3. GRANDES AMIGOS DESCONHECIDOS

Este texto é sequência do texto 2. A FÁBRICA DE SAPATOS.

Após ter fugido da casa do meu pai, em São Leopoldo, no meio da tarde do último sábado, tendo dormido numa construção coberto com papelão na primeira noite, no Município de Dois Irmãos, na Serra gaúcha, na manhã da segunda feira despertei antes das sete horas na varanda de uma escolinha tipo Brizolinha, no lugarejo de Picada Café, até onde cheguei praticamente a pé, há quarenta e três quilômetros de minha casa. Uns seis quilômetros era o total que percorrera até então de carona.

Num belvedere há uns seis quilômetros de Picada Café foi onde no dia anterior fiz a única refeição do dia a custa do favor de uma turma de amigos que ali churrasqueavam. Entre eles tinha conhecido um que se disse ser o Rubelo, proprietário da fábrica de Calçados Rubelo, na localidade de Picada Café. Tendo lhe falado de minhas habilidades no ramo calçadista, me disse que me empregaria na fábrica, motivo pelo qual na segunda feira às sete horas da manhã lá estive falando com a recepcionista que me disse que o Rubelo viajara na sexta feira para São Paulo e retornaria no final da semana. Acrescentou que no momento não havia vaga na empresa.

A frente de uma tenda de artesanato na margem da BR 116, fiquei por algum tempo a sinalizar pedindo carona, até que um senhor com um Passat parou e me levou por uns dezesseis quilômetros, até Nova Petrópolis, onde entrou na cidade, deixando a rodovia para a esquerda.

Do entroncamento onde me deixou, segui a pé descendo pela encosta de uma montanha a rodovia federal até o rio Caí, tentando alguma carona, mas não consegui, até porque tal trecho não possuia acostamento adequado.

Há distância de uns dois quilômetros antes de cruzar a ponte, vi uma pequena nuvem no meio do céu azul ensolarado, derramando chuva num espaço do tamanho de um quarteirão, aproximadamente, sobre o asfalto. Cheguei a pensar que tomaria aquela chuva sarcástica ao cruzar a nuvem, mas antes que eu chegasse embaixo a chuva já tinha cessado.

Após ter passado o rio Caí, além de onde hoje existe uma praça de pedágio, já na primeira de uma seqüência de curvas que dão acesso a localidade de Galópolis, um senhor trafegando num Chevette parou e me deu carona. Em Caxias do Sul, chegamos em um bar na esquina da rua Marechal Floriano com a Os Dezoito do Forte, onde, sem que lhe pedisse, ele me pagou um lanche farto, pois passava de meia tarde e esta foi minha primeira refeição nesse dia. Aí me apresentou ao atendente, um jovem senhor muito simpático, a quem contei o que fazia perambulando e o porque de ter fugido de casa, bem como do propósito de arranjar trabalho e sossegar. Esclareci que a tarefa de arranjar trabalho seria um pouco difícil, pois minha carteira profissional estava ainda assinada e por dar baixa da empresa em São Leopoldo que me contratara como cotista do Senai.

Sugerindo que fizesse nova carteira, ele me deu dinheiro para tirar fotos e no estúdio onde as bati mandaram que retirasse no dia seguinte. Andei um pouco pela cidade a fim de conhece-la e fazer hora, voltando mais tarde para o bar, onde conversei bastante com meu novo amigo. Ao fim da tarde ele me deu novo lanche, preocupando-se que não teria o que comer durante a noite. Fiquei por ali até um pouco mais tarde, quando ele sugeriu que eu saísse porque a polícia poderia aparecer e querer explicações do por que de um menor de idade achar-se num bar tarde da noite. Chovia fraco, mas tranqüilizei o amigo garantindo que acharia algum abrigo para dormir. Então saí procurando as marquises das lojas para me abrigar enquanto caminhava rumo a nenhum lugar. Em vários pontos da cidade estive fazendo tempo. Num ponto de táxi, onde fiquei algum tempo conversando com um motorista, me foi sugerido que dormisse no banco do abrigo, mas achei muito exposto e perigoso. Segui em pé, de marquise em marquise até que me vi em frente a catedral de São Pelegrino, onde estivera com uma excursão no mesmo ano de 1980. Emocionado por ter identificado um lugar conhecido, fiquei abrigado sob a pequena aba de um edifício na avenida Rio Branco, a admirar o magnífico templo católico, enquanto pensava que teria que passar a noite em pé, pois a chuva era fraca, mas há muitas horas persistia.

Muito cansado e quase sucumbindo, vi aproximar-se um homem trazendo a tiracolo uma sacolinha coma as que os trabalhadores levam a marmita. Falou-me de forma meio afeminada, como eu não me recordava de ter visto antes. Convidou-me para ir para sua casa, onde teria comida e lugar para dormir. Fiquei desconfiado e temeroso, mas achei que tal figura tão delicada não iria me fazer mal e se tentasse eu haveria de me defender. No caminho para a casa dele tive muitos flaches de como poderia me dar mal e cheguei a dar desculpas para deixá-lo, mas, percebendo meu medo, ele argumentava que não havia perigo. Em casa, tentou me beijar e acariciar, como se fosse uma mulher. Mas eu era matreiro,bastante tosco e, sem cerimônia, repeli-o com grosseria, pelo que ele me deixou em paz. Então dormi descansado, numa cama confortável.

Na manhã do dia seguinte me disse que eu poderia voltar para dormir até que encontrasse lugar para morar, mas somente entraria quando ele voltasse do trabalho, no mesmo horário da noite anterior. Pensei que seria constrangedor repeli-lo outra vez, mas voltaria e faria a mesma coisa caso precisasse.

Bem cedo naquela manhã voltei ao bar da esquina, onde meu amigo apresentou-me sua linda esposa, a quem já tinha falado de mim e do que andava fazendo. Muito amáveis, me deram um belo café, enviando-me depois para retirar as fotos e fazer a carteira profissional. Com a carteira na mão, voltei próximo ao meio-dia, então me deram almoço e a tarde, por indicação deles, caminhei longa distância até a Marcopolo, onde pensava empregar meu talento de desenhista na personalização de ônibus. Mas foi tão difícil chegar, tendo que subir e descer várias escarpas rochosas, para daí descobrir com quem falar e saber que a pessoa não estava e teria que voltar noutro dia. Ao final da tarde, muito cansado, estive outra vez no bar, onde ganhei outro lanche e dali saí para evitar a polícia, indo parar num fliperama, onde fiz tempo até a hora que o homem afeminado chegaria em casa.

Quando cheguei, o homem afeminado apresentou-me um rapaz pouco mais alto que eu, musculoso, como quem faz alterofilismo, dizendo que se tratava de Adilson, seu primo, que então ia morar com ele. Entretanto, resalvou que eu podia continuar posando ali. Fiquei feliz por saber que não mais seria importunado com seu assédio e me abriguei no lugar por mais uma semana e meia, quando arranjei trabalho e lugar para morar.

Wilson Amaral

Romance e Poesia
Enviado por Romance e Poesia em 07/03/2007
Código do texto: T403959