PÉRFURO CORTANTE

Ouviu o barulho do carro entrando na garagem. Depois, a porta da sala se abrindo. Abraçou mais forte o seu ursinho. “Faça ele não querer subir aqui em cima, meu Deus. Por favor, de novo, não”. Mas em seguida ela escuta os seus passos nos degraus. Levanta-se então da cama, abre a porta do guarda-roupa, beija a testa do ursinho e o deixa lá dentro. Não quer que ele veja, caso aquilo tudo venha mesmo a acontecer. Volta novamente a deitar na cama, vira-se de lado e finge dormir. O homem chega até a porta, força a maçaneta. Um facho de luz invade o aposento. Olha para o corpo da menina deitada, o lençol cobrindo até a cintura. Avança em direção à cama. Ela ainda pede em pensamento para que ele vá embora sem tocar nela. Sente então muito próxima a sua respiração ofegante. E em seguida sente a sua mão acariciando seus cabelos esparramados sobre o travesseiro. Já sabe o que ele vai fazer. E não adiantará se debater, chorar, implorar. Ninguém virá para socorre-la. A mãe só voltará tarde da noite, depois de tudo já ter acontecido. E ela continuará sufocando aquela dor, mantendo segredo sobre aquela coisa horrenda, para que a mãe não sofra ainda mais. Ele a vira sobre a cama, suas mãos percorrem todo o seu corpo. Ele está muito perto para desistir. Tudo está prestes a acontecer de novo. E ao sentir o seu rosto tão próximo, ela só consegue dizer num murmúrio “por favor, não”, e fecha os olhos contraindo uma lágrima que escorre pela sua face.

Nesse instante ela ouve um grunhido assustador, como se fosse de um animal feroz. Escuta logo depois um baque surdo, seguido de um gemido seco. Então sente o corpo do homem tombar sobre o seu.

O policial interpela o amigo no corredor da delegacia.

_E aí, Flávio, o que deu na perícia?

_Pérfuro cortante.

_O quê? Tá me dizendo que a menina meteu uma faca no cara?

O outro balança a cabeça.

_Não, ele estava se deitando sobre ela quando foi alvejado pelas costas. Não teria como ela esfaqueá-lo nessa posição.

_Então alguém entrou no quarto e passou a faca no sujeito.

_Parece que sim, mas não há indício nenhum desse alguém.

_Nada? Como assim?

_Pois é, Menezes, está muito estranho. E tem mais: o ferimento não é de faca. Foi alguma coisa mais pontiaguda.

O outro levanta as sobrancelhas, e fica com o ar de surpresa no rosto quando o amigo complementa:

_Tudo indica que foi a garra de algum animal ...

Quando foi limpar o guarda-roupa da menina, semanas depois do incidente, a empregada achou estranho ver aquela mancha na pata do ursinho de pelúcia. Parecia ser de sangue...