Noite de chuva

Era noite, estava indo embora por uma rua estreita de pouca iluminação, acendi um cigarro e continuei. Um relâmpago se via ao longe, um trovão ouvi de perto, logo corri para debaixo da marquise, onde um homem quietamente dormia. A chuva começou a cair e o meu cigarro a apagar na marquise estreita. Não tinha onde me sentar. O homem ocupava toda a porta da loja. Tentei acender o cigarro, estava muito molhado, a caixa de fósforos também molhou a minha vontade de fumar. A chuva se tornou mais tempestuosa, fui obrigado a me arrastar para mais próximo do homem que dormia, os pingos molhavam a barra da minha calça, fiquei com receio de o resfriado me abraçar, daí por diante muitas lembranças me vieram à cabeça. Lembro de quando era menino, isso não faz muito tempo, uma chuva como essa era um festival, brincava, pulava, chutava a água em seres imaginários, lutava batalhas com monstros da alienação americana, nadava como no mar, tudo era possível, até mesmo náufragos com um enorme numero de mortes era fácil de imaginar, marinheiros sendo devorados pelos monstros do mar eram como matar formigas com gotas de vela ou até mesmo como jogá-las em uma panela de óleo fervendo, era fácil, tudo era simples e divertido. A chuva continuava, não há sinal de vida pelas redondezas, comecei a procurar por algo que distraísse a minha atenção quando passei a observar o muro à minha frente. Era difícil de enxergar com clareza, a chuva ainda era forte, a água fazia uma parede quase sólida e os meus óculos embaçados com os respingos da chuva dificultaram ainda mais a percepção. Concentrei-me no foco e vi uma pichação. Não entendi direito no primeiro momento. Lembrei-me do cigarro, e logo após, da caixa de fósforos molhada, foi então que resolvi deixar de lado a minha vontade de fumar e voltei para o muro. "T orte indnte uele q ã deu ada p ela”. Foi exatamente isso oque eu consegui enxergar com muito esforço, não entendi praticamente nada. Desprendi-me do foco e voltei a enxergar através da chuva. Como chovia. O homem atrás de mim nem fazia sinal de incômodo com o temporal. É estranho como, nós humanos, nos adaptamos às adversidades da vida com tanta frieza de espírito, conseguimos sobreviver a qualquer catástrofe natural, eu ia imaginando, mas o frio, a falta de banho, a comida pedida, o trocado esmolado, o café quente na cara, um olhar desviado, a bússola desorientada, a cama no asfalto, o sorriso calado, a fé derrotada numa sociedade falida, é a nossa falta de humanismo a responsável pela nossa falta de cuidado. Até tal instante, o homem se escondeu de si mesmo nos inúmeros vales verdejantes de sua imaginação, montanhosos ao ponto de com o pico mais alto tocar as nuvens e fazê-las chorar aos seus pés, assim mesmo como nessa chuva. Mas muito belo para me fazer chorar. Olhei para a luz do poste e não vi nenhuma lâmpada, apenas um feixe remoto de luz me escapava à abstração daquela chuva que não dava sinal de trégua. Poxa vida, eu pensei, mas agora me deu vontade real de fumar, já era quase entediante aquele sono que não cessava... A minha caixa de fósforos havia descido na correnteza do passeio público como a foto da amada que me rejeitou. A minha única saída era acordar o senhor que andava dormindo na porta da loja, talvez ele tivesse fósforos, ou isqueiro, sei lá, viver na rua não é fácil e sem cigarro e fogo é pior ainda. Resolvi chamá-lo:

— Senhor?...Senhor? Acorda, está chovendo muito, você tem um isqueiro para me emprestar?

Ele nada respondia...

— Senhor?... Senhor?... Senhor?... Senhor?...

A chuva começou a parar e um carro junto à loja também parou, era grande, desceu um homem com colete preto, não deu para ver direito, pedi a ele um isqueiro e ele me emprestou perguntando:

— Foi você quem chamou o IML?

O meu cigarro molhou novamente... No muro estava escrito: “Toda morte é indiferente para aquele que não perdeu nada pra ela”.