas disseram que a última vez que a viram, ela estava sob a companhia de Péricles. Pedro pensa nessas coisas olhando para o relógio. Sua mãe gostava muito daquele aparelho com uma beleza sinistra que produzia um silencioso barulho ensurdecedor.

O relógio estava na família há anos, mas Pedro nunca tinha reparado naqueles pequenos detalhes de sua superfície que agora o fazia lembrar dos detalhes femininos de sua mãe, a silhueta requintada mesmo com os mais de quarenta anos que carregava nas costas. Cabelos louros, longos e com cachos perfeitos que tinham o formato de mãos fechadas. Ela tinha braços roliços com penugem doirada também, seus pés eram bem torneados e perfeitos, finos e delicados. Pés de anjo. Ela apresentava uma jovialidade excepcional, e os adolescentes e jovens do bairro ficavam admirando-a quando passava.

Linda, amável, afável. A mãe perfeita. Sempre atendia seu filho. Sempre para o que precisasse. Carinho, amor, afeição. Na verdade nessa história toda, a única coisa que perturbou a mente de Pedro, foi a perda de sua esmeralda. Sua mãe era seu chão, seu ponto de referência, seu bem precioso e foi brutalmente assassinada por um primo maluco que ninguém sabe onde está. Todos esses pensamentos destorcidos e imagens grotescas ao redor, o relógio que era insignificante antes da falta dela, o fizeram lembrar de sentimentos que não distinguia se eram retos ou impuros. Ele amava sua mãe e não sabia qual era o limite, não sabia até onde a amava. Zigmund Freud explicaria isso como um complexo de Édipo.

Pensamento vazio. Dor, sofrimento e tensão. Tudo parado. Apenas o pêndulo do relógio sinistro e a chuva caindo que já não era tão forte. Parece que por um milésimo de segundo, todo o silencioso barulho que era emanado daquele quarto mórbido parou para dar lugar a um outro som. Um novo barulho.

De repente o telefone toca rasgando o silêncio. Pedro se assusta e dá um pulo da cama, mas mesmo assim, não consegue sair debaixo do cobertor. Seus músculos estavam relaxados e ele sentiu câimbra devido os movimentos bruscos que fizera por causa do susto.

Pedro relaxa e dorme de novo.

Depois de uma imensa escuridão de três horas, Pedro acorda ainda na mesma posição que dormiu. O telefone toca novamente. O relógio com seu tic-tac infernal, as lembranças de sua mãe, o filme passando em sua cabeça. Pedro se culpava por tudo que tinha acontecido até agora: a morte de sua família e a má criação de seu primo Péricles, eram os principais fatores de sua preocupação. Ele sentia que perdera tudo na vida, ninguém era culpado a não ser ele mesmo. Ninguém.

De olhos fechados, Pedro enxerga melhor. Ele consegue ver sua mãe sorrindo e se lembra de quando saiam juntos, as pessoas achavam que eles eram irmãos, pois sua mãe guardava uma extremada beleza e um aspecto jovial.

Lembrando da pele alva e da delicadeza sentimental que ela passava, Pedro adormeceu mais uma vez. Dessa vez sem querer. Ele simplesmente foi embebedado pelas ótimas lembranças e a imagem que tinha de sua amada mãe. Só Deus sabia o quanto ele a amava.

Se alguém pudesse olhar de fora, nunca saberia quando Pedro estava dormindo ou quando estava acordado. Ele mantinha seus olhos fechados e só ouvia os sons mais delicados que existiam ao seu redor, e só enxergava, só queria enxergar suas lembranças.

O telefone toca mais uma vez. Pedro acorda. De repente um barulho do lado de fora o deixa apavorado e ele resolve abrir os olhos. Quando abre, sente uma tremenda dor de cabeça pelo fato de sua vista não estar acostumada com a claridade do sol. Ele já estava de olhos fechados há quase dois dias. O som do tic-tac já não era tão escandaloso, as lembranças de sua mãe e as imagens de seu passado pararam no momento em que Pedro abriu seus olhos, mas o telefone continuou a tocar. Pedro se levantou e correu para atender, mas caiu de cabeça no chão e rompeu o supercílio. O som do telefone parecia música para o clima de horror que circundava. Pedro hesitava em atender ao telefone. E se fosse Péricles? Mesmo com esse pensamento, Pedro se levantou com muita dificuldade e conseguiu atender ao telefone a tempo.

- Alô! - Disse Pedro.

Do outro lado da linha, só ouvia uma respiração ofegante. Mais uma vez Pedro se manifestou ao telefone agora dando um berro choroso.

- Pelo amor de Deus! Quem está aí?

- Está com medo? Aqui quem fala é Péricles. - Péricles desliga o telefone.

Depois de dez segundos de silêncio, Pedro simplesmente deixa o telefone cair no chão e entra em desespero. A voz rouca e forçada de Péricles o fez refletir mesmo neste momento de tensão. A luz bate em seus olhos e ele não consegue raciocinar, a iminência de sua morte o deixa mais desesperado. Tudo passa muito rápido agora, já não há mais pensamentos nem lembranças de infância. Na verdade não há mais nada em sua mente, ele não sabe nem o que pensar. Por um segundo acha que seja mais lucrativo se matar antes que Péricles chegue, seria menos doloroso, pois os policiais disseram que antes de matar suas vítimas, o suposto assassino as humilhava e as sacrificava como em uma seita satânica. Ele corre para a cozinha. Seu corpo estava nu da cintura para baixo, pois os dois últimos dias sem comida o fez perder alguns quilos. Seu pijama caiu e ele não se preocupou em vestir-se, seu rosto desfigurou-se de pavor, parecia não ser o mesmo, não dava para reconhecer.

É impressionante como as pessoas mudam sua fisionomia quando estão desesperadas. O sangue descia de seu olho ferido e empapava seu peito peludo. Olhos de desespero, arregalados como se tivessem visto alguma assombração. Dentes à mostra, mas não como forma de sorriso e sim de terror. A imagem mais sinistra que se possa imaginar. Na cozinha, Pedro pega a faca, mas antes que pudesse dilacerar suas próprias vísceras, Péricles envolve uma corda em seu pescoço.

Se desse tempo, Pedro gritaria pelo nome de sua mãe, pois ele acreditava que ela estaria sempre ao seu lado não importava a situação. Mesmo estando distante, ele sentia sua presença naquele momento. Pedro não conseguia respirar nem gritar. Sentiu muita falta dela quando Péricles encostou seu corpo quente e macio em suas costas.

- Pensou que ia conseguir escapar de mim? Eu prometi que ia acabar com toda a família, e aqui estou. Cumprindo minha promessa. - Péricles solta uma gargalhada pavorosa, com voz diferente. A voz era forçada para parecer mais máscula, mais bruta.

Pedro já sabendo quem era que estava tentando matá-lo, pergunta não querendo acreditar. Querendo ouvir e ver para ter certeza. Ele não podia acreditar. Não queria acreditar.

- Você não é o Péricles! Quem é você? – Sua voz quase não saía.

Quando Pedro consegue virar-se, vê que na verdade não era Péricles quem estava tentando matá-lo, mas sim, Esmeralda. Sua mãe!

Só deu tempo de Pedro gritar:

- Pelo amor de Deus! Não! Eu te a...

Mas Dona Esmeralda o atravessara com uma faca de decepar cabeças de frango, a mesma que Pedro tentou se matar. O sangue ejacula de sua barriga como uma explosão menstrual salpicando todo azulejo encardido da cozinha. Naquela cozinha, Pedro foi alimentado por sua mãe durante quase a vida toda, era ali que ele brincava enquanto Esmeralda preparava o almoço. Pedro era muito apegado a ela.

Uma morte contraditória, um paradoxo passional.

Ainda vivo, Pedro trocava olhares com sua mãe, a mulher que sempre o protegeu, a linda mulher que sempre esteve ao seu lado até no momento difícil de sua vida. A mulher que deu a luz a Pedro, foi a mesma quem apagou.

Parecia que a bela visão de Esmeralda ironicamente o embebedava fazendo-o dormir, mas dessa vez um sono profundo, sem o despertar da aurora. Pedro morreu com muitas dúvidas, ele tinha a certeza que havia sido Péricles que tinha matado toda sua família inclusive sua mãe, mas agora nada mais fazia sentido para ele. Ele já não sabia distinguir os sentimentos, não entendia mais nada.

Jorge Jr
Enviado por Jorge Jr em 12/01/2007
Código do texto: T344568
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