Otávio e o Espelho

Ele era louro e de olhos azuis. Ninguém mais na família, assim era. Familiares próximos nada se assemelhavam fisicamente a ele. Todos eram brancos, de traços finos, porém, com cabelos e olhos negros. Isso, inclusive, gerou certo falatório, um disse me disse que deixou em risco, e refém da maledicência alheia, a reputação da senhora sua mãe; mãe dele, do dito louro de olhos azuis, e não a da sua mãe, caríssimo leitor. Os mais estudiosos e bem informados, sabem que isso pode ter outra explicação, além da perfídia, incessantemente fuxicada pelos cantos naqueles tempos idos. O nome desse evento é hereditariedade, herança genética. O famoso axioma: quem herda, não furta; enquadra-se muito bem aqui. Certas características podem ficar latentes por algumas gerações e voltarem a aparecer em outras. Foi isso que ocorreu com Tavinho. Otávio Lucius Nascimento, o Tavinho. Ele era igualzinho, diriam mesmo os mais simples, “escarrado e cuspido”, ou ainda, “cagado e cuspido”, seu bisavô materno. A similitude física era assombrosa, diziam os moradores mais antigos que conheceram o antepassado de Tavinho. Anos depois, essa parecença fisionômica, foi evidenciada, ao se descobrir, dentro de um velho baú, um autorretrato, pintado a óleo, do velho parente, quando tinha lá seus 20 anos. E, se eu não o tivesse visto, o quadro, com meus próprios olhos, não acreditaria em tal coisa. Cara de um, focinho do outro; sem tirar e nem por. Assustador. Poderia eu aqui proferir, forçando um pouco a barra, que o fenômeno ocorrido com Tavinho, em referência a seu bisavô, foi o que se denomina de atavismo. Atavismo é o reaparecimento de certa característica no organismo depois de várias gerações de ausência. O termo é usado para um tipo de regressão genética, uma reversão a um tipo remoto da evolução. Como por exemplo: o nascimento de uma criança com calda, uma ave com dentes, uma baleia com pernas, e por aí vai. Mesmo assim, pegarei o termo emprestado, para descrever essa temerosa semelhança, essa volta às origens mais distantes, essa reencarnação de corpo, por assim dizer. Então, vejam vocês, o nosso Tavinho seria o atávico de seu bisavô Otávio Lucius. Mas, e daí? Você deve estar se perguntando. Tantas outras pessoas são parecidas com seus parentes distantes, não são? Qual a importância disto para a narrativa? Toda a importância, eu respondo. Tavinho ser igual, - insisto aqui na palavra igual, e não parecido, para reforçar este curioso evento -, ao seu bisavô, tem toda a influência no rumo desta história e no destino do nosso nobre personagem. Um fado insólito e triste que começarei a contar agora.

Tavinho nasceu no dia três de julho de 1960. Hoje ele teria cinquenta e dois anos. Teria ou tem? Ou será que continua com os seus vinte e dois? Ainda não consegui responder a essas indagações que me faço com frequência. Bem, andemos. Quando eu o conheci ele acabara de completar vinte anos. Foi no ano de 1980. Eu tinha apenas sete anos. Ele era amigo do meu pai. Trabalhavam na mesma firma e treinavam futsal, - àquela época conhecido como futebol de salão -, três vezes por semana no ginásio Constâncio Vieira, em um time que disputava campeonatos amadores pelo estado. Meu pai já um veterano, e ele ainda um calouro, muito promissor, do piso duro. Foram nesses treinos, onde eu, assiduamente, acompanhava meu pai, que o vi pela primeira vez. E, dois anos depois de conhecê-lo, os acontecimentos que se sucederam com ele me abalaram tanto, que me fizeram pesquisar, - depois de adulto -, sobre sua vida, do nascimento até aquele dia fatídico, e desta forma, tentar entender aquele episódio fantástico.

Otávio sempre foi vaidoso. Não podia ver um espelho que ele parava para se contemplar. Como se uma força invisível e irresistível o puxasse para frente do seu reflexo, como o imã que atrai o metal. Como Narciso e as águas do rio. Fora isso, ele era quase normal. Durante a infância sofreu veladamente com as insinuações, de línguas vãs e ferinas, sobre sua concepção. A fidelidade de sua mãe, que foi colocada a prova, não de forma escancarada, e sim, da pior forma possível, na clandestinidade, o machucavam profundamente. Mesmo ele sabendo que se parecia com um parente distante, a divergência física entre ele e seus irmãos o transtornava de forma copiosa. E, possivelmente, foi por isso, que começou a se aproximar dos espelhos. Tentava encontrar, no seu falso ele refletido, qualquer traço de semelhança, por mínimo que fosse, com seus irmãos, com sua mãe e principalmente, com o seu pai. Jamais conseguiu. Seu pai nunca transpareceu sentir qualquer dúvida sobre a paternidade de Tavinho. Ainda assim, Tavinho sempre considerou que seu pai era morno sentimentalmente em relação a ele. Observação que, algumas vezes, segredou a sua mãe, e que foi veementemente repelida por ela. “Tira isso da cabeça Tavinho, seu pai te ama da mesma forma que ama seus irmãos” ela dizia num misto de irritação e indulgência. Ele nunca acreditou calorosamente naquilo, não obstante o fervor com que sua mãe afirmava. Cresceu um menino reservado, com o gosto pela leitura e pelo futebol. O futebol foi quem fez Tavinho se tornar menos esquisito e mais sociável. Só ele, o esporte bretão, para tirá-lo da frente do espelho. Ele ficava muitas horas, todos os dias, trancado no seu quarto, a ver-se refletido no vidro reflexivo. Com o descobrimento do quadro de seu bisavô, a coisa piorou. O quadro mostrava um jovem homem vestido num terno de linho branco. Na mão direita segurava um chapéu coco, de cor preta. Na mão esquerda ostentava uma nodosa bengala de castão de prata. Os cabelos eram revoltos e amarelos como a gema de um ovo. Os olhos eram azuis como água de piscina. Ao fundo, um emaranhado de cores fortes, predominantemente a cor vermelha, como se houvesse ocorrido uma explosão, de onde surgia, incólume, seu bisavô. Era a fotografia fiel de Tavinho na mesma idade. Eu vi o quadro numa ocasião, no ano de 1982, em que voltávamos de um treino, e ele me ofereceu seu antigo time de futebol de botão, feito em galalite, coisa rara aqui na cidade, quando soube que meu aniversário era dali a poucos dias. Fui com ele e com meu pai até sua casa, ele me convidou para entrar. Meu pai ficou no carro aguardando, enquanto eu e ele fomos buscar os botões. Quando entrei no seu cômodo, a primeira coisa que me chamou a atenção foi um grande espelho, que tomava quase toda a parede frontal do quarto. Logo depois vi a pintura. Lembro que perguntei quem foi que o tinha pintado. Nessa hora ele me disse que não era ele ali representado, e sim, seu bisavô, de mesmo nome, Otávio Lucius. Sorri e não acreditei. Não podia ser. Não poderiam existir, por mais próximo que fosse o parentesco, excetuando-se os gêmeos univitelinos, pessoas tão parecidas assim. Ele chamou sua mãe para confirmar, e ela ratificou a afirmação. Fiquei muito impressionado. Foi à última vez que eu o vi. Quinze dias depois ele sumiu, para nunca mais ser visto. Desapareceu no ar, evaporou-se, sublimou. Não levou absolutamente nada, sumiu com a roupa do corpo, não se despediu de ninguém, - talvez o tenha feito, mas fora ignorado ou incompreendido -, e não deixou qualquer recado, bilhete ou sinal. Procuraram em todos os lugares possíveis. Casa de amigos, parentes, supostas namoradas ou paqueras, parques, ginásios de futebol, rodoviária, aeroporto, cidades do interior, bocas de fumo, lixões, IML. Todas as alternativas foram buscadas com empenho. Não se descobriu nada. Essa súbita e misteriosa perda quase acabou com a vida e a lucidez de dona Lúcia, mãe de Tavinho. Um ano após o desaparecimento, já resignados com o sumiço, toda a família se mudou da casa. Levaram tudo, exceto os móveis do quarto de Tavinho, que ficou intacto desde o trágico dia. O colchão fora da cama e encostado no grande espelho, as cortinas fechadas, o quadro do bisavô tirado da parede e repousando ao lado do colchão, o guarda-roupa fechado com todas as roupas em seu lugar. Enfim, tudo do mesmo jeito que estava há um ano. A casa ficou abandonada por trinta anos, sem nenhum comprador interessado, e só foi comprada e em seguida derrubada há poucos dias, momentos após a minha última visita ao lugar.

Esse enigmático desaparecimento consumiu os meus pensamentos durante muitos anos, tornando uma obcessão na minha vida. Eu tinha que descobrir que espécie de sortilégio tinha retirado Tavinho de sua família. Quando terminei a faculdade de Jornalismo, no ano de 1996, comecei a procurar os familiares do meu amigo de infância, com a finalidade de entrevistá-los, e tentar elucidar o acontecido. Eu pretendia escrever um livro sobre aquela história. Foi muito difícil convencê-los a falar. Eles foram bastante reticentes e contribuíram pouco. O pai dele, quando eu falei qual era o assunto, disse que não se lembrava de nada daquela época e encerrou a conversa com um sonoro “Seu filho da puta!”. Os dois irmãos, Leandro e Luciano, mais velhos que Tavinho alguns anos, entrevistei-os, juntos, na casa de Leandro. Eles também não esclareceram muita coisa. Leandro lembrou que, um dia ou dois antes de seu irmão sumir, sua mãe estava reclamando que ele, Tavinho, não saia mais do quarto, e estava agindo de forma esquisita. E, olhando bem para mim, e depois para seu irmão, confessou isto:

- Olha rapaz, quer saber mesmo o que eu acho que aconteceu?

- Sim. Eu respondi.

- Eu acho que ele enlouqueceu e se matou. Jogou-se no mar de alguma ponte e por isso ninguém o encontrou. Provavelmente o corpo foi devorado pelos peixes. Aquele menino era estranho, triste, depressivo, além de complexado com sua aparência. Ele nunca aceitou ser deferente de nós. Eu tenho certeza que foi isso que aconteceu. Embora, eu não possa provar.

Depois disso ele se retirou e a conversa se deu por terminada. Tentei por muito tempo conversar com dona Lúcia. Falei com ela ao telefone. Ela disse que lembrava vagamente de mim, no entanto, não tinha nada a dizer sobre o assunto. E pediu que eu não insistisse. Contudo, eu teimei. E, de tempos em tempos, eu telefonava para ela, ou, mais recentemente, mandava emails, sempre recebendo uma negativa. Fiz isto durante muitos anos, com uma persistência insana. Mesmo com tanta perseverança só consegui falar com dona Lúcia sete meses atrás, um mês antes de sua morte. Ela me mandou um email pedindo que a fosse visitar em sua casa. Quando cheguei ela estava na cama, muito enfraquecida devido a um câncer de colo útero. Ela estava em estado terminal, assim eu soube, porém, naquele dia, ela encontrava-se bem disposta e falante e foi dela que eu soube mais detalhes dos últimos dias de Tavinho. Admito que o que foi dito não esclareceu muita coisa. Não me ajudou a desvendar o mistério. Já que o que ela me disse vai de encontro a tudo que é sensato e razoável. Só fez me deixar ainda mais intrigado. Ela falou sobre o filho com muito carinho. Lembrou-se de algumas traquinagens, de sua tristeza sempre aparente por sua diferença com os irmãos, da culpa que ele sentia pelo que falavam dela, falou da insegurança dele em relação ao amor do pai. Falou da paixão dele pelo futebol e da sua ligação fora do comum com os espelhos, “O espelho era seu refúgio”, ela concluiu. Ela disse que nos últimos dias, antes do seu filho sumir, ele não saia do quarto para nada, ela era que tinha de levar a comida para ele. Muitas vezes ele nem tocava no prato. Falou também que, um dia antes do sumiço, ele foi até o quarto dela, e a acordou pra dizer que ele ia morar com seu bisavô. Que ele estava o chamando e ele iria. Deu um beijo e um abraço nela e voltou para o quarto. Na hora desta recordação ela ficou muito emocionada e falou entre lágrimas:

- Eu não entendi o que ele queria dizer com aquilo, ele parecia estar dormindo quando falou. Não seria nada novo, ele costumava falar e andar enquanto dormia. Ele era sonâmbulo. Então, não dei nenhuma importância aquilo. Eu só fui pensar no que ele disse muito tempo depois. Cheguei a uma sinistra conclusão. Ele foi enfeitiçado pelo espelho. Meu filho foi sugado pra dentro daquele espelho infernal! O espelho foi uma herança do meu avô. O mesmo a quem Tavinho se assemelhava. Ele era um bruxo, era envolvido com magias obscuras. Foram eles, foi o espelho e o desprezível do meu avô que sumiram com meu menino!

Depois dessa incrível revelação, ela ficou muito agitada e não conseguiu mais dizer coisa com coisa. Declaro aqui que fiquei muito tocado com aquele depoimento. Passado um mês recebi a notícia de sua morte.

Há uma semana eu estava andando a esmo pela cidade. Pensando na vida, meio que enfastiado da existência, melancólico e cheio de dissabores, e quando dei por mim estava em frente da casa de meu velho amigo. O casarão estava em ruínas. Um homem estava saindo de dentro da deteriorada casa, acompanhado de uma senhora muito distinta. Aproximei-me deles e me apresentei como um antigo morador do bairro e amigo da família dona da residência. Perguntei se podia dar uma olhada no local. O homem, que era um corretor de imóveis, disse que não tinha problema algum se eu não demorasse. Entrei e fui direto ao quarto em que meu amigo sumiu. A poeira cobria tudo. O colchão tinha praticamente derretido, foi completamente comido pelas traças. Apenas resquícios de tecido e espuma manchavam o chão formando uma espécie de tatuagem. O guarda-roupa estava apodrecido e as roupas puídas. As cortinas eram apenas fiapos pendurados. As paredes estavam esburacadas e com um tom acinzentado, mostrando o outro lado do ambiente. As únicas coisas que pareciam impolutas, sem nenhuma intervenção do tempo, eram o espelho e o quadro. Incrivelmente eles não tinham nem poeira em cima. Encontravam-se perfeitamente conservados. Mantiveram-se integros todos esses anos. Voltei até o corretor e inquiri se alguém estava interessado na casa. Ele me disse que a senhora que acabara de sair tinha confirmado a compra. Interroguei se ela iria ficar com alguma coisa que estava no quarto. Ele disse que não, que ela não queria nada daquelas tranqueiras empoeiradas. Para ela só interessava o terreno. Falei que eu me interessava em levar algumas coisas que estavam dentro do quarto. Ele disse que não tinha problema algum. Eu poderia levar o que quisesse. Quanto antes melhor. No outro dia retirei o espelho com a ajuda de uma firma de mudança, e também levei o quadro comigo. Neste mesmo dia a casa foi demolida. Agora, ali, na casa de Tavinho, funcionará uma loja de informática.

Há vários anos dedico minha vida, exclusivamente, a este acontecimento. Deixei tudo de lado. Trabalho, namorada, outros projetos. Sobrevivo de uma pequena herança que minha finada mãe me deixou. Neste tempo todo nunca cheguei perto de decifrar o que aconteceu com Tavinho. Nesta derradeira semana perdi totalmente minha motivação para continuar a desvendar o inexplicável caso. Estou passando os meus dias trancado no quarto, me olhando no espelho. Naquele espelho que foi de Tavinho, e que também foi de seu Bisavô. Observando o meu outro eu. A cada dia fico mais tempo. A cada dia chego mais perto dele, do espelho. Cada vez mais perto da minha imagem refletida. A cada dia por mais tempo e cada vez mais perto. Muito mais perto...