Mortos

A temporada que Mike passou na casa da sua avó foi mais curta do que ele pretendia. Não que ele não tivesse disposição em continuar naquele aconchego e naquela mordomia como sempre havia sido o tempo com qualquer uma de suas avós, mas o que lhe ocorreu numa das últimas noites em que ele esteve na fazenda não poderia ter lhe ocasionado outra reação senão antecipar sua volta.

Dormir na fazenda, entretanto nunca fora um problema para Mike, que sempre se julgou um corajoso para muitos assuntos e naquela noite só dormiram na casa do alto do morro ele e sua avó, os outros haviam partido para uma viagem numa cidade próxima, passeio que por sinal não despertara nenhum interesse em Mike. Foi durante a madrugada que algo extremamente estranho aconteceu. Mesmo com o sono pesado ele sentiu um calafrio percorrer toda cama, uma onda de frio denso passou por entre os lençóis e quando despertou Mike viu os olhos grandes de sua avó a encará-lo da porta do seu quarto. O susto foi imediato e antes mesmo de retomar toda a consciência ele ouviu a voz rouca e baixa de sua avó dizer com uma alegria muito explicita:

- Mike, querido, seu avô veio me visitar.

- Como assim vó?

Mike não podia entender, além do fato de sua avó acordá-lo daquela maneira àquelas horas, ela ainda delirava dizendo que o seu avô que morrera há tempos veio visitá-la.

- Ele veio me ver, meu querido. Ele tava com saudade.

Ainda sonolento, Mike sentou-se na cama e tentou entender o que a sua avó dizia.

- Vó, isso não é possível, vó, a senhora deve ter sonhado, só isso.

Parada e com um sorriso de desprezo, como se Mike fosse um pobre garoto inocente que não sabia das coisas, a avó dele balançou a cabeça negando.

- Ele veio sim, Mike, deitou-se do meu lado e me fez carinhos. Eu o vi, meu neto, eu o senti.

Ele não queria descordar da pobre velha, se aquilo que ela estava dizendo fosse verdade, seria até bonito, seus avós tinham um amor tão sincero antes da morte do seu avô, e se não fosse, pela idade de sua avó essas coisas não difíceis de se imaginar.

Mike convenceu-a de retornar à cama e não pode deixar de achar curioso o relato se sua avó. Ela estava tão convicta e tão sóbria e com um semblante tão confortável e tão alegre, que ele pode curti por um momento a gostosa sensação que já se esvaia do quarto novamente escuro, do quanto seus avós eram unidos e de como fora linda a história que eles escreveram. Mas, era estranho aquilo. Ela havia dito que ele fizera carinhos nela, como seria possível sentir o toque de uma alma penada? Mike interrompeu seus pensamentos inevitavelmente quando o sono o dominou sem que ele percebesse.

Sem ter noção do quanto dormira, o que para ele não passava de alguns poucos minutos, Mike despertou ouvindo um choro abafado seguido de tímidos gemidos que instantaneamente ele soube ser de sua avó. Levantou-se num reflexo, acendeu a luz e correu para o quarto onde ela dormia.

Apalpou a parede, chamando assustado por sua avó, na busca do interruptor e quando por fim conseguiu acender a luz notou a cama vazia. O pânico agarrou-lhe os ossos e ele foi seguindo o choro cada vez mais abafado, como que não desejasse ser a revelada. Mike abriu a porta do banheiro e viu num canto sua avó sentada no chão a toalha em volta do rosto. Mike pensou que ela enxugava as lágrimas, mas ele estava enganado. Quando sua avó o encarou, embora estivesse com os olhos ensopados do pranto, o que ele viu foram as marcas em seu rosto e as manchas rubras na toalha. Ela ainda sangrava nos braços e tinha alguns arranhões nas pernas.

- Ele não fez por mal, meu neto, ele me ama, isso foi só um acidente.

- Vó, o que aconteceu, pelo amor de Deus?

Mike invadiu o banheiro e a envolveu nos braços. Ele estava assustado e mais ainda preocupado, ela insistia naquela história de seu avô.

- Não foi por mal, Mike, eu sei, ele não queria me machucar.

- Venha pro quarto vó, a senhora me explica lá.

Ele se atentava nos arranhões, a única explicação seria ela própria ter se ferido. Mas por que, o que a levaria a essa loucura? Por mais idosa que fosse, Mike sabia que sua avó estava em perfeita condição mental. E esta história de fantasma, se não fosse verdade, será que tinha mais alguém na casa?

Enquanto a cobria com a coberta, o lençol dela não estava por ali, ele tentava extrair o sentido de tudo aquilo nas frases soltas de sua avó. Onde estava aquela mulher tão coerente, que lhe orientava com conselhos tão certeiros e que sustentava ainda em seus ombros a unidade da família?

- Vó, foi meu avô que fez isso?

- Ele não queria me machucar, Mike.

- Então foi ele?

- Escuta, meu querido – Mike não entendia a contrariedade que havia entre a situação e o manso tom com que sua avó falava -, ele veio dizer que me ama ainda, que ta com saudades.

- E por que ele fez isso, vó? – Mike tentou assumir a mesma calma da avó, a fim de estabelecer confiança.

- Eu já disse, não foi por mal, ele me ama, meu neto - Mike resolveu não interromper, deu a ela o tempo de suspirar como uma garotinha apaixonada olhando para o teto. – Ele estava me fazendo carinho, me abraçando, eu estava com tanta saudade dele fazendo isso, querido, aí o abraço foi ficando apertado, no início eu não liguei, sabe? – Mike confirmou e aproveitou para passar os dedos entre aqueles cabelos grisalhos – Mas, ele continuou apertando e eu não estava mais conseguindo respirar. Eu pedi pra ele parar um pouco, mas acho que ele não entendeu. Eu entrei em pânico, Mike, mas não foi por causa do meu fôlego, você sabe que eu já to fraca, né?

- Sei sim, vó, mas – Mike não queria interromper, porém até então os arranhões e hematomas, que já começavam a aparecer, não faziam sentido. – como ele te deixou assim?

- Não foi ele, foi eu. Eu comecei me debater, tirar as mãos dele de mim, pra poder respirar e quando eu dei por mim estava no banheiro chorando. Ele foi embora, Mike, foi embora porque eu fui uma velha burra e medrosa. Eu tinha que confiar nele, ele nunca me machucaria, filho.

- Eu sei, vó.

Mentira, Mike não sabia e não acreditava. Seu avô sim, nunca machucaria a mulher com quem ele viveu por quase cinquenta anos, mas aquele fantasma maldito, não. E ele não iria, fazer mais nada com sua avó, não se dependesse dele.

- Dorme agora vó, que eu vou ficar por aqui olhando a senhora. Se o vovô aparecer, eu falo pra ele voltar depois.

- Você não vai fazer nada com ele, não é Mike? Você não vai machucá-lo?

- Não vó, pode ficar tranquila.

Mike apagou a luz e permaneceu um pouco na cama olhando para o semi-escuro que a luz acessa do seu quarto formara na casa. Uma lembrança antiga surgiu-lhe na mente. Um livro que lera quando ainda era criança. Era um daqueles livros ilustrados que contava a história de um monstro devorador de espíritos. Durante o dia ele se disfarçava de criança e quando a noite caía e ele encontrava um espírito fazendo maldades, assumia a sua verdadeira forma e com uma espécie de ritual, onde ele balançava os braços deste jeito e a cabeça pra lá e pra cá, ele consumia o fantasma maligno. Mike recordou as expressões do devorador de espíritos e até reproduziu mentalmente o jogo de gestos na sequência certa para o momento final. Acontecesse o que acontecesse ele se sentia pronto para encontrar aquele maldito.

Levantou-se com a energia de um sono de madrugada perdido e iniciou a ronda pela casa. Mike olhava em todo os cantos, em todas as direções quase no mesmo momento. Embora não soubesse bem o que procurava, não sabia ser um velho ou um vulto ou ainda, quem sabe, uma mulher de vermelho, como dizem que o diabo gosta de imitar, ainda assim procurava. Vasculhou o banheiro, a cozinha e a sala, o quarto que estava vazio com a saída dos outros moradores, até mesmo a escuridão da varanda. Ele não acendeu nenhuma das outras luzes, o medo já havia tornado-se raiva, e a raiva é mais útil do que o desespero. Quando vistoriou o seu quarto fez de maneira rápida, fantasma nenhum ia gostar de claridade, ao menos que estivesse escondido debaixo da cama. Ao pensar nisso, Mike teve um lampejo, correu para o quarto da sua avó, já imaginado ser mesmo o monstro da história que lera, imitando até o andar desengonçado, e olhou debaixo da antiga cama do casal.

O que viu fora realmente impressionante. Na penumbra que pairava sob o leito, bem encostado à parede, o lençol perdido da sua avó cobrindo alguém. Mike não soube identificar se era o velho, não havia brechas nenhuma que revelasse quem ou o que estava debaixo do lençol, estava tão bem enrolado como quando está fazendo muito frio e só se tem uma fina coberta para se passar a noite. A única forma de descobri era olhando de perto.

- Te peguei, seu otário! – gritou Mike no relâmpago da empolgação sem se lembrar que sua avó mal caíra no sono, o que foi suficiente pra despertá-la.

- Mike, por favor, não o machuque.

Mike desprezou a ordem da avó, contornou a cama até ficar em frente aos pés embrulhados do bicho e os agarrou com força. Um calafrio súbito correu-lhe pelo corpo semi nu, ele tocara em alguém, o formato da perna não se desfez sob o lençol o desenho dos pés despontava, não dando dúvidas do que era.

- Vem me encarar agora, seu fantasma de merda.

Ele puxou o corpo estático, o formato não se desfez, nenhuma reação foi tomada, nenhum movimento de reflexo, ataque ou defesa. Mas o que espantou Mike e o deixou incrivelmente abismado, não foi a inércia daquele ser e sim a ausência de peso. Mesmo com o esboço de um homem, mesmo com o lençol revelando todas as ondulações próprias de um corpo humano, até mesmo as feições do rosto agora encostado no guarda roupa, mesmo sentindo tocar em pernas maciças, inexplicavelmente não havia nenhum peso senão o do lençol, que Mike agora reparava vestígios de sangue.

- Que diabo é isso, meu Deus? – Disse ele quando soltava e se afastava daquilo.

- Mike, meu filho, não faça nada com ele, não o machuque, querido. – A vó suplicava.

- Ele maltratou a senhora vó, essa coisa não é meu avô.

Ao declarar isso, Mike sentiu seu ódio progredir de escala e superar o medo, avançou sobre o fantasma, levantou aquele corpo vazio e o lançou contra a parede, não houve barulho nem mesmo quando o corpo envolvido deslizou até ficar sentado. Mike deu um forte murro na parte que seria o rosto e mais uma vez notou que o lençol não se descompôs, nem se afundou nem se amarrotou, a cabeça, no entanto, seguiu o impacto do soco e pendeu para o lado. O garoto sentiu-se triunfante, havia conseguido de algum jeito atingir aquela coisa, parou numa pequena distância, ainda ouvindo sua avó gritar para que parasse, que não fizesse aquilo com o seu avô, que o deixasse voltar para cama e dormi ao lado dela. Mike não se importava, não fazia sentido aquilo ser o seu querido avô, aquele ser enrolado pelo lençol manchado com o sangue de uma idosa inocente, materializado, porém sem peso, não, aquilo era um espírito que fizera muito mal a sua avó e por isso merecia ser castigado. Os braços de Mike foram se enrijecendo, como se toda a força do corpo estivesse se centrando neles, Mike foi imaginado que aos poucos, desde os seus pés até completar todo o corpo, ele estava se transformando no monstro devorador de espíritos. Sua imaginação era tanta que ele passara a sentir uma forte convicção de que era o momento de acabar com aquele maldito. Fez o ritual do instante final, com as mãos e a cabeça e impeliu-se sobre o espírito, sua avó deu um grito contínuo, Mike agarrou o lençol e o puxou de vez.

Fez-se silêncio no quarto, o grito desaparecera, todas as lâmpadas da casa acenderam-se ao mesmo tempo, o lençol, como um pano qualquer, pendia em suas mãos. Ele olhou para a cama e sua avó que naquele mesmo instante estava em meio a um urro desesperador, agora repousava tranquilamente, embora com o rosto ainda marcado. Bem no canto do quarto, onde há pouco tempo estava o possível corpo de um homem coberto com o lençol que Mike segurava, estava uma pequena menininha ruiva a sorri para ele.

Mike cambaleou e recuou até ser impedido pela parede. Ele tentou reconhecer quem era aquela criança, aquele sorriso não lhe era estranho, aquela roupa, ele também já vira alguém trajando algo semelhante. Melhor seria encontrar ali o velho que fingia ser seu avô, não lhe daria tanto medo quanto aquela pálida e linda menina.

- Quem é você? – Perguntou Mike sem saber se aquela criança fantasma sabia falar. Para sua surpresa ela respondeu:

- Mike, não se lembra de mim?

Aquela voz. Aquela voz não combinava com aquela criança, era a voz de uma adolescente... mas, aquela voz não era estranha. Mike recuou ainda mais, deixou o lençol cair, fitou novamente aqueles olhos acusadores a lhe encarar, de quem era mesmo aquela voz, ele pensava e tentava buscar em suas memórias detalhes que poderiam revelar quem era aquela criança com aquela voz, aquele sorriso e aquela roupa. Ela o conhecia, pela pergunta que fizera deixava claro que Mike também tinha a obrigação de conhecê-la. Mas, toda aquela situação, toda aquela claridade obscurecia a mente de Mike, nenhum esforço que ele fazia o ajudava, porém se ele a conhecia ele ia ter que lembrar.

- O que você quer?

A menina fantasma agora brincava com os cabelos, tudo pareciam pistas para que Mike recordasse. Ele aguardou até que ela olhou para a cama e virou-se para ele novamente.

- Só vim te dizer que cada um tem seus próprios fantasmas, e um dia você sempre tem que enfrentá-los.

Não podia ser! Como num relance Mike materializou em sua mente a dona daquela voz. Uma bela garota com quem ele se relacionara há alguns anos. Ela fora perdidamente apaixonada por Mike, mas naquele tempo ele queria curti apenas, navegar por vários corpos, experimentar várias bocas, admirar vários sorrisos, e não somente o dela. Eles tiveram tão pouco tempo juntos, e logo quando Mike percebeu a paixão avassaladora dela, ele quis deixar claro que não queria ir além, que não era nada sério o que ele pretendia, que eram jovens demais para se envolveram em uma proporção tão responsável. Ela não aceitou que terminassem, ameaçou por várias vezes fazer uma loucura, uma besteira extrema, até que um dia depois de presenciar o beijo de Mike em outra garota ela cumpriu sua ameaça. Foi encontrada pela mãe no meio da madrugada presa no banheiro com um estilete e os pulsos cortados. Não houve tempo de chegar no hospital, tinha perdido muito sangue, não tinha mais batimentos, havia morrido. A única mensagem que deixara foi a frase escrita com o próprio sangue no espelho o banheiro, “eu nunca vou te esquecer, Mike”.

E o que aquela criança tinha haver com tudo aquilo? Mike tentou entender e no mesmo instante rememorou a fotografia que a mãe da sua antiga namorada segurava nas mãos no dia do velório. Era aquela mesma garotinha, a mesma roupa. Foi aquela foto que a mãe desesperada obrigou Mike a encarar enquanto o culpava te ter matado a sua menina, de ter interrompido os sonhos de uma garotinha tão linda e tão inocente. Quem você pensa que é, foi assim mesmo que a mulher em prantos dissera, pra se achar no direito de abandonar minha filha?

Mike estremeceu-se no canto do quarto. Não fora sua intenção, ele repetia dentro de si. Mas os olhos daquela criança e o sorriso que ela sustentava o feriam intensamente. Ele se sentia obrigado a culpar-se. Talvez tenha sido esse o motivo dela ter vindo persegui-lo. No meio de tantas outras garotas que passaram por ele, Mike tentou lembrar o nome daquela que havia como esquecer, ela fora a única que o deixara tantas noites a rolar pela cama.

- Cecília, Cecília me perdoe.

Foi um grito sufocado que escapara do sofrimento de Mike, nem mesmo sua avó despertara. Ele tentou se aproximar, mas algo lhe impediu. A pequena menina o encarou pela última vez e lhe sorriu um sorriso mais doce e meigo que alguém poderia dar.

- Eu nunca vou te esquecer, Mike.

Quando disse isso toda casa escureceu-se, até mesmo a luz do quarto de Mike que ele próprio deixara acessa se apagou. Mike permaneceu um tempo parado olhando para o lugar onde, mesmo no escuro, ele sabia que não haveria mais ninguém. Sentindo a presença petrificada do neto no quarto a avó de Mike acordou e sentou-se na cama.

- Mike, querido, o que houve?

Ele pensou em acender a luz, mas por um momento teve medo e desistiu. Atentou-se para a preocupação na fala de sua avó e só ali percebeu que ela dormira durante todo o tempo que a menina permanecera no quarto. Pensou bem no que dizer e não achou outra alternativa.

- Nada não vó, só queria dormir com a senhora.

A avó o acolheu na cama, afastou-se um pouco e cedeu a ele o lençol que há pouco tempo estava no chão. Estranhamente o lençol estava aquecido e com o mesmo perfume que sua avó usava antes de deitar-se. Mike dormiu um sono confuso e só no outro dia ele perceberia que não havia mais marcas no rosto da sua avó, mas sim, no seu.