A Semana

Tudo aconteceu tão rápido!

Tento lembrar, mas está confuso. Como é que isto aconteceu? Por quê? Sinto meu peito doer e meus olhos embaçados.

Minha semana foi idêntica às outras… ou não? Houve algo de diferente, mas o que mesmo? Claro! Como pude esquecer? O homem! Aquele maldito homem!

Segunda-feira. Estava no metrô indo trabalhar quando senti aquele cheiro horrível! Nossa, alguém matou um gambá e trouxe na marmita!

Levantei a cabeça e deparei-me com ele. A idade? Não dava para saber! O corpo lembrava alguém de no máximo 60 anos, mas os olhos… Estes pareciam ter a eternidade do mundo! Eram profundos, quase acusadores! Como se pudessem desvendar todos os meus medos, todos os meus sonhos…

Um arrepio atravessou minha espinha e alojou-se no coração. Por que de repente ele me parecia tão familiar?

Ele vestia trapos, os cabelos eram um emaranhado de fios imundos e grossos. O que ainda restava dos dentes eram pontas podres, como icebergs perdidos num mar de saliva.

Pensei em dizer que não tinha dinheiro (o que não era mentira, o carro estava consumindo todos os centavos do meu salário), mas, antes de eu ter tempo de falar, sua boca abriu-se e, como um trovão vindo de muito distante, começou a declamar uma poesia macabra. Virou-se e desceu do metrô. Antes mesmo de piscar meus olhos, sumiu na multidão.

Por que eu? Com tantas pessoas naquele vagão apinhado, por que o desgraçado tinha que parar bem na minha frente?

Preciso de ar, preciso agüentar mais um pouco! Por que sinto tanta dor? Por que minhas pernas não se mexem? Quem são estas pessoas à minha volta? Vejo luzes. Acho que é uma ambulância. Tenho que agüentar! Tenho que me lembrar!

Cheguei ao escritório com as palavras do mendigo soando dentro de mim.

– Que loucura! – pensava entre risadas nervosas e arrepios. – Gente assim tem que ficar internada e a chave ser jogada no rio.

Já era fim de dia quando o telefone tocou. Atendi automaticamente. Por segundos a minha respiração ficou presa. Do outro lado da linha, minha mãe. Há quantos anos não nos falávamos? 10, 15 anos? Claro, a última vez foi depois do nascimento da minha filhinha… eu era uma garotinha de 15 anos. Uma criança trazendo ao mundo outra criança. Lembro dos seus olhinhos, de seu choro vigoroso como uma cantiga de ninar nos meus ouvidos, mas foi só isto. Antes que eu tivesse tempo de pegá-la em meus braços ela foi levada para longe de mim, para nunca mais vê-la. Levada por aquela mulher que agora estava ao telefone me chamando de filha.

Ela queria me ver, queria explicar por que tinha feito aquilo, precisava que eu a perdoasse. Marcou o dia no qual contaria algo que mudaria minha vida.

Saí transtornada do escritório. Primeiro o mendigo, agora minha mãe, o que mais faltava acontecer?

Alguém se aproxima, ele fala algo, mas não consigo escutar. Eu só queria conseguir respirar! Eu vejo preocupação escondida por baixo de um sorriso que tenta me tranqüilizar. Ele mexe nas minhas pernas e um grito involuntário sai da minha garganta. Eu quero sair daqui!

Terça-feira parece que nunca vai terminar. Sou um zumbi, olhando as horas escorrer pelo relógio: 10:00, 10:01, 10:02, 10:03…

– Droga! Por que esta merda de relógio não anda mais rápido?

Voltei pra casa e tentei me distrair, mas foi impossível. O que será que ela tem a me dizer?

Finalmente o dia chegou. Era quarta-feira e estava indo ao encontro da mulher que já fora meu mundo e que agora era a pessoa que eu mais odiava na vida. Ela estava mais velha, antes não tinha aquelas rugas em volta dos olhos, nem aquele tremor nas mãos. E para onde foram os longos cabelos negros e sedosos? Agora parecia mais um carpete acinzentado.

Ficamos nos olhando, ela constrangida, eu desconfiada. Ela pegou em minhas mãos e pediu que eu sentasse ao seu lado. Então, começou a falar.

O que é aquilo no meio da multidão? Parece um cão negro. Parece o mendigo. Não consigo enxergar direito. Sinto algo escorrendo da minha boca. Que bonito, estou babando no meio da rua. Mas não é saliva, é algo viscoso e vermelho… é sangue!

Em um só fôlego ela contou que meu pai a tinha obrigado a tirar a menina de mim. Ele sabia que eu era teimosa o suficiente para querer criar minha filha sozinha e ele nunca admitiria esta vergonha na nossa família. Como a filha de um pastor iria ter um bebê ilegítimo? Isto acabaria com a moral dele na congregação. Então, naquele dia, ela pegou a criança e a levou para um orfanato fora da cidade, para que lá ela encontrasse um lar. Confessou que chorou durante todas as noites – por remorso e depois de saudades, quando eu fugi de casa e nunca mais voltei. Ela tinha descoberto meu telefone através de uma amiga de infância, única pessoa com quem eu ainda conversava naquela maldita cidade do interior.

O que são estas fagulhas? Uma serra? Alguém está cortando ferro bem próximo a mim. Eu me lembro daquela porta de carro, é do meu carro. Estou presa entre as ferragens do meu próprio carro!

O que meu pai não sabia era que durante todos esses anos ela mantivera contato com o orfanato e finalmente conseguiu descobrir o paradeiro da menina. Começou a visitá-la escondida do marido e só depois dele ter morrido (meu pai morrera e eu não sabia!) há um mês atrás é que ela teve coragem de contar à menina quem ela era e como me achar.

A pressão sobre meu peito diminuiu. Já não parece tão ruim respirar. Mas ainda tem a dor e a confusão. Como aquele maldito mendigo foi parar ali ao lado do bombeiro? E aquele cachorro? Por que não pára de me olhar?

Fiquei muda. De repente a dor que carreguei durante tantos anos estava indo embora. Minha filha estava viva! E queria me conhecer! Abracei minha mãe e chorei. Alegria, tristeza, saudades, perdão se misturaram naquele abraço apertado.

– Onde ela está? Quando posso vê-la?

Minha mãe pediu calma:

– Mais um pouco de paciência, filha! Eu vou na frente e preparo tudo para que você encontre sua menina lá em casa.

Estou sendo tirada do carro. Novamente tento mexer a cabeça e não consigo. Só percebo os olhares de horror e pena das pessoas que me rodeiam. Só ouço alguém falar perto de mim: “Tão nova! Olha que estrago!”

Quinta-feira. Depois de uma madrugada insone, onde foi dito tudo sobre nossas vidas, nossas dores e alegrias, conquistas e derrotas, finalmente levei minha mãe para a rodoviária. Ela voltaria para casa e prepararia minha filha para que eu pudesse conhecê-la.

Aproveitei o dia para fazer compras! Quinze anos! Devia estar uma mocinha linda! Como ela seria? Pareceria comigo? Ou com o pai? Nossa, precisava comprar um presente para cada ano de aniversário que não passamos juntas.

Finalmente sexta-feira chega! Peço dispensa do trabalho e feliz coloco os vários pacotes dentro do porta-malas. Estou indo encontrar a minha filha!

Sou presa a uma maca. Olho de canto de olho e vejo sangue escorrendo pra fora dos destroços. Vejo um enorme caminhão. Está engolindo o que antes era a frente do meu carro. Por que hoje? Minha filha me espera!

Tamborilo no volante tentando não enfiar o peso do meu pé no acelerador. Tenho que manter a calma, porque esta estrada é muito perigosa! Minha filha está a poucos quilômetros de mim.

Por que de repente a dor foi embora? Por que parece que o mundo ficou em silêncio? Consigo me mexer. Ergo minha cabeça e vejo que o cão se aproxima de mim.

Droga! Isto é hora para um comboio? Que maldição! O capim em volta da pista está pegando fogo. Algum idiota deve ter jogado uma bituca de cigarro pela janela.

Resolvo que não vou esperar! Vou ultrapassar, afinal este trecho é tranqüilo. Tomo fôlego e sigo em frente na contramão! Mas, do nada, a fumaça desce sobre a estrada, como uma grande sombra que encobre meus olhos… Quando saio dela, não há mais tempo, o caminhão já está em cima de mim.

Agora caminho pela estrada. À minha frente há uma velha. Apesar de sua aparência assustadora e de trazer um capuz cobrindo sua face, sigo seus passos. Por um instante olho para trás e vejo um verdadeiro inferno instalado: bombeiros, sirenes, socorristas que tentam a todo custo trazer vida ao corpo de uma mulher no asfalto. Olho com mais atenção e percebo que na verdade sou eu. Por entre a fumaça que sobe dos destroços vejo novamente o mendigo, mas sua aparência agora é de limpeza e finalmente eu o reconheço: meu pai. Ele sorri para mim e acena um adeus.

Continuo a caminhar ao lado da velha enquanto as palavras proferidas no início desta semana estranha me perseguem:

” Uma sombra descerá sobre seus olhos e a verdade se revelará

Os sonhos se desvanecerão e neste dia você morrerá…

Mas, antes, você perdoará uma dor antiga.,

Viverá um momento de alegria,

Então tudo se acalmará.

Porque não adianta fugir do destino

Pois a Senhora da Foice

Não atrasa o dia do escolhido,

E no momento da sua morte por você ela procurará.”

Patricia Soares
Enviado por Patricia Soares em 04/03/2012
Código do texto: T3535283
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