Silencio

George Luiz - Silencio

Os sons percorriam a madrugada. Entravam atrevidos pelas casas, invadiam o sono de quem trabalha, acordavam os cães adormecidos nos quintais. Partiam do

salão do clube, junto à pequena igreja do bairro. Era o baile tradicional que se reali-zava uma vez por mês, as sextas feiras.

Humberto morava bem perto da igreja.Era detetive, sonhava com a aposenta-doria que se aproximava. Temperamento tranqüilo, habituara-se aos elevados decibéis da música do conjunto que o clube contratava para essas festas.Seu filho, suas duas filhas eram freqüentadores habituais desses pagodes. Adormeceu ao lado de Jacira, sua mulher.

- Acorda, Humberto!

- O que?O que? Que horas são?

- Duas e meia.

- Você enlouqueceu, Jacira? Só começo a trabalhar as oito horas.

- Levanta, Humberto. Aconteceu alguma coisa.

- Mas que coisa, mulher?

- É o silencio, Humberto.

- O silencio? O que você está querendo dizer?

- A música do clube, os sons das vozes, as risadas e os gritos de animação, parou tudo, Humberto.

Realmente, nessa madrugada da primavera que chegava com temperaturas altas, o silencio era total. Humberto caminhou até a varanda da casa. Bob, o labra-dor, farejou de longe seu dono. Abanou a cauda, mas parecia inquieto. Sondava a escuridão da madrugada com o focinho e os olhos atentos. Jacira chegou aflita até eles.

- Se você não for lá, eu vou, Humberto. Não agüento mais esse silencio.

- Calma! Eu vou vestir uma calça e uma camisa e vou lá.

A igreja do bairro ficava numa pequena elevação. Era de construção simples. O centro médico e a pequena creche ficavam nos fundos. E junto a eles o salão do clube recreativo da paróquia.Humberto subiu a pequena ladeira calçada de pedras regulares, meio rústicas. Ele esperava que assim, mais perto, os sons da festa se fizessem evidentes. Mas o que ouvia era mesmo o silencio absoluto. Bob, andando a seu lado, rosnou desconfiado. Seu pelo liso, cor de areia, ouriçou-se em seu dorso.

As luzes do salão permaneciam acesas, mas em seu interior, ninguém, nenhum movimento. No pequeno tablado ao fundo do salão, os instrumentos dos músicos já-ziam imóveis. O vento brando que soprava, espalhava algumas folhas de papel com partituras. Alguma coisa, um aroma que não parecia ser de alguma flor ou vegetal dali, pairava no ar pesado e quente. Um pequeno lagarto ,verde, entrou cauteloso, pela porta do salão. Bob precipitou-se para ele , mas o camaleão voltou-se e correu agilmente para fora, desapareceu silencioso na vegetação que margeava o pátio.Uma janela rangeu, movida pelo vento. Humberto estremeceu . Saiu para o pátio, sempre acompanhado por Bob. Contornou os dois edifícios, procurando,como detetive profissional que era,algum indício, alguma pista. Mas, pista ou indício de que tipo? Deteve-se pensativo. Alguma coisa, algum fato insólito ocorrera ali. Caminhou inseguro, procurando a origem daquele estranho aroma que parecia acentuar-se mais para o fundo descampado do terreno. E então, Bob acelerou seus movimentos em direção ao que parecia ser uma parte levemente mais escura no meio da vegetação rasteira.O cão parou e farejou com sons mais bruscos.

- Aqui, Bob ! O que você descobriu ?

Olhando com atenção, Humberto percebeu uma mancha que tinha a indiscutivel forma de um círculo muito bem traçado. Abaixou-se e, como seu parceiro canino, procurou identificar com seu olfato, o aroma que se desprendia do círculo escuro. Sendo homem, não era exatamente um conhecedor de perfumes. Mas aquele, não lembrava nada que se parecesse com um produto da indústria criada pelo ser humano.

Um ruído sutil fez com que homem e animal se virassem bruscamente. Uma figura caminhava para eles. Humberto aguardou tenso. Mas a atitude amistosa de Bob fez com que ele logo percebesse que não se tratava de uma figura hostil.

- E aí, Humberto? Onde estão as pessoas? Já descobriu alguma coisa?

- Você me assustou. Nada ! Não descobri nada !

- Que perfume esquisito é esse?

- Se você que é mulher não sabe, imagine eu !

- Meu Deus ! E nossos filhos? Onde estão?

- Calma, Jacira. Vamos procurar com cuidado.

- Mas procurar onde? Não há uma única pessoa aqui !

- Tudo tem uma explicação lógica. Talvez as pessoas que estavam no baile tenham ouvido ou visto alguma coisa e tenham ido correndo ver o que era.

- E não voltaram para o clube? Que absurdo, Humberto.

- Absurdo? Então me diga você o que houve.

- Ora, o detetive é você. Sou uma simples dona de casa.

- Então me deixe investigar melhor isso aqui.

- Tudo bem, mas estou muito nervosa, angustiada mesmo.

- Estou tentando entender o que é essa mancha redonda, escura, aqui no chão.

- Ah, não tinha visto...o que você acha que é?

- Ainda não sei, mas é um círculo perfeito.

- Humberto ! Claro ! Só pode ser a marca do pouso de uma nave extraterrestre! Meu Deus! As pessoas que estavam na festa foram seqüestradas por marcia-nos, ! E meus filhos ? Que horror !

- Pare com isso, Jacira! Antes de imaginar uma loucura dessas, temos que inves-tigar todas as possibilidades.

- Olha ! Tem uma moto chegando aí !

De fato, uma moto com um rapaz na direção e uma garota na garupa, parou perto deles. O casal desmontou.

- Oi ! Tudo bem?

- Tudo. Vocês estão chegando ao baile a essa hora?

- Bom, pra falar a verdade...mas... e o pagode? Já terminou?

- Parece que sim, não acha? De onde vocês vieram?

- Ora, Paulinho, diga a eles. Nós viemos de um motel.

- O da BR ?

- Isso mesmo. É algum crime ir lá?

- Calma! Só estou querendo saber se vocês viram algum conhecido ou alguma coisa diferente aqui por perto.

- Não, nada, nem ninguém. E quando estávamos chegando aqui , estranhamos o silencio. Não foi, Neide?

- Foi. Que perfume estranho é esse? Forte, não?

- Bem, vou usar meu celular e me comunicar com a delegacia e com a policia rodoviária.

- Houve algum problema, seu Humberto? Algum crime?

- Tenho quase certeza que não. Só quero resolver essa estória antes que minha mulher fique histérica. Vamos, não adianta ficar aqui. Voltem para suas casas.

- E agora, Paulinho? O que vou dizer a meus pais, quando eles souberem que o pagode terminou há muito tempo? Eu disse a eles que voltaríamos junto com a Neuza e o Alberto.

- Não adianta chorar agora, Neide. Vamos enfrentar as duas feras.

O dia amanheceu. Por mais que a polícia tentasse,foi impossível evitar os comen-tários e os parentes das pessoas desaparecidas começaram a se desesperar.A

Imprensa, rádios, jornais, emissoras de televisão, divulgaram amplamente os acontecimentos da noite de sexta feira. A Internet se encarregou de acelerar esse processo. Humberto foi perseguido pelas equipes de reportagem, entrevis-tado, bombardeado pela mídia. O sábado passou sem novidades.

Na missa de domingo, o padre local, baseou seu sermão no incrível acontecimen-to.

- É mais um sinal da aproximação do dia do julgamento final, meus irmãos e irmãs! A falta de moral dos jovens, os excessos, a procura do sexo desenfreado, das orgias...tudo isso leva a marca de Satanás! Preparem suas almas! Olhem bem, para dentro de suas consciências ! O que vamos dizer diante de Deus na hora da verdade? Será que criamos , que orientamos bem nossos filhos e filhas?

A semana passou rápida.Outra sexta feira chegou,O tempo tinha mudado, e as estrelas estavam , invisiveis sobre as densas camadas de nuvens.O céu,negro, desabava em chuvas fortes. Em frente ao salão do clube, Jacira, sentada numa cadeira de estofamento de palha, abrigava-se com um guarda chuva. Humberto chegou em seu carro.

- Vamos para casa, querida. De que adianta ficar aqui?

- Não vou, Humberto. Alguma coisa me diz que eles vão voltar hoje. E vão voltar depois da meia noite, lá pelas duas horas.

- Está bem, Jacira. Você comeu alguma coisa?

- É, bebi um copo de leite.

- Estou com fome, vou dar um pulo em casa e preparar um sanduíche. Deixe eu preparar um para você também.

- Não quero, Humberto. Coma um você.

A madrugada de um novo sábado avançava. A chuva tinha cessado, o ar estava úmido, quase doce. Humberto adormecera apoiado numa das paredes do clube.

- Acorda, Humberto!

- O que é? O que foi? Que horas são?

- Olha !

- O silencio...onde está o silencio?

- Olha o salão, Humberto ! Eles estão dançando! Todos, inclusive nossos filhos! Ouça a música !

- Meu Deus ! É verdade, Jacira ! Mas, o que é aquilo nos pescoços deles todos? Parece uma tatuagem.

Com o passar do tempo e muitas lavagens, foi possível remover o estranho perfume das roupas de todos. Mas, os pequenos círculos negros nos pescoços, resistiram a todas as tentativas de apagá-los. Como também foi impossível saber dos reaparecidos, onde tinham estado e o que tinham feito. O mistério permanece até hoje.

Em tempo: Paulinho e Neide estão de casamento marcado para a semana que vem..A costureira criou um vestido bem bonito para a cerimônia na Igreja,apesar da barriguinha já aparente da noiva. O padre Ângelo, recém chegado à cidade, será o celebrante, porque o seu colega Florencio, ainda abalado pelo acontecido no baile do clube, está licenciado por estresse.

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George Luiz
Enviado por George Luiz em 25/04/2007
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