Aventura e Emoção na Tempestade

A noite naquela quinta-feira parecia esconder algo especial, mais do que isso, algo impressionantemente misterioso. Ainda era relativamente cedo – não passava das onze horas da noite e queria dormir para, quem sabe, diminuir as lembranças dos traumáticos acontecimentos do dia. O fato é que Inês se encontrava tensa. Ao deitar-se, certos pressentimentos estranhos começaram a surgir em sua cabeça de modo que não conseguia pegar no sono – alguma coisa ruim estava muito próxima de acontecer. Seu amigo, Miro, já desfrutava de um sono profundo e relaxante e seu pai parecia dormir em silêncio entre as cobertas. Tomou um chá de erva cidreira para acalmar-se um pouco e voltou para casa e ali ficou por mais um par de horas. A sensação misteriosa foi se transformando em prenúncio de tragédia. Passou a ter uma convicção de que aquela noite estava reservando algo muito terrível para ela. Saiu à janela e não viu estrelas no céu. O tempo estava nublado. Um vento suave mas crescente indicava que poderiam ocorrer chuvas durante a madrugada. Estava incomodada. Ia para a cama mas a insônia a dificultava dormir. Viu o ponteiro do relógio chegar às duas horas da madrugada. Como não tinha o costume de ficar até essa hora, a vontade de dormir pesou e seu corpo se entregou ao sono no exato momento em que começou a chover na fazenda.

A chuva, que teve início brando, intensificou-se, acompanhada de um vento forte e tenebroso. Em pouco tempo, um temporal caiu sobre a propriedade, fazendo as árvores se inclinarem com a força da ventania. A chuva era densa, acompanhada de relâmpagos e trovoadas. O pequeno rio, antes moroso e estreito, agora aumentava substancialmente seu volume de água corrente. O barulho dos trovões acordou Inês, que dormira na cadeira da cozinha. Ela levantou-se e foi olhar o temporal pela janela – uma chuva torrencial se fazia presente, tornando a noite acinzentada e aterrorizante. Olhou levemente para Miro – ainda se encontrava dormindo. Virou-se para a cama de seu pai e não o viu. Acendeu a luz e andou calmamente até o quarto para certificar-se de que ele não se encontrava lá. Novamente o prenúncio de algo ruim veio em seu coração, que batia acelerado – a cama estava vazia. Olhou por toda a casa e não o encontrou. Na mesa vira um pequeno pedaço de papel, debaixo de um copo de vidro vazio, manchado de vinho. Tomou imediatamente o bilhete pelas mãos derrubando, com o nervosismo, o copo no chão. Segurava o pequeno pedaço de papel quando, trêmula, reconheceu a letra – era de seu pai. Com respiração ofegante, começou a ler o que dizia...

“Filha, espero que ao ler esse bilhete entenda os motivos pelos quais tomei essa decisão. Algo deveria ser feito para acabar com essa selvageria que existe aqui e resolvi agir. Nardo outrora me dissera onde estava a pasta e eu decidi ir até o ranchinho. Não ligue para o mal tempo – vai me ajudar na empreitada. Ninguém iria vigiar o local num dia chuvoso como esse. Prometo-lhe que arrancarei daqueles safados os documentos da fazenda e os entregarei ao seu namorado. Eu a amo muito, querida, e faria tudo para ver você, feliz ao lado dele, por que tenho muita admiração”.

Aquelas palavras foram como uma pontada de alfinete em seu coração. Leu o papel três vezes para certificar-se de que não estava imaginando coisas. Extremamente nervosa, chorava muito e perambulando pela casa, procurou encontrar alguma solução – não sabia o que fazer.

— Não pai, o senhor não podia fazer isso! – lamentava.

Pensou em ir ao ranchinho procurar seu pai mas precisava da ajuda de Nardo. Lembrou-se da ameaça de Zé das Zantas quanto à sua entrada na fazenda e decidiu enfrentar a situação com coragem. Há momentos em que nós devemos encarar os fatos por estarmos no contexto e não termos como fugir restando-nos, somente duas alternativas possíveis: agir e correr os riscos ou recuar e deixar o medo do fracasso dominar. Ela optou em agir. Colocou uma capa de chuva, tirou suas sandálias e pôs uma pequena bota, fechou a porta da casa e partiu em busca de seu pai.

A chuva descia pesadamente sobre a fazenda, formando enxurradas sobre alguns trechos. Não viu ninguém, nem mesmo qualquer animal por onde olhava. Andando aflita e desesperada começou a contornar à meia distância, o riozinho, que já se encontrava com as águas agitadas e com forte correnteza – suas bordas haviam ficado largas. Trovoadas e relâmpagos a assustavam em meio aos pingos da chuva que caíam sobre seu rosto. Escorregou e bateu com a cabeça na lama, reclamando.

— Nardo, cadê você pra me ajudar?

Ela levantou-se e continuou a correr rumo à casinha. Agachou-se quando percebeu um dos capangas correndo como um louco na direção da casinha. Em seguida mais dois o acompanharam. Ela viu-se indefesa contra eles e decidiu voltar para sua casa. Persistente, preparou o cavalo, colocou-se na sela e saiu galopando velozmente na chuva. Passou pela porteira pegando o caminho da estrada e atravessou a pequena ponte do riozinho com grande velocidade. Repentinamente foi surpreendida por uma voz que chamava seu nome.

— Inês! Inês!

Ela continuava a galopar, olhando para todos os lados, não vendo, porém qualquer pessoa – as grossas gotas da chuva dificultavam sua visão. Andou mais alguns metros e um vulto apareceu diante de seus olhos – era Leonardo, correndo em sua direção.

— Inês, sou eu, o Nardo!

— Nardo? Você não podia aparecer em melhor hora – falava ofegante.

— De onde apareceu?

— Eu me enfiei ali na mata próximo à fazenda esperando uma boa hora de entrar e recuperar os documentos. Pensavam que invadi o ranchinho por causa do dinheiro que estava numa mala. Os papéis devem estar no mesmo lugar. Ia buscá-los – só não esperava que fosse chover hoje. Você ia para onde?

— Não se assuste com o que vou te dizer. Meu pai estava com o mesmo plano, só que ele achou a chuva uma aliada e não um atrapalho.

— Não estou entendendo.

— Vou ser mais clara: Precisamos agir rapidamente. Meu pai foi para lá a procura da tal pasta a pouco mais de meia hora e ainda não voltou. Eu ia até a sua casa buscar ajuda. Leonardo fica espantado.

— Isso é sério demais. Ele sarou da coluna?

— Melhorou, mas não sei se está curado.

— E saiu assim, com esse mau tempo?

— É isso que me preocupa. Como se não bastasse o risco que ele corre se alguém... nem quero pensar.

— Escute Inês, precisamos voltar à fazenda – seu pai corre perigo.

— Estão te ameaçando de morte se o virem entrar lá.

— Pois então, terão que me matar!

Leonardo transformou-se – ficou obstinado em resolver a questão naquela mesma hora. Aquele era o momento. Receava pela vida de Gercino, pois além do problema de coluna, por ser relativamente obeso, a tarefa de pegar os documentos no ranchinho não seria nada fácil. Na verdade, havia se arriscado em demasia. A chuva que enfrentaria e a terra escorregadia próxima à janela poderiam ser acrescentados como obstáculos grandiosos para que pulasse a janela e recuperasse os documentos. Na realidade, as perspectivas não eram nada boas.

Quando chegaram na ponte, algo lhes chamou a atenção: um homem calvo e corpulento se debatia nas águas do rio. Estava sendo levado pela correnteza, nesse momento, traiçoeira e perigosa. Inês quase desmaiou de susto quando reconheceu o sujeito.

— Minha nossa! É meu pai!

Leonardo levava as mãos à testa, surpreso.

— Pai! – gritava ela. – A gente vai te tirar dessa!

Gercino sabia nadar, contudo, não tinha forças para se direcionar aos barrancos do rio – a correnteza era muito forte e as águas da chuva e a escuridão da noite tornavam impossível encontrar uma rama nas bordas do rio onde pudesse se segurar com firmeza. Ia boiando e sendo levado pelas águas turbulentas e raivosas. Leonardo e Inês saíram da ponte e chegaram às beiradas do rio tentando caminhar rapidamente para que pudessem alcançá-lo, o qual já se encontrava muito distante dos dois. Se embrenharam no meio do mato, sem se preocuparem com espinhos, bichos e outros perigos. Mais à frente, avistaram um grande galho seco de árvore que em outros tempos caíra sobre o riacho e que ali permanecera. Inês gritava desesperada, correndo na densa vegetação de arbustos os quais se estendiam nas bordas do rio. Leonardo pedia para que ela ficasse mais distante do barranco – poderia cair. Ela não o ouvia, estava desesperada demais – queria ajudar o pai a todo custo.

— Pai, segura o galho! Gritava, fechando os punhos de emoção. Segura o galho meu pai!

E Gercino avistou o galho e rapidamente se preparou para apanhá-lo assim que passasse por ele. As águas o levaram até que se segurou com firmeza tal galho de árvore. Ainda precisava chegar na encosta do rio. Aos poucos, com as mãos, foi percorrendo as ramificações do tronco, que terminava na beirada do rio. Leonardo e Inês ficaram na extremidade, aguardando com grande ansiedade seu Gercino chegar ao seu alcance.

— Inês, não fique próximo da beirada, eu lhe peço. Está escorregadia.

Assim que Gercino atingiu a extremidade, o galho começou a perder sua sustentação e passou a ser suavemente levado pelas águas. Gercino soltou uma das mãos e esticou o braço buscando alcançar a primeira mão que estivesse disponível. Inês, mais aflita se pôs na frente; seus pés ficaram a centímetros das águas. Ambos esticaram os braços e Gercino deu a mão aos dois. Inês, na tentativa de puxá-lo o mais rápido possível, inclinou-se para frente e para sua infelicidade, escorregou no barranco e caiu em cheio nas águas do rio.

— Meu Deus! Ela não sabe nadar! – desesperou-se o pai, ainda preso no galho de árvore.

Aquela tortura parecia não ter mais fim. Leonardo segurava a mão de Gercino observando aflito para Inês, que se afundava nas águas. Por um momento pensou em se atirar no rio para salvá-la mas deixaria, por outro lado, o pai dela, tão próximo a ele, em situação igualmente desesperadora. Rapidamente, puxou com força as mãos do homem e o trouxe para cima do barranco. Em seguida, mergulhou na água para tentar salvar sua amada. Gercino via uma cena impressionante. Sua filha ia sendo levada pela correnteza e seu namorado tentando alcançá-la, nadando velozmente. Ela desaparecia nas águas e voltava, pedindo socorro e se debatendo energicamente. Parecia que a cada vez que ela afundava ingeria certa quantidade de água. Viu por três vezes a garota submergir e voltar a aparecer, pedindo ajuda até que, subitamente, parou de gritar. Leonardo já se aproximara dela – seu esforço era grandioso, o que fez, em minutos, abraçar seu corpo. Inês estava inconsciente; seu namorado, com bravura, levou-a até a margem do rio. Com o auxílio de Gercino, tirou-a das águas e rapidamente verificou seu estado de saúde. Ela estava sumariamente morta. Sem demora, Leonardo iniciou respiração boca-a-boca numa situação desesperadora. Seu estado emocional era comovente.

— Não, você não pode me deixar! Ouviu? Não pode me deixar, meu amor! – falava com grande emoção em meio àquela chuva agora um pouco mais branda e ao silêncio daquele corpo imóvel. Seu pai apenas o acompanhava, triste e quieto. Volta a fazer o exercício da respiração forçada mas ela não respondia. Ele acelerava o impulso dos punhos contra seu tórax e forçava a entrada de ar mas nada de ver sua amada se mexer.

— Oh Deus, eu lhe peço, não a deixe morrer – desabava em grande aflição, com lágrimas caindo-lhe pelo rosto. Gercino vendo a inércia do corpo da filha e o estado deprimente do rapaz, põe a mão em seu ombro e triste, faz um leve sinal para que a deixasse em paz – tudo estava consumado.

— Precisamos nos conformar.

— Não!

Enlouquecido, o jovem saiu furioso e desenfreado no meio da mata dando socos nas árvores que via pela frente, parecendo um animal selvagem no meio da vegetação berrando na escuridão. De repente, ele voltou correndo com grande ansiedade ao encontro de sua amada. Respirava ofegante e denotava grande tensão nas expressões da face e nos olhos. Encheu os pulmões de ar ao máximo e faz uma última tentativa – deu fortes pressões contra seu tórax e lançou-lhe grande quantidade de ar. Seu pai já havia virado de costas. E o imaginável aconteceu. A boca da moça, de súbito, expelia vários goles de água e seu coração voltava a bater. Leonardo soluçou de tanta felicidade, chorando e sorrindo ao mesmo tempo. Seu Gercino pareceu não acreditar no que presenciara – sentia grande comoção – sua filha estava viva! Procuraram extrair o máximo de água que havia engolido.

— Inês, meu amor, eu sabia que não me abandonaria, eu sabia – falava dramaticamente abraçando-a com grande ternura.

Em seguida, agradeceu a Deus pela vida de Inês, carregando-a para fora do mato. A chuva já havia cessado e, sem demora, chegaram na estrada, ficando ali os três, parados, refletindo no que tinham acabado de passar. Em nenhuma ocasião experimentaram momentos tão dramáticos. Era, sem dúvida, uma experiência inesquecível, que iria acompanhá-los pelo resto de suas vidas.

— Sim – dizia com ar de felicidade.

— Por favor não brinque com esse assunto. Está falando sério? Recuperou a documentação da fazenda?

— Tudo o que precisava e que era importante. Encontrei a pasta que citara e retirei os documentos principais. Em seguida, coloquei-os num plástico que trouxe de casa – esse aqui – sabia que a chuva iria danificá-los. Depois disso enfiei tudo no meu bolso e tratei de abotoá-lo. Por sorte a água não o levou. Hoje mesmo os peritos vão averiguar os originais e policiais expulsarão aquele estelionatário de lá e você retomará a posse da fazenda.

Leonardo passou as mãos à cabeça de contentação. Abraçou Gercino e sua filha ao mesmo tempo, esboçando grande felicidade por ter de volta as terras de seu pai. Também estava feliz por poder sentir o carinho de sua namorada e o apreço de seu “segundo” pai. O trabalho árduo quase custou a vida de sua namorada e pôs em perigo a saúde de Gercino mas a recompensa chegara e na melhor maneira que podia imaginar. Não via a hora de amanhecer o dia e chegar o momento da expulsão de Zé das Zantas e seu bando. Aquela era a ocasião mais esperada por Leonardo desde que pusera os pés lá. Já fazia até planejamentos para uma grande festa com os bóias-frias que teve oportunidade de fazer amizade, com direito a batata-doce, quentão, vinho quente e tudo o mais.

<<<Parte integrante do livro "O fazendeiro Bóai-fria" de Altair J. Bordoni. Publicado em 1999 (188 páginas - Ed. Ateniense - ISBN 85-330-0036-7) >>>