A Sombra no Vidro
Através daquele pedaço de vidro sujo eu conseguia admirar mesmo que sucintamente aquela sombra. Eu estava a adorar aquela sombra sem se quer saber sua origem. Estava ali, simplesmente a fitá-la sem que houvesse nada para me impedir.
A sombra pouco se mexia, era de proporção singular e emitia um som peculiar. Pouco comecei a suspeitar de que aquela sombra era apenas um manequim daqueles que vemos por aí em bazares. Era bastante esquisito sua forma, tinha um tronco largo e o pescoço era grudado com a cabeça de forma bem irregular. A sombra, que parecia estar sentada em alguma espécie de banquinho, realizava algum tipo de ofício daqueles pré históricos do gênero artesanato, pois o som era característico de broca-madeira.
O odor era ímpar. O amadeirado misturado com cheiro de chá de hortelã impelia aquele ambiente ora sinistro ora curioso.
À medida que a sombra esculpia, seu único movimento era o de erguer o braço torneado a fim de beber um gole de chá. Era algo quase que sobrenatural a força na qual aquela sombra me transmitia. Eu estava completamente em transe, compenetrado e ensimesmado com a situação. A sombra parecia, claramente, cansada de laborar. Pousava os braços na mesinha e desmoronava os ombros abaixo a fim de suspirar. A sombra, exausta, sentia dor, sentia curiosidade em viver o mundo lá fora.
Meus olhos, colados no vidro espesso e sujo, começava a espargir lágrimas e estas caíam no chão como pétalas perecem no outono. Minhas mãos e pés, regelados, suavam. O frio encobria minha espinha e minhas articulações sofriam àquela crise. Foi quando a sombra se levantou e caminhou vagarosamente em direção ao vidro onde eu estava agachado.
Não me levantei, nem mesmo angustiei, pois não havia mais angústia restante. Não me desesperei, nem derramei mais lágrima, porque a sombra...a sombra era...