O Dom da "Loucura"

– Mamãe, tem um garoto na cozinha. – disse a menininha entrando às pressas no quarto de seus pais.

– O quê?! – a mulher correu em direção à cozinha, mas não viu ninguém lá – Pare com essas mentiras! Brincadeira tem limite. – falou apontando o dedo para a filha.

A menina já havia contado a mesma coisa em outra ocasião, mas também nada a mãe viu, e da mesma forma repreendeu a garota.

Após a segunda vez, a criança começou a mudar, e a alegria infantil que antes tinha, deu lugar à quietação e retraimento. Seu comportamento chamou a atenção de sua mãe, que tentava solucionar a situação com broncas.

Tempos depois, quando chegava do trabalho, enquanto pendurava a bolsa no cabide, a mulher ouviu sua filha conversar com alguém. Bem devagar ela caminhou até onde a menina estava e a viu sentada no tapete do quarto, aparentemente sozinha.

– Você é louca, por acaso? Pare de conversar com o vento! – censurou a mãe.

A triste garotinha a cada dia se isolava mais, já não queria brincar com as outras crianças, porque caçoavam dela; e suas notas da escola começavam a ficar bem abaixo da média. Seus pais resolveram, então, procurar a ajuda de um psicólogo. Este disse a eles ser normal, na idade da filha, ter amiguinhos imaginários e que não a recriminassem por isso, pois com o tempo essa fase passaria. E passou. Depois que cessaram os carões, a menina, aos poucos, foi melhorando seu comportamento e, logo, a alegria voltou a colorir sua infância.

Anos depois, quando já quase na puberdade, poucas horas após o sepultamento de seu avô, a menina aproximou-se de sua mãe e disse que precisava lhe contar uma coisa muito importante. A mãe sorriu acolhedoramente, porém ainda chorosa pelo falecimento do ente querido, e se pôs a ouvir.

– Vi o vovô em meu quarto agora há pouco e...

– Pode parar! – a mulher interrompeu enfurecidamente a filha – Eu aqui, chorando a morte do meu pai, e você vem com uma brincadeira dessas?! Não vou tolerar isso.

– Mãe, por favor, ele pediu que lhe desse um recado importante.

– Chega! Cale-se e vá para o seu quarto! Nunca mais se atreva, nunca mais! – aos prantos, a mãe repreendeu.

Obediente, a pequena jovem subiu para seu quarto, também às lágrimas e inconformada. Depois disso, sua mãe lembrou-se do comportamento semelhante da menina quando mais nova e se angustiou. Decidiu então submeter a filha novamente ao acompanhamento psicológico. E mais uma vez a menina parou de falar em pessoas que somente ela via.

Certa noite, na sala da casa, filha, pai e vizinhos esperavam aflitos por notícias, pois a mãe já passava muito do horário costumeiro de chegada do trabalho, não atendia o celular e em seu escritório informaram que ela saíra havia horas. Contataram parentes e amigos, mas ninguém sabia da mulher.

– Meu Deus, eu tentei falar, o vovô tentou avisar, mas ela não quis ouvir! – repetia inconformadamente a garota, até subir chorando para o quarto.

Passados alguns instantes, a mulher enfim chega.

– Finalmente cheguei em casa! – falava com ar de alívio – Ninguém vai me dar um “boa noite”? – Estava confusa, pois nem marido nem vizinhos respondiam, sequer a olhavam.

A mulher entrou em pânico. Tentava chamar a atenção de alguém ali na sala, mas ninguém a via nem ouvia. Ela gritava, suplicava que a ajudassem, porém nada. O desespero lhe tomava, pois uma ideia assustadora lhe passava pela cabeça.

– Meu Deus! Eu estou morta. – disse a mulher, baixando a cabeça, lembrando-se da tragédia que ocorrera consigo havia poucas horas – Ninguém pode me ouvir... Ninguém pode me ver...

– Eu posso vê-la, mamãe. – falou-lhe sua pequena, com um tom confortador na voz, descendo as escadas a olhá-la saudosamente – Posso ver e ouvir a senhora.

Júlio A S Crisóstomo
Enviado por Júlio A S Crisóstomo em 02/11/2012
Reeditado em 22/06/2013
Código do texto: T3964842
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2012. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.