Jota e Juno

- Pssii, não faz barulho. Papai já mandou a gente dormir.

- Ah, não fode, papai é um bundão.

- Que isso Juno, não fala assim do pai.

- Porra moleque, deixa de ser besta, tu não vê o que a mãe faz com ele o tempo todo? E ele sempre calado, ou pedindo calma, rindo com aquela cara de bunda.

- Ele ama mamãe, é por isso.

- Puta que pariu! Fazia tempo que não ouvia nada tão idiota. Jota, tu é um trouxa igual a ele.

- Vamos dormir.

- Já já, antes quero te perguntar uma coisa.

- Pergunte logo, estou com sono.

- Você nunca percebeu que a Karen te dá mole?

- Quê?

- Você ouviu muito bem o que perguntei. Não te faz de trouxa, seu trouxa.

- É-é... É que-que-que...

- Não gagueja porra!

- Acho que sim, não tenho certeza. E ela tem namorado. Você não lembra que ele já me ameaçou, só por que eu estava conversando com ela?

- O babaca do Mauro? Aquilo é um verme. A gente dá um jeito nele rapidinho.

- Agora chega, vamos dormir. Insistiu Jota.

- Tu é um merda mesmo.

- Vai se catar, Juno.

- Olha só, o filhinho do papai virou homem, foi? Mas, é assim mesmo que tem que ser moleque, tu tem que endurecer, a vida é foda, e se tu não mudar ela vai bater pra caralho na tua cara, tá ligado? Vai chutar teu rabo sem dó, e papai e mamãe não vão existir para sempre, pra pegar o neném chorão no colo quando a vida olhar feio pra ele. Tu tem que mudar muito Jota. Anota o que eu tô te falando, mano. Se tu não mudar seu jeito de ser, vai sofrer pra caralho.

- Dá um tempo, Juno. Eu quero dormir, pô. Não me enche o saco, cala essa boca, você está me enlouquecendo.

- Ah, esse é meu garoto.

- Algum problema. Gritou o pai do lado de fora, sem abrir a porta do quarto.

- Não pai, está tudo bem. Disse Jota.

- Então, vai dormir. Boa noite.

- Boa noite, pai.

- Boa noite é o caralho. Ouviu-se um sussurro e risadas.

- Juno, não começa. Jota também ri.

O menino acorda durante a noite e se vê banhado em sangue. Levanta assustado e desce correndo para sala. Têm quatro corpos estendidos no chão, todos sem vida. O pai, a mãe, Karen e Mauro. Mauro é o que está em pior estado, sua cabeça parecia ter explodido, e os restos de sua massa encefálica manchava toda a parede que circundava o lugar. De repente ele escuta um barulho atrás dele. Se vira e vê um vulto pulando a janela e correndo. Ele persegue o vulto e o detém. Era Juno.

- Juno, por que fez isso, porra? Jota pergunta em desespero.

- Não sou o Juno.

- Ora, claro que é.

- Não, você é o Juno.

- Quê? Mas...

O despertador toca as quinze para seis da manhã. “Que sonho horrível” Pensa. Jota levanta e segue para o banho. Antes de entrar no banheiro se dá conta da ausência de Juno, fato que o deixou mais tranquilo. Demorou mais do que o habitual no banheiro, pensando nas maluquices de Juno e no corpo de Karen.

Jota é um adolescente que acabara de completar dezoito anos, alto e bem apessoado, que estuda o último ano no colégio e prestaria vestibular para Informática. Jota é calmo, carinhoso, compreensivo, pouco afeito a brigas e discussões, o inverso de Juno, que é malévolo, frio, e gosta de incitar confusão, jogando intrigas aqui e acolá como quem não quer nada. Mas, na hora do vamos ver ele sempre dá um jeito de escapar, deixando Jota sozinho nas roubadas. É um típico covarde. Na aparência eles são perfeitamente iguais. Quando se olhava no espelho, Jota nunca sabia se o reflexo era o dele ou de Juno. Isso o deixava aflito.

Jota desceu as escadas e foi para a cozinha. Juno não estava. Seu pai lia o jornal. Sua mãe gritava com ele sobre o cartão de crédito, que ele, o pai, não tinha pagado ainda. Ela traia o marido, e Jota sabia muito bem disso.

- Calma mulher, hoje mesmo eu pago. Falou e virou-se sorrindo e piscando o olho para o filho.

- Calma? Calma nada. Já basta você com essa calmaria toda. Se eu for ficar calma não saímos do lugar, não seguiremos adiante. Se eu for acompanhar seu ritmo a gente estanca. Você é muito lento, Osmar, um lerdo. Não deixe de pagar isso hoje. Entendeu?

- Sim, meu bem. Não esquecerei. Agora dá um beijinho aqui. Esticou os lábios, formando um bico, na direção da mulher.

- Que beijo que nada, você acabou de comer ovo, eca, eu detesto ovo, ainda mais esses ovos moles e nojentos que você come, e não escovou seus dentes, seu hálito está ruim, nada de beijo. Tô indo, vou trabalhar. Filho você está atrasado para o colégio, termina isso logo e se manda. Tenham um bom dia. Falou alisando a cabeça de Jota e lhe dando um beijo no rosto.

Sobraram Jota e seu pai, sentados a mesa. Seu Osmar continuava com a cara enfiada no jornal.

- Estavam brigando de novo, papai?

- Que nada filho, sua mãe é que é dramática demais. Isso não era uma briga não.

- Ela parecia brava.

- Não...

- E o senhor um pateta. A voz de Juno soou no recinto.

O pai tirou rapidamente os olhos do que estava lendo e perguntou espantado.

- Como é, filho?

- Deixa isso pra lá pai. Tchau. Jota disse, saindo rapidamente.

- Tchau. Respondeu seu Osmar, escondendo-se novamente por detrás das folhas.

A porta da frente bateu e Jota ganhou a rua.

- Onde você estava?

- Escondido, ouvindo tudo que vocês falavam.

- Você tinha que chamá-lo de pateta?

- Mas ele é um pateta.

- Não é não.

- Tá bom Jota. Vamos mudar de assunto. Vamos falar da Karen, aquela gostosa safada.

- Não fala assim dela. Jota falou irritado.

- Hum, a “menina” ficou brabinha, é? Juno caiu na gargalhada. Jota nada disse, somente apressou o passo. Parecia furioso.

- Antes eu só desconfiava que tu fosse a fim dela, agora tenho certeza.

- Cala boca. Gritou Jota.

- Hein, maninho, tu já pensou ela de bundinha pra cima, empinando aquele rabão? E tu metendo nela até o talo, hã?

- Cala boca porra, cala boca. Jota falava dando murros na cabeça. - Você fica me enchendo com suas maluquices, isso me dá dor de cabeça.

- Tu continua com essa mania de se bater? Para com isso, rapaz. Isso é bem estranho, muito esquisito mesmo. Vem bater em mim, vem. Aqui, ó. Na minha cara, vem, vem se for homem. Vem, Porra! Jota ergueu os punhos e desferiu três poderosos socos e um pontapé. Todos eles encontraram o ar, nenhum deles acertou o alvo. Juno ria.

- Tá muito lento ainda Jota. Mas, foi muito bom, tu tá ficando do jeito que eu quero, moleque.

Continuaram discutindo até chegarem à porta do colégio.

- Olha só quem tá vindo ali, Jota.

- Onde? Quem? Perguntou Jota desconfiado.

- Ali ó, a Karen. Ela tá vindo falar contigo. Tô indo nessa.

- Peraí, você vai aonde? Fica aqui comigo.

- Nada disso, seu fresco, fala com a menina tu sozinho. Fui.

Karen aproximou-se com um belo sorriso nos lábios carnudos. Aquela boca tirava do sério os sempre sérios e comportados pensamentos de Jota. Karen era incrivelmente bonita e atraente. Um calor correu pelo corpo de Jota, fazendo que suas faces enrubescessem com a proximidade da menina.

- Oiiii.

- Oi Karen, tudo bem.

- Tudo. Houve um silêncio constrangedor de alguns segundos. Até que a menina quebrou o gelo.

- Jota, eu estou com problemas em matemática, você poderia me ajudar? Uma gota de suor começou a escorrer pelas têmporas do menino.

- É... é qu-que e-eu não se-sei se posso, esto-esto-estou mu-mu-muito ocupado. Gaguejou Jota.

- Por favor. Insistiu a menina. Jota respirou fundo e falou rapidamente.

- Está bem, mas, só posso no sábado a tarde.

- Para mim tudo bem. Na minha ou na sua casa? Jota pensou em seu pai e sua mãe sempre discutindo e decidiu:

- Na-na-na sua, é me-me-me-melhor.

- Então está marcado, sábado duas da tarde. Ela chegou ainda mais perto de Jota e o beijou no rosto, aquele beijinho que pega bem no cantinho da boca de quem o recebeu, que só as meninas sabem dar, que ninguém nunca sabe se foi por acaso, ou de caso pensando. Jota parecia que iria ferver, suava aos borbotões e seu rosto avermelhava-se a tal ponto que Karen não pôde conter um sorriso, para piorar foi acometido por uma ereção.

- Muito obrigado e até sábado. Falou a menina, dando um tchauzinho.

- Tchau. Jota retornou o aceno com uma mão e com a outra escondeu o volume que se formou lá embaixo.

Do outro lado da entrada do colégio, Mauro observou tudo que aconteceu, e não gostou nada do que viu. Jota iria se arrepender de ter recebido aquele beijo de Karen.

No intervalo da quarta aula, às onze da manhã, Jota foi para trás do ginásio fumar um cigarro. Na primeira tragada apareceu Juno.

- E aí, moleque, ganhou um beijinho da gostosa, não foi? Ironizou Juno. Jota não disfarçou sua satisfação.

- Você viu? Cara, tô com o cheiro dela ainda aqui comigo. Falou todo bobo. – Vamos estudar lá em casa, no sábado à tarde. Completou.

- Hum, tu tem que aproveitar para pegar naqueles peitinhos, apertar bem aquela bunda gostosa. Juno falou rindo.

- Porra, Juno, não começa, cara.

- Qual é rapaz, tu é fruta, porra. Toda vez que eu falo em pegar a menina tu acha ruim.

- Não é isso, é que ela não é dessas, saca? Nunca que deixaria isso acontecer, vamos só estudar.

- Porra, deixa de ser burro, se ela não deixar tu pega ela a força, porra. Desce a porrada na vadia. Ou tu acha que o Mauro não come aquela puta.

- Caralho, para com isso Juno. Cara, você é doente. Juno estava muito irritado. E começava a dar murros na própria cabeça. Sua irritação era mais com a visão que se formou em sua mente, quando Juno disse sobre Mauro tendo relações com Karen, do que propriamente com Juno. Saber que Mauro tocava e acariciava Karen deixava-o fulo da vida, ensandecido. Seu rosto sempre bonito e tranquilo transfigurou-se em uma carranca.

- E por falar no fulano, olha ele aí. Disse Juno. Mauro era mais velho e muito mais forte que Jota. - Acho que ele não está com boas intenções para teu lado não, tô achando que ele vem tomar satisfações com você. Quebra a cara desse otário, Jota.

- Você vai ficar aqui comigo, para me ajudar?

- Eu não, moleque. Tô caindo fora. Falou e sumiu, praticamente evaporou. Mauro chegou sem argumentar nada, foi logo socando a cara de Jota. Jota tropeçou mas não caiu.

- Que porra é essa, Mauro? Por que fez isso?

Que estória é essa de azarar minha namorada, moleque? Não tem medo de morrer? E desferiu outro soco em Jota, desta vez no estômago, fazendo-o dobrar os joelhos e cair.

- Eu já tinha te avisado para se afastar de Karen, seu esquisito. Isto só foi um aperitivo, se continuar atrás de minha namorada será muito pior. Falou Mauro, antes de sair. Jota ficou alguns minutos de joelhos no chão, tentando recuperar o fôlego. Seu rosto ardia. O lado direito de sua face, logo abaixo do olho, começava a formigar, dando a impressão que estava inchando. Saiu dali e foi para o banheiro. Olhou-se no espelho e teve certeza do edema. “Filho de uma puta” pensou.

Ele estava puto da vida, puto com tudo e com todos. Puto com Mauro que o bateu, puto com Karen por ela namorar um imbecil, puto com Juno que sempre sumia nas horas que mais precisava dele, puto com sua mãe por está trepando com seu dentista, puto com seu pai por ele ser um babaca, puto com ele mesmo que não revidou a agressão, e acima de tudo isso, puto por estar sentindo uma puta pena de si mesmo. E essa sensação de fracasso e autopiedade dava uma puta vontade de beber. Resolveu pegar suas coisas e ir para um barzinho e encher a cara.

Eram quase oito da noite quando Juno deu as caras. Jota estava completamente bêbado, apesar de suas feições não demonstrarem, ele estava chapado.

- Caralho, o cara fodeu com o teu rosto.

- Vai se foder Juno.

- Que isso, maninho, eu não tenho culpa de você ser um otário, tomar porrada e não revidar.

- Como eu poderia com ele, ele é muito mais forte que eu.

- Tu é uma mariquinha, é isso que tu é.

- Eu que sou? Caralho! E onde o machão estava, enquanto a mariquinha aqui apanhava? Hein?

- Eu tava escondido, vendo e ouvindo tudo.

- E por que não veio me defender, seu covarde?

- Você tem que aprender a se defender sozinho, irmão.

- Você é um covarde, isso é que você é. Sai daqui, porra.

- Peraí, eu vim aqui pra te dizer que a gente pode se vingar.

- Como assim?

- Tu não te lembra que Mauro costuma correr durante a noite pela cidade? O babaca é tão confiante que não tem medo de correr por ruas desertas. Nós podíamos seguir ele por aí, e pregar um baita susto nele. O que tu acha? Jota ficou pensativo por um tempo. Depois sua expressão foi mudando. Um pequeno sorriso macabro se fez em seus lábios.

- Só um susto né? Finalmente falou, com os olhos faiscando.

- Sim, só um sustinho. Repetiu Juno, com uma voz arrepiante.

Jota saiu do bar e foi até sua casa. Entrou e foi falar com o pai, para pedir a camionete emprestada. Assim que abriu a porta ouvi os gritos de sua mãe e os pedidos de calma de seu pai. Olhou para a mesinha do centro e viu a chave e o documento do carro. Não pensou duas vezes. Pegou-as. Retirou o carro da garagem sem ligá-lo, deixando-o descer pelo impulso da gravidade até o lado de fora, e só ali girou as chaves. Fechou o portão automático e rumou a caça de Mauro.

Meia-hora depois avistou seu colega de colégio correndo pela Avenida Beira Mar. O relógio marcava dez e vinte da noite. Mauro usava um moletom preto, camiseta azul escuro com uma propaganda de uma famosa academia, tênis de corrida, e fones. Ele corria numa boa velocidade.

- Olha o cara ali. Falou Juno.

- Já vi.

- Vamos segui-lo.

- Sim, vamos.

Quem vinha no volante era Juno. Jota parecia em transe, entorpecido, seu corpo todo formigava como se estivesse numa viagem de lança-perfume. Mauro virou a direita numa rua deserta cercada por árvores, era um desvio para chegar à Avenida principal. A via tinha pouco mais de quinhentos metros. Eles tinham que ser rápidos e silenciosos. Assim que o carro dobrou a esquina, os faróis foram desligados. E a aceleração aumentou devagar e continuamente, para que o motor não fizesse muito barulho. Quando Mauro percebeu, foi tarde demais. A camionete preta pegou-o em cheio, de lado, antes que ele pudesse se virar completamente para olhar o que estava acontecendo. Seu corpo foi arremessado vinte metros à frente, e se estatelou no chão. O veículo parou. Acelerou forte sem sair do lugar por uns instantes e arrancou cantando pneu. Desta vez Mauro foi atingido na cabeça. A roda dianteira esquerda passou por cima de seu crânio, fazendo-o estourar como uma abóbora madura que caiu de cima de uma mesa. “Plof”. O carro parou mais adiante, e veio com tudo de ré, passando por cima do corpo, o barulho de osso estraçalhando invadiu os ouvidos de Jota, que sorria descontroladamente, loucamente...

O despertador toca as quinze para seis da manhã. Jota levanta e vai para o banho. Nada de Juno. Quando sai, Juno está lá.

- E então, como está se sentindo?

- Com um pouco de dor de cabeça.

- Foi o excesso de álcool. Algum arrependimento?

- Nenhum. Falou Jota friamente.

- Ah, esse é o meu garoto.

Dona Maria, a faxineira, aproxima-se do quarto do menino. Bate na porta e espera. Nada, ninguém veio abrir. Ela bate com mais força. Ninguém. Então, ela abre a porta e vê Jota sentado na cama olhando para o lado da janela. Parecia perdido em pensamentos.

- Jotinha. Ela chama. Jota sai de seus devaneios e olha pra mulher.

- Oi dona Maria, veio limpar o quarto?

- Vim sim, meu filho. Hoje é dia de faxina. Esqueceu?

- Acabei esquecendo. Já estou saindo. Jota pega sua mochila e passa por dona Maria sorrindo. Dona Maria entra no quarto, arruma a cama e vai em direção à escrivaninha onde fica o computador de Jota. Ao lado do PC tem um porta-retratos com uma foto de seu Osmar, Jota, e dona Marcela, a mãe de Jota. Ela pega a foto e olha com atenção. “Este menino é muito estranho, ele é muito só, vive falando sozinho, acho que seus pais deveriam ter dado um irmão a ele”. Pensa. Devolve a fotografia para o seu lugar, dar de ombros e prossegue com sua faxina.