Noite de Natal

Detestava estar só porque não queria morrer sem testemunhas. A casa escura, sem árvore de Natal ou luzes a piscar, contrastava com a vizinhança alegre e ricamente ornada para a festa maior da cristandade e do comércio. Na mesa não havia peru ou sequer um chester. Apenas uma salada fria, arroz e conhaque, tudo mergulhado no aroma de um bacalhau que chiava no forno. As velas não eram luxo, testemunhavam tão somente a passagem dos homens da compania de eletricidade no cumprimento antipático do dever de interromper o fornecimento de luz aos inadimplentes.

Durante a tarde o filho estivera ali e trouxera com o pai o presente de Natal. Lembrava do sorriso carinhoso da criança quando lhe entregara a cafeteira elétrica e dissera-lhe animado: “Feliz natal, mamãe!”. Ela lhe retribuíra o abraço frio e logo foram o menino e o pai. Ficou sozinha a pensar que estava na hora de começar a tomar café, que perdera parte da vida abstendo-se daquele líquido tão salutar que, havendo corrente elétrica na tomada, a tecnologia agora poderia ajuda-la a preparar com tanta praticidade e rapidez. Riu-se com amargura, lembrando como as pessoas podem ser esquecidas tão rapidamente, quando uma corrente forte de ar agitou as cortinas e derrubou o vaso de flores artificiais que repousava sobre a mesa. Deu-se, então, conta de que a casa ainda estava aberta e de que já era noite. Sentiu os músculos rijos e foi a muito custo que conseguiu se mover da cadeira e deslizar pela casa munida de um toco de vela decidida a cerrar portas e janelas.

Lá fora o cão do vizinho uivava tristemente no quintal, também abandonado no Natal, e entre um uivo e outro encontrava tempo para ladrar ameaçadoramente, como que denunciando a presença de alguém indesejado. Ela apressava o passo, suando frio, imaginando que um estranho pudesse saltar-lhe janela adentro e degolá-la sem palavras com uma lâmina suja. Esse pensamento atormentava-a desde que o marido fora embora com o filho, naquela noite fatídica em que a apanhara na cama com a Ritinha, e agora já não podia dormir sem antes verificar bem as portas e janelas, os armários e debaixo das camas, para se certificar que nenhum intruso aninhara-se ali para lhe causar mal assim que se entregasse ao sono propiciado pelos remédios que engolia com tal finalidade.

Ao retornar à mesa sentiu pelo aroma que o bacalhau principiava a queimar e ouviu, depois de forte clarão, o ecoar de violento trovão. Antes de se dirigir ao forno para retirar o peixe, olhou pela vidraça da janela para ver se já chovia. Efetivamente começavam a cair gotas vigorosas e um forte vento agitava as árvores do jardim, retorcendo as copas que dançavam como que ao som de um bolero. O cão do vizinho rosnou violentamente e ela teve a impressão de ver alguém saltando para a escuridão do jardim, esgueirando-se entre as acácias e as roseiras. Mas logo se acalmou, deveria ser só impressão. Afinal, quem se atreveria a nadar pelo jardim em meio a semelhante tempestade?

***

Os trovões aumentaram de intensidade e raios ameaçadores riscavam o céu, iluminando a casa através das vidraças. O bacalhau queimara um pouco, mas permanecia saboroso untado no azeite virgem. Deveria ser umas oito horas da noite, imaginou ela. Àquela hora o filho preparava-se para dormir, deixando certamente o sapatinho debaixo da árvore de Natal, esperando acordar no outro dia e encontrar muitos presentes.Ía assim mergulhada em divagações quando ouviu um ruído vindo do jardim. Não conseguiu logo identificar que barulho era aquele, dada a intensidade da chuva, que agora caía com muita força, mas lhe pareceu que fossem passos de alguém que corria e pisava inadvertidamente poças formadas no gramado irregular e mal cuidado. Aterrorizou-se diante da possibilidade real de haver um estranho, talvez um assassino, um psicopata em seu jardim. Pensou em chamar a polícia novamente, como fizera várias vezes nos últimos dias diante de semelhantes ameaças, mas lembrou que, além de o telefone estar bloqueado, a polícia não viria mesmo depois de tantos alarmes falsos. Um sentimento de desamparo tomava conta dela. Mesmo assim, teve coragem bastante e se levantou, dirigindo-se à janela discretamente, esgueirando-se por trás das cortinas.

Lá fora a chuva castigava a paisagem e os raios iluminavam o jardim. Ela procurava com medo encontrar alguém no jardim e foi com um arrepio que o viu claramente desenhado, perto do manacá, coberto por uma capa plástica, os olhos faiscando, olhando direto para ela. Correu desesperada pela casa, procurando pelo telefone e encontrou-o no meio das almofadas:” a compania informa, esse telefone não está realizando chamadas!”. Meu Deus! Estava com um psicopata no jardim e não podia sequer chamar a polícia. Ia morrer, sabia que ia morrer! Vira o sentimento assassino nos olhos do homem. Meu Deus!

Subiu correndo pelas escadas, entrou no quarto e foi até a gaveta da cômoda. Nada, estava vazia, a arma sumira. Maldito! O ex-marido certamente levara-a temeroso de que pudesse se prestar à tentação nos seus momentos sempre presentes de depressão. Maldito! E agora, como se defenderia daquele psicopata que passeava em seu jardim?

***

Apagou as velas uma a uma. A escuridão poderia ocultá-la. Apertou a faca na mão direita e correu para baixo da escada. Pensou em rezar, mas descobriu que perdera a fé fazia algum tempo e que de nada adiantava tal assomo de pieguice. Cortou a respiração e aguçou os ouvidos. No escuro, pensou, “ vê melhor quem melhor ouve!”.

E ouviu que os passos se aproximaram da porta, que a maçaneta girava, que a porta fora aberta e fechada cuidadosamente. De onde estava não podia ver quem entrara, apenas ouvia e os sons rasgavam-lhe a alma. Ele estava agora dentro da casa, os passos leves como de uma gazela, um pisar muito cuidadoso que só podia perceber um ouvido muito atento. O deslocamento era organizado, meticuloso, primeiro esquadrinhando a sala, lentamente; indo à cozinha, voltando; chegando perto das escadas! Ela levantou a faca, preparando o golpe, os pulmões vazios, a boca seca, o corpo gelado, exausto, pronto para desmaiar a qualquer instante. Faltava força ao braço para firmar a faca e se manter armado ao mesmo tempo. Mas os passos desistiram de dar a volta e agora subiam as escadas, devagar,, tocando só de leve na madeira.

No instante em que ouviu os passos transporem a escada e ganharem o corredor superior, mil idéias vieram á sua cabeça: sairia correndo pela porta da frente e buscaria ajuda na vizinhança. Não, muito arriscado! Ele certamente a alcançaria ainda no jardim. Era morte certa!

Sob as escadas, acuada, ela perdia as esperanças. O corpo tremia todo, suado, esgotado. Parecia ser só uma questão de tempo! A faca já não se firmava no braço, fraco demais para tentar o golpe. Logo logo ele a encontraria ali escondida e então... mas não, não precisava ser assim! Da rua vinha uma gritaria, uma algazarra enorme. A chuva parara e ela nem notara. Uma criançada seguia o Papai Noel, gritando e cantando com o bom velhinho. Era a salvação! Faria um sinal, atrairia todos para a casa e o psicopata não teria coragem de fazer qualquer coisa diante daquela multidão.

Mas na rua algo acontecia. A criançada passou rapidamente, gritando e cantando o natal. Logo as vozes iam se distanciando, sumindo na esquina próxima. Só o Papai Noel parou, estacou diante do portão, olhando para todos os lados, espiando a casa com um estranho interesse. Será que notara algo estranho na casa? De fato o Papai Noel abria o portão e entrava com cuidado, caminhava pelo jardim, abria a porta e entrava. Ela aguçou os ouvidos e percebeu que lá em cima estava tudo quieto.

Sem muito pensar, ela iniciou uma corrida louca em direção da porta, lançando-se nos braços do Papai Noel que, surpreso, segurou-a firme e pôs o indicador nos lábios, pedindo silêncio com um chiado, olhando tudo em volta, como que procurando se havia mais alguém presente. Como não encontrou, segurou-a firme e foi conduzindo-a para a escuridão do sofá. Ela tinha a estranha impressão de que aqueles gestos eram familiares. Mas seguiu-o, abraçando-se forte a ele, sentindo sua respiração ofegante, quando percebeu que uma mão apalpava-a toda, passando pelos seios e escorrendo até o sexo. Tentou desesperadamente reagir, fugir, todavia era tarde. Ele agarrava-a com força e lhe apertava o pescoço, arrancando o vestido.

- Vagabunda! – sussurrou-lhe ao ouvido.

Ela não acreditava no que ouvia, naquela voz, na entonação familiar, no ódio conhecido. E quis gritar, quis fugir, quis lutar. Estava imobilizada, não podia se mexer, perdia a respiração, sentia que o corpo se entregava desfalecendo.

- Solte a mulher devagar e ponha as mãos na cabeça! – Ela ouviu um homem gritar do alto das escadas, ao mesmo tempo que todas as luzes da casa eram acesas. – Ponha as mãos na cabeça, já disse!

Depois disso, tudo foi muito rápido. Ela ouviu apenas os disparos e sentiu o corpo inundado de sangue, comprimido pelo corpo do outro que se desmanchara sobre o seu. E quando percebeu direito o que estava acontecendo, viu que não sentia nenhum ferimento e que o homem da capa plástica mostrava-lhe o distintivo.

- Polícia, moça! Está tudo bem agora. Calma!...

- Mas... eu pensei que...

- Calma! Vínhamos seguindo seu ex-marido há dias, desde que descobrimos que era ele que a estava assustando. Felizmente pudemos pega-lo antes que o pior acontecesse...

Logo a rua estava cheia de carros da polícia e ela saía amparada pelo policial que até há pouco ela tinha confundido com um psicopata que invadia sua casa. A chuva voltara a cair e lavava o sangue que cobria seu corpo.

- Que chuva, heim?! – disse um PM, de passagem.

- É! – respondeu o policial, sem largá-la, apenas diminuindo o passo.

- Aquele caso do ex-marido que perseguia a mulher? – insistiu o outro.

- Esse mesmo. Veio vestido de Papai Noel, imagine? Pode recolher o corpo que amanhã entrego o relatório.

- Beleza, assim chego em casa a tempo da ceia...

- Feliz Natal!

- Pra você também, detetive!

“Feliz natal!”, pensou ela. Há quanto tempo não tinha um feliz natal. E enquanto seguia no carro da polícia, olhava as árvores iluminadas da rua e os motivos de Natal que se espalhavam por todo lado.

- Feliz Natal! – sussurrou, enquanto pensava no filho que deveria estar dormindo tranqüilamente àquela hora.

v santana
Enviado por v santana em 15/02/2013
Código do texto: T4141112
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