Com A Benção De Deus

Moro numa pequena cidade do interior do nordeste brasileiro há mais de vinte anos. Exerço minha função com amor e dedicação. Zelo minhas amizades e respeito meus poucos desafetos. Sou um homem conhecido e honrado por todos. Tenho a admiração de pobres almas necessitadas, mas também de nobres famílias ricas da região. Transito por nichos diferentes com desenvoltura e simplicidade e, talvez por isso, sou bem quisto pela maioria das pessoas. Apesar de não ser filho da cidade, já fui convidado inúmeras vezes para me candidatar a um cargo político. Recusei-me terminantemente. Ainda assim, vez em quando, a oferta reaparece. Não fui concebido para a política, não tenho o sangue frio para a arte da conveniência, fui escolhido para outro tipo de missão. Um desígnio árduo de limpeza e purificação que, durante meus anos de vida adulta, eu tive o extremo prazer de executar por três vezes, sempre, claro, com a benção de Deus.

A hipocrisia humana é uma das manifestações que mais me irrita entre todos os irritantes subterfúgios de convivência usados por nós, meros mortais. As pessoas fingirem virtude e compaixão, dissimulando sua personalidade, encobrindo descaradamente seus piores defeitos e inventando qualidades, é uma coisa que me enoja. A vaidade e a luxúria são outras transgressões que me perturbam seriamente, ao ponto de me levar a perder meu estimado controle emocional e espiritual. Esses tipos de atitudes açulam o que de mais terrível existe em mim. Toda minha crueldade, latente nos lugares mais recônditos da minha alma, erupciona como lava quente e borbulhante, incandescendo todo o meu ser. Essa combustão interior, essa febre, me faz entrar numa espécie de transe, que me causa sublimes delírios, onde me vejo tocar a face de Deus e, deste modo, sugar um ínfimo de seu poder, tornando-me um austero sentenciador.

Nasci em uma pobre e faminta família. Meus pais morreram numa desavença por terra. Uma poderosa casta de latifundiários invadiu nossas míseras posses, gerando um grande conflito, que culminou no assassinato de meus genitores. Eles foram executados friamente sob meu inocente olhar infante. Fui, então, criado por meu avô João Bravo, também conhecido como “Boticão Bravo”, um ex-famigerado cangaceiro do bando de Lampião. Meu avô Bravo foi um dos poucos que escaparam da emboscada dos volantes, em uma gruta, na fazenda Angicos, município de Poço Redondo no estado de Sergipe, que matou Virgulino e quase todos os seus comparsas, no dia 28 de julho de 1938. Quando fui morar com meu avô, ele tinha se transformado num pacato criador de cabras que vivia modestamente. Arrependido dos anos em que espalhou o terror e a morte nas matas e cidades sertanejas, ele me criou de forma inflexível, seguindo os rigores da lei e da religião. Durante suas costumeiras bebedeiras ele me contava, com os detalhes mais dolorosos e sórdidos, os rituais macabros que eles faziam para matarem policiais, inimigos e delatores. Durante esses relatos, tive minhas primeiras alucinações, “viajando”, saindo de mim e ficando entorpecido. Até então não sabia que aqueles “insites” eram o chamado para minha missão. No ano de 1967, quando eu tinha quinze anos, meu avô faleceu. Herdei dele seu enorme punhal do cangaço, quase do tamanho de uma espada, com uma lâmina de mais de oitenta centímetros e com uma empunhadura de marfim cravejada de pedras semipreciosas, que me acompanha até hoje para onde quer que eu vá, servindo-me de instrumento para a minha incumbência divina. Mudei-me para casa de um parente distante, na periferia da capital, onde concluí meus estudos. Perambulei por boa parte do nordeste brasileiro, privilegiando pobres cidades interioranas. Aos quarenta anos, me vi chegando à hospitaleira Poção dos Anjos, cidade que hoje eu resido. Meu nome é Nemias Bravo Junqueira, tenho sessenta anos, saúde de ferro, um físico invejável e meu destino é encaminhar espíritos torpes para o inferno.

Numa manhã ensolarada de quinta-feira, quando andava pela cidade e fazia visitas às famílias, - faz parte do meu oficio esse corpo a corpo -, encontrei minha quarta vítima.

Gosto muito desse contato com as pessoas na intimidade dos seus lares e aproveito, durante essas “diligências”, para filar o almoço de quem estou visitando. Nunca aviso a quem vou visitar, chego sempre de surpresa e o cheiro que vem da cozinha é o que me convida a ficar. A gula é um dos pecados que mais me persegue, - possuo um grande forno industrial, que pode chegar a temperaturas altíssimas, em minha casa, onde exercito minha gula fazendo saborosos pães, embora a real finalidade do forno não seja essa. Ao passar pelo altivo casarão do próspero comerciante José Norberto, conhecido popularmente como Beto galego, lembrei-me do tempero de Zica de Cidinha, sua cozinheira. Olhei para o relógio, que marcava dez e trinta da manhã, e resolvi entrar. Bati palmas na frente da porta, mas ninguém veio me atender. Fui entrando, - como de costume em casas do interior a porta não estava com chave, estava apenas escorada. Ao entrar, minhas narinas foram presenteadas com um delicioso cheiro de um capão sendo cozido. Decidi, naquela hora, que almoçaria ali. Parecia não haver ninguém em casa. Pelo horário, Dona Maria de Doda, mulher de Beto, deveria estar no colégio, onde trabalha como merendeira. Passei pela sala e não vi ninguém. Fui andando pela longa galeria sem avistar vivalma. De súbito, fui atraído por uns sussurros vindos do quarto do fim do corredor. Direcionei-me para lá a passos seguros. Chegando mais perto distingui que os murmúrios eram, na verdade, gemidos. Atrasei o passo, diminuí meu ímpeto e fui chegando de mansinho até a entrada do cômodo. Consegui brechar pela porta entreaberta e, para meu espanto e decepção, eu vi Beto galego tendo relações sexuais com Zefinha. Zefinha era uma menina de apenas treze anos, - filha de Zica de Cidinha -, que auxiliava sua mãe na cozinha do galego. Aquela cena me fez embrulhar o estômago. Beto galego era um homem de estatura mediana, por volta dos cinquenta anos, corpo moldado pela lida com o gado, olhos azuis e ralos cabelos loiros, que ele escondia com um chapéu de couro preto. Era meu companheiro de conversas sobre política e filosofia, além de um forte adversário no jogo de xadrez. Ele era o presidente do Conselho dos Homens Católicos aqui da cidade. O CHC é uma reunião de voluntários voltada para a assistência social, composto por pessoas simples mesclada a alguns figurões da sociedade Poção Anjense, sem fins lucrativos, entretanto, usado, sem nenhum pudor, como trampolim eleitoral. Beto galego sempre foi visto como uma pessoa decente e temente a Deus, que constantemente repreendia outros homens por se enrabicharem com meninas de pouca idade, crianças indefesas e inocentes, sempre condenando tal ato, principalmente, por ser pai de uma menina de catorze anos. Zefinha era um ano mais moça que sua filha, e ainda assim, o maldito a desonrou. “Ah, como tenho asco da hipocrisia e da luxúria”, falei entre dentes. Senti de imediato o calor crescendo lentamente em mim. Saí rapidamente de onde estava, voltei até a sala, esperei alguns minutos enquanto ruminava o que iria fazer, e só então repeti o ato de bater palmas e chamar por Beto galego, como se eu estivesse acabado de chegar. Quase no mesmo instante ele apareceu com sua cara deslavada, não transparecendo qualquer arrependimento, muito menos ter cometido algum crime. Esticou seu braço em minha direção, pegou minha mão, a beijou, pediu minha benção e disse:

- O senhor por aqui padre Nemias, a que devo essa honra?

- Vim pedir para que o nobre amigo apareça lá em casa hoje, por volta das quatro da tarde, preciso contar-lhe uma coisa que eu descobri que pode mudar o rumo da política aqui da cidade.

- Mas me conte logo, homem. Para que esperar até às quatro da tarde?

- Agora estou apressado. Passe lá sem falta, ok?

- Ora Padre, hoje tem a Cavalgada dos Amigos da CHC. Esqueceu foi? Quatro horas é exatamente a hora que todo mundo vai estar reunido no povoado Riachinho, de onde vai sair à comitiva de cavaleiros. Não pode ser outra hora? Talvez depois da missa do senhor?

- Não pode. Tem que ser às quatro horas, o que quero dizer é bastante grave, e este horário não terá ninguém na igreja, será o momento mais oportuno para nossa conversa. Não quero ser atrapalhado e também não quero que ninguém veja o senhor entrando em minha casa, por isso, este será o melhor horário. Peço encarecidamente que não conte a ninguém sobre nossa entrevista.

- O senhor está me assustando e me deixando muito curioso. Não tem como adiantar o assunto?

- Infelizmente não. Todavia, saiba que, se ainda pretende se candidatar a prefeito, é melhor não deixar de ir.

- Pode deixar meu caro sacerdote, estarei lá, pontualmente, às quatro horas. Mesmo sabendo que, desta vez, nada no mundo poderá me fazer perder as eleições. Este ano está no papo, meu amigo. “A vaidade é o pecado que o diabo mais gosta” pensei. Antes de sair, olhei diretamente nos olhos daquela pobre alma e perguntei:

- Meu filho, por acaso, não estaria precisando se confessar?

- Não estou precisando não, padre. Minha consciência está tão tranquila quanto à de uma criança recém-nascida. Ele respondeu, com a desfaçatez dos cínicos. Despedimo-nos com um forte aperto de mão e me dirigi apressadamente para minha casa, que ficava acoplada à igreja matriz. A fome, que começava a me pegar, se dissipou como num passe de mágica. Eu só pensava na esterilização que eu estava por fazer. Na depuração que fui encarregado de realizar. Os primeiros sinais do transe tomavam conta de mim. Minhas faces e minhas extremidades começavam a formigar, como numa anestesia médica, me tirando a sensibilidade corporal. Não sentia mais meus pés, nem minhas mãos. Meus pensamentos voavam longe. Peguei o punhal de meu avô. Dediquei todo meu tempo, da hora que cheguei da casa do fescenino até a hora marcada para o encontro, na limpeza da faca e em fervorosas e intensas orações. Quando Beto galego finalmente chegou, eu já não era o padre Nemias e sim um rigoroso juiz supremo, um espírito infinito e eterno. Naquele momento eu era Deus e toda sua gloriosa fúria.

Levei Beto galego até meu escritório e pedi que ele se sentasse. Ele estava muito irrequieto, querendo saber imediatamente o que eu tinha pra contar. Pedi que ele se acalmasse, e disfarcei mostrando a ele as peças de xadrez armadas sobre a mesa. Deixei-o entretido no tabuleiro, dizendo que tinha estudado uma jogada nova, e queria saber se ele a conhecia. Enquanto ele se detinha no jogo, eu tive tempo de pegar um frasco de clorofórmio, encharcar um lenço com o volátil líquido e apertá-lo com força no rosto de Beto, segurando firme, tapando o nariz e a boca de minha presa. Foi um trabalho árduo. Beto era forte como um touro, e lutou com fervor, no entanto, poucos instantes depois, o galego dormia feito um anjo. O cheiro etéreo e adocicado do produto tomou conta do ambiente, deixando-me ainda mais entorpecido.

- Chegou a hora da minha ablução. Falei delirante.

Quando ele retornou a consciência e abriu os olhos, não compreendeu nada. Ele estava completamente imobilizado sentado em uma cadeira de madeira. Seu tronco e braços estavam amarrados ao encosto do assento com uma corda de poliamida, fazendo com que ele ficasse com uma postura bem ereta, apoiando completamente suas costas por toda a extensão do arrimo, inclusive a nuca. Seus pés e mãos estavam atados com a mesma corda. Os pés dele aos pés da cadeira e suas mãos amarradas para trás de seu corpo. Seus tornozelos, joelhos e coxas também se encontravam imobilizados. Sua boca estava laçada com o meu escapulário. Ele arregalou os olhos de forma expressiva, num misto de interrogação e medo, quando me viu completamente nu, segurando o punhal de meu avô. Ele tentou levantar a cadeira, num movimento precipitado e cheio de horror. Contudo, foi em vão. As quatro pernas da cadeira estavam fixas ao piso com cadeados. Quatro cadeados. Um para cada perna. Os cadeados ficavam presos em linguetas que estavam chumbadas no piso. Deixei que ele tentasse de tudo para escapar. Depois de um bom tempo, já exausto de tanto se debater, ele, enfim, desistiu. Aproximei-me dele. Olhei-o gravemente e sentenciei.

- José Norberto, conhecido popularmente por Beto galego, o senhor foi julgado e condenado pelo crime de pedofilia, por manter relações carnais com uma criança, somado aos pecados da luxúria e da vaidade. A pena é capital. Sua morte limpará o mundo da sujeira que escorre de você. Seu sangue purgará meu espírito, fazendo-me ficar cada vez mais próximo do meu Senhor. Nesta hora, seu olhar era de resignação.

Levantei o punhal, segurando o cabo com minhas duas mãos, direcionando a ponta ativa para o teto, e levando meus punhos para trás da minha nuca. Naquele momento eu era um Cavaleiro Templário, um algoz supremo.

- “Non nobis, Domine, nom nobis, sed nomini tuo da gloriam” *.

Desci o punhal com violência, dando um golpe certeiro e fatal, na base da clavícula, na conhecida “saboneteira”. Da mesma forma que meu querido avô fazia para se livrar de seus inimigos. Mesmo com a boca tolhida pelo meu acessório litúrgico, o lamento abafado que saiu de sua boca foi poderoso. A extensa lamina da faca entrou até o cabo. No caminho percorrido, diagonalmente ao corpo, a chapa afiada foi seccionando artérias, perfurando o pulmão, trespassando o coração, estuporando tudo que encontrava pela frente, saindo do outro lado, entre as duas últimas costelas. Com o punhal enfincado até o talo, eu girei-o lá dentro e num único movimento firme, retirei-o do meio das entranhas dele.

- Ah, que coisa mais linda! Exclamei em júbilo.

O sangue jorrou como cachoeira, como numa poderosa ejaculação rubra, que banhou meu corpo desnudo, proporcionando-me um prazer inefável. O sangue manou por mim como um vinho redentor. Chorei, aos soluços, de plena satisfação...

Às vinte horas, enquanto eu encerrava a missa da noite, o potente forno da minha casa transformava em fumaça e cinzas os restos impuros de Beto galego, no tempo em que eu, a cada dia, me tornava mais digno e merecedor do reino dos céus, e Zefinha, agora sim, é só minha.

Amém.

*Não a nós, Senhor, não a nós, mas ao teu nome da glória.

Tradução da divisa dos Templários retirada dos livros dos salmos. Fonte Wikipédia, na pesquisa sobre a Ordem dos Templários.

Conto de minha autoria publicado na antologia “Os Matadores Mais Cruéis Que Conheci” (OMMCQC). Multifoco Novembro de 2012.