SOB O EFEITO DO ACASO

"Este conto é uma parceria entre mim e Cleo Ferreira. Uma junção de estilos, eu diria! Quero agradecer a paciência do meu parceiro e dizer que foi um grande aprendizado dividir essas linhas com alguém que admiro como escritor.”

Jocélio era um cara comum. Trabalhava como cobrador de ônibus, provisoriamente, há quatro longos anos. Acordava todos os dias em plena madrugada e chegava à garagem no horário certo para escapar do mau humor do chefe de plantão; naquele dia, porém, algo deu errado... o despertador não tocou. Acordou atrasado e quase caiu da cama; apressado, escovou os dentes, lavou o rosto e saiu, ainda mastigando um pão seco e pedalando sua velha bicicleta de 18 marchas. Ao chegar à garagem cumprimentou o motorista, funcionário novo, e juntos saíram para as viagens diárias daquele itinerário periferia/centro.

A rotina do trajeto fez com que Jocélio conhecesse a maioria dos passageiros: trabalhadores simples acostumados ao sacolejar, mesmo quando sentados, das ruas esburacadas, sujas e quase sem iluminação do percurso de todo dia.

Jocélio sempre deposita toda expectativa na segunda viagem diária. De uns dias para cá aquela garota, trajada com um uniforme de um supermercado, dá sinal e entra no ônibus no mesmo ponto e à mesma hora. Ela é linda e perturba seu pensamento por todo o dia. Sonha com a moça; às vezes, em seus sonhos, confunde o rosto dela com o de atrizes de filmes, mas são sempre aqueles olhos... Aqueles grandes olhos castanho-escuros que o enlouquecem.

Ele estava decidido a não ficar mais apenas em sonhos e devaneios. Iria convidá-la para sair.

Nicão trincava, ainda sob o efeito da pedra que acabara de fumar, mas o recado do “avião” reverberava em seu cérebro como um mantra amaldiçoado: o trafica da área queria receber o que ele já devia na boca. Dali em diante não haveria mais desculpas. Ou pagava... ou pagava!

Roubar alguém dali era fria na certa. Tudo gente pobre e ferrada como ele e, além do mais, conhecida. Sentindo-se num beco sem saída, abriu a mochila, apanhou o revólver, conferiu as balas no tambor, jogou de volta lá dentro e saiu...

As mãos de Jocélio começaram a suar à medida que o ônibus se aproximava do ponto em que ela embarcava; aos solavancos o ônibus parou. Embarcou calada como de costume. Nicão subiu logo atrás, tentando não chamar muito a atenção.

Ela estava de uniforme como sempre e embora tivesse o semblante cansado, seus olhos brilharam quando sorriu para ele e disse um bom dia. Era a primeira vez lhe dirigia a palavra. Ele se espantou, pois quase nunca ela sorria nem falava. Apenas pagava sua a passagem e calada passava pela catraca, fitando o chão. Uma única vez olhou-o nos olhos e disso ele nunca esqueceu. Congelou aquele momento e lembrava-se dele com carinho antes de dormir, para que sonhasse com aquele rosto, aquele corpo... ela era perfeita.

Jocélio, em seus vinte e quatro anos de vida, parecia um menino que vivia de ilusões e nunca tinha coragem de transformá-las em realidade; dizia a si mesmo que era melhor assim, mas na verdade tudo o que ele queria era tocar os cabelos escuros e o corpo moreno de sua amada.

- Moço, meu troco! - Ele voltou a si. Ela, imóvel à sua frente, pela segunda vez dirigiu-lhe a palavra. Seu coração disparou ao fitar os olhos castanho-escuros e o rosto carrancudo que o encaravam.

- O Meu troco. Te dei cinco.

Jocélio movia os lábios e tentava encontrar palavras para falar: havia tantas coisas que gostaria de dizer. Sua imaginação começou a fluir e logo seu corpo ficou inerte na cadeira puída de cobrador; imagens de possíveis futuros em que os dois festariam juntos e felizes invadiam seu campo de visão.

Jocélio ouvia apenas as batidas do seu coração quando um estampido seco e alto tirou-lhe daquele transe. Os passageiros fitavam a cena como uma plateia extasiada: boquiaberta. Ali, no chão bruto, sujo e frio o corpo dela caíra desamparado, atingido por um tiro fatal disparado à queima roupa por Nicão e que lhe atravessou a têmpora direita.

De seus olhos tristes brotavam as últimas lágrimas e, dos de Jocélio, apenas as primeiras.

Eliane Verica e Cleo Ferreira
Enviado por Eliane Verica em 26/10/2012
Código do texto: T3953258
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