A Cabana do Diabo Velho

A casa abandonada parecia uma palhoça apesar de possuir algumas telhas. Os espaços deixados entre as poucas e desajuntadas peças de barro cozido eram preenchidos com folhas secas de buriti, ajudadas por uma lona branca que se estendia por baixo de toda a cobertura. As palhas desbotadas junto com a lona branca davam uma aparência, ao telhado da casa, de uma cabeça de um índio com os cabelos encanecidos. Suas paredes rebocadas e pintadas de amarelo, pouco disfarçavam a irregularidade da taipa que foi coberta. Inclusive, em muitos lugares, o barro e o enxadrezamento das varas que cruzavam a terra endurecida estavam evidentes. O pé direito era tão baixo que uma pessoa de estatura mediana tinha que se abaixar para entrar. O interior do lugar era pouco dividido, tinha apenas um grande salão e um pequeno quarto. A cozinha e o banheiro ficavam do lado de fora. Na entrada da frente havia uma porta e uma janela, ambas de madeira apodrecida. Nos fundos da casa havia um amontoado de madeira e arames, resquícios de um antigo curral. O casebre era fincado no pé de uma serra, e era circundado por uma inóspita mata. Estava localizado em uma região geograficamente montanhosa e de difícil acesso, afastado 15 quilômetros da cidade mais próxima. A rústica construção vista de longe, do ponto mais alto da serra, lembrava uma bucólica e aconchegante chácara. Entretanto, à medida que nos aproximamos, e chegamos mais perto, essa semelhança desaparecia completamente. A proximidade permitia a observação de toda a decrepitude de sua estrutura. O lugar parecia um cenário de terror saído de um conto de Stephen King. Uma forte vibração de melancolia e depressão emanava daquela casa, algo sobrenatural, esfriando e embrulhando o estômago de quem olhasse diretamente para ela. Uma sensação de aflição absoluta, típica dos que recaem no vício e têm a verdadeira dimensão de sua fraqueza, esburacou a minha barriga e me senti vazio. Fui tomado por esses sentimentos assim que alcancei o quintal daquela velha casa, que conhecia como a palma da minha mão, onde passei quase todas as minhas férias escolares. O reencontro com este lugar após tantos anos, e nestas circunstâncias, e de tudo que acabara de acontecer, mexeu comigo de uma forma definitiva. Eu ajoelhado, ao lado do antigo mourão, olhando para minhas mãos sujas de sangue, tendo ao meu lado um pequeno cadáver, não era a imagem ideal para representar minha impecável carreira de policial. Esse fato antecipou minha aposentadoria, fazendo com que aquela fosse minha última diligência

Tudo começou com um telefonema para o distrito que eu trabalhava. Era uma tarde enfadonha e quente de quarta-feira, e a delegacia encontrava-se praticamente abandonada. O delegado não se encontrava; o que fazia de mim o responsável pelo lugar. O telefone tocou. Era a delegada da Cidade de Carrancas, querendo falar com o doutor Rubens. A pequena cidade de Carrancas, minha cidade natal, tem pouco mais de cinco mil habitantes, é uma cidade ribeirinha que cresceu a margem do rio São Francisco, e ficava a três quilômetros de onde eu me encontrava, ou seja, da delegacia de Grutas. A cidade de Grutas tem quase vinte vezes mais habitantes do que a cidade de Carrancas, proporcionando mais oportunidades de emprego para os moradores dessa pobre região. Eu disse a ela que o doutor não se encontrava, então ela perguntou pelo agente Leite. Falei a ela que o agente Leite era eu mesmo. Agente Plínio Leite, e sou todo ouvidos, respondi com certo gracejo. Ela ignorou minha inofensiva zombaria e contou que uma menina estava desaparecida há alguns dias e depois de muita investigação, tudo levava a crer que o culpado era um velho índio que morava embrenhado na mata, porém, num lugar ermo que ninguém sabia exatamente onde ficava. Falou também que alguns antigos moradores da cidade tinham indicado um homem, que hoje é policial na cidade de Grutas, como o único que saberia chegar ao local, já que este policial seria bisneto do suspeito. Ela pediu minha confirmação. Confirmei que sim, que eu era bisneto do Anhanguera, e que para mim não era nenhuma surpresa que ele, o diabo velho, houvesse raptado alguma menina. A delegada perguntou se eu não poderia ajudá-los na missão. De imediato concordei e fui direto para o carro, não antes de mandar uma mensagem de texto para o delegado Rubens, que é meu irmão caçula, avisando do acontecido. “O Anhanguera está solto de novo”, esta foi a mensagem. Ele, assim que lesse, iria entender. A única forma de chegar ao chalé do índio era pelo topo norte da serra. Estacionei o carro e desci. Estava acompanhado de dois homens. O mais moço era o agente Marques, o mais velho era o subdelegado Martins, curiosamente eles eram, respectivamente, irmão e pai da menina desaparecida. Ficamos de campana no cume do morro até o escurecer. Quando a noite caiu trouxe com ela a lua nova, que iluminava a velha cabana como o refletor de um dentista foca um dente. Conseguíamos ver a casa com bastante nitidez. Descemos com muita cautela e sem fazer nenhum ruído, por uma velha trilha indígena, que eu costumava seguir quando criança, conhecida apenas por mim e por meu velho bisavô. Chegando lá embaixo, bem próximo do extinto curral, nos separamos. E foi depois disso que as coisas se complicaram e se embaralharam em minha cabeça. Logo após a separação, rastejei até a porta dos fundos da casa e olhei para dentro por um basculante de vidro. A casa estava tomada por uma aura avermelhada vinda de uma fogueira que ardia bem no meio da sala vazia. A sombra de um homem de cabelos longos e de penacho na cabeça dançava em volta da fogueira. Reconheci-o de imediato, era mesmo o Anhanguera, meu bisavô. O ancião pitava um enorme cachimbo que soltava espirais de fumaça que flutuavam até o teto. Um som tribal, seguidos de gritos ritmados, também podia ser escutado. Depois que minhas pupilas se adaptaram melhor ao ambiente pude distinguir a figura de uma menina com os braços abraçando as pernas, e a cabeça enterrada entre os joelhos. Ela estava encostada na parede e parecia chorar. O velho se virou de repente para trás, como se soubesse que eu estava ali lhe espionando, recolhi rapidamente minha cabeça do basculante, tirei minha arma do coldre, e cuidadosamente voltei a olhar pela fresta. O homem e a menina tinham desaparecido e não havia qualquer vestígio de luz ou fogueira no interior da casa. Aquilo me intrigou e me assustou, proporcionando um calafrio que estremeceu meu corpo. Dei a volta pelo lado esquerdo da casa, me escorando nas paredes de barro. Assim que contornei o oitão encontrei caído no chão o subdelegado Martins, ele estava morto. Seu corpo tinha múltiplas perfurações de faca. Contive um palavrão e continuei. A escuridão piorara, a lua estava escondida por trás de algumas nuvens. Poucos metros adiante eu tropecei em um obstáculo e quase caio de cara no chão, no entanto, consegui me apoiar, retomei o equilíbrio, e vi que em baixo de mim estava o corpo do agente Marques, ele também foi morto por inúmeras facadas. A ira tomou conta de mim. Saí em disparada gritando como um louco em direção ao casebre. Arrebentei a porta da frente com um chute e entrei, nesse momento vi o Anhanguera saindo pelos fundos da casa levando a menina em seus braços. Fui ao seu encalço. Quando ele viu que eu me aproximava, com a arma apontada para ele, jogou a menina no chão e fugiu desaparecendo na escuridão da mata. Corri ao encontro da menina. Era tarde de mais. Ela estava morta. Não podia ter acontecido isso, eu tinha que ter salvado a menina, e o Anhanguera não podia ter fugido. Estava tentando deglutir o acontecido, lamentando meu fracasso, quando a lua fugiu de trás das nuvens e iluminou a clareira onde eu me encontrava ajoelhado. Foi nessa hora que vi minhas mãos sujas de sangue, e eu olhei para elas sem compreender. Não sei quanto tempo fiquei ali; olhando minhas mãos. Fui despertado do meu transe pelas sirenes de carros de polícia. Estranhei que carros tivessem conseguido chegar até aquele lugar, isso era praticamente impossível. Levantei ressabiado, contudo, me acalmei ao ver o semblante corpulento de meu irmão vindo em minha direção. Ele estava acompanhado por muitos outros policiais. Eles andavam rápido ao meu encontro e seguravam suas armas apontadas para mim. Gritei.

_Ainda bem que vocês chegaram, o Anhanguera conseguiu fugir meu irmão, ele correu pra dentro da mata. Não consegui salvar a pequena, eu sinto muito!

_Plínio, largue a arma e ponha as mãos na cabeça! Gritou meu irmão.

_Rubens o Anhanguera fugiu você tem que ir atrás dele.

_Depois eu vou meu irmão. Agora, por favor, abaixe a arma, deite no chão e ponha as mãos para trás. Prometo que nada vai te acontecer. Não entendi aquela atitude de meu irmão, tá certo que eu falhei na missão, mas isso não era motivo para eu ir preso. Pedi que me explicasse por que estava agindo assim. Ele falou que era o procedimento padrão, que eu sabia disso. A muito custo, e ainda indignado, baixei a arma, deitei no chão e coloquei as mãos para trás. Três brutamontes caíram sobre mim e me algemaram. Um deles cuspiu em minha cara e disse em meu ouvido.

_Você vai voltar pra onde nunca devia ter saído seu doido varrido.

Meu irmão o afastou com um empurrão, chegou perto de mim, levantou-me e abraçou-me com ternura. Olhou bem nos meus olhos e disse:

_Você fez de novo Plínio. Porque você parou de tomar seus remédios? Você foi avisado que não podia parar de tomar, mas a culpa é minha, fui eu que deixei você sozinho lá em casa. E enquanto eu fui até a capital você surtou de novo. Eu olhava incrédulo para meu irmão, não entedia o que ele estava dizendo. Nunca precisei de remédios. Fiz de novo o quê? Será que ele estava me culpando pelas mortes de hoje?

_Rubens o que você está dizendo? Vocês têm que ir atrás do Anhanguera, ele fugiu para a floresta, tem que ser rápido antes que ela suma de uma vez por todas.

_Não existe nenhum Anhanguera Plínio! Isso é invenção de sua cabeça meu irmão, você é doente. Você tem alucinações. Você é esquizofrênico, você vê e escuta coisas que não existem. Não contive um sorriso, quem parecia louco agora era ele.

_Que conversa é essa Rubens? Anhanguera é o nosso bisavô índio, você não chegou a conhecê-lo, mas sabe das estórias que ti contei, você não se lembra das estórias que nosso vô contava, está esquecido disso?

_Nunca tivemos um bisavô índio, você está surtado meu irmão! Plínio, preste bem atenção, você estava preso num manicômio judiciário por triplo assassinato. Naquela ocasião, quando lhe prenderam, você também contou a estória do Anhanguera, só que não existe nenhum diabo velho, o Anhanguera é você. Depois que você foi condenado os médicos diagnosticaram que você era doente, então lhe transferiram para um manicômio. Você ficou lá por 20 anos, tem apenas um mês que você saiu. Os médicos disseram que você não representava mais uma ameaça a sociedade. Então deixaram que você saísse sob custódia. Eu era o responsável por você.

_Que estória absurda é essa? Eu recebi um telefonema da delegada de Carrancas avisando do sumiço da menina, então eu mandei uma mensagem pra você e vim até aqui.

_A cidade de Carrancas não existe mais, Grutas tomou pra si a cidade de Carrancas há mais de dez anos, e agora todo aquele território faz parte de um só município, o Município de Grutas das Carrancas. Não existe nenhuma delegada em Carrancas hoje, já existiu uma no passado, contudo, ela foi uma de suas vítimas há vinte anos. Quando recebi sua mensagem, voltei o mais rápido possível, mas, vejo que cheguei atrasado. Acho que antes do delírio lhe dominar completamente, num lampejo de lucidez, você me enviou a mensagem. Plínio por que você parou de tomar os remédios?

_Não posso crer no que estou ouvindo. Você está armando pra cima de mim meu irmão? E os policiais que me acompanharam até aqui? E a casa onde passei grande parte da minha infância? Como eu saberia chegar aqui? Como vocês conseguiram vir até aqui de carro? Não existe estrada para o sítio do Anhanguera. Por que estou todo sujo de sangue? Eram tantas as perguntas sem respostas, tantas as imagens que passavam por minha cabeça, o passado e o presente se confundindo, que achei que ia perder os sentidos de tão confuso que me encontrava. Meu irmão pediu que eu me acalmasse, ele iria explicar tudo. Ele respirou fundo e então começou:

_Os dois homens, o pai e o irmão da menina, não são e nem nunca foram policiais, isto faz parte de seu delírio. Eles viram a menina entrar no seu carro e o seguiram até aqui. Isto me foi informado por testemunhas que viram você colocar a menina a força no seu carro. Você também os matou, assim como matou a menina. Esse local era onde nosso avô, que não tinha nada de índio, possuía uma pequena chácara, onde você vinha passar as férias. A estrada até aqui sempre existiu meu irmão, antes ela era de terra e desde 2007 ela é asfaltada. Naquela época você passava mais tempo fazendo incursões na mata, do que na companhia de nosso avô. Não raro saia pela manhã e só voltava no fim da tarde. Quando voltava, nosso vô perguntava onde você tinha passado todo o dia e você respondia que estava na companhia do Anhanguera, ele ria e dizia que o Anhanguera era invenção, era lenda, era apenas uma estória para assustar as crianças. Nosso avô nunca deu importância a esse fato, achava que era coisa da fértil imaginação das crianças ou que você estava apenas troçando com ele. Infelizmente já eram os primeiros indícios de sua doença. Foi aqui, também nesse lugar, que vinte anos atrás lhe encontraram, sujo de sangue, como agora, depois de assassinar três pessoas. Naquele dia, você também estava olhando para suas mãos, da mesma forma de hoje, com uma expressão de estranhamento no rosto, como se não reconhecesse suas próprias mãos, como se elas não fossem suas. Parece que tudo se repetiu. Hoje você matou três pessoas novamente. Plínio olhe para a casa, veja, ela não existe mais. Olhei em direção a velha cabana e meus olhos não acreditaram no que viram. Não existia casa alguma, só mesmo três paredes de barros parcialmente erguidas, eram apenas escombros do que um dia fora uma casa. “Será que tudo que eu tinha visto eram apenas ilusões da minha cabeça adoentada?” “Meu Deus!”, exclamei, “será que eu sou mesmo um louco?” Algumas imagens se formaram em minha cabeça, como num trailer de um filme e vi tudo. Vi quando os dois homens chegaram, e como eu os esperava atrás das árvores... vi quando os arrastei até a casa e os esfaqueei... vi a menina sair correndo de dentro da casa chorando, vindo em direção aos seus parentes, e como eu a estrangulei e depois cravei a faca incontáveis vezes em seu frágil corpo... Berrei de desespero.

_NÃO, NÃO FUI EU, FOI ELE, FOI O ANHANGUERA, FOI O DIABO VELHOOOO! Comecei a correr meio desajeitado, em virtude de minhas mãos estarem manietadas. Não fui muito longe. Fui rapidamente alcançado, derrubado e imobilizado. Uma ambulância chegou. Desceram dois homens com roupas brancas, se aproximaram de mim e tentaram aplicar uma injeção, me debati tentando impedir a agulhada, mas foi em vão, depois não lembro mais de nada... Acordei, não sei quanto tempo depois, deitado em uma cama de um quarto de hospital. Os movimentos dos meus braços estavam tolhidos pela camisa de força que me apertava, minhas pernas estavam apresilhadas por uma cinta de couro e correntes. Não podia me mexer. Entretanto, eu podia ouvir. Um som tribal, de tambores a rufar, acompanhados de gritos ritmados, invadiu meus ouvidos. Eu sabia o que significava aquilo. O Anhanguera me chamava de novo!