O dia em que virei assombração

Algumas coisas acontecem com a gente e não têm explicação. Simplesmente acontecem. Dessa aqui eu nunca irei esquecer. Era uma tarde de maio, quando ainda não era muito frio em minha cidade. De repente, vem a notícia: alguém de nossa família, um primo muito estimado, havia sofrido um acidente e falecera. Funeral praticamente obrigatório, visto o grau de amizade e a união que nossas famílias sempre havia cultivado. Então lá fomos nós, pai, mãe e os irmãos que se dispuseram a nos acompanhar.

Naquela época, ainda não havia velório em minha cidade e o costume era o defunto ser velado em casa, na companhia de parentes e amigos. Foi assim que imaginei que seria, lá naquela cidade do sul de Minas, onde o meu primo morava. Entramos no carro com a cara e a coragem e lá fomos nós, ao por do sol, com o pesar na bagagem e a expectativa do sofrimento da família. Pensei em levar um agasalho, mas a lembrança do quartinho onde eu muitas vezes ficava quando ia visitá-los bateu na minha memória e era pra lá que eu iria, se o cansaço batesse durante o velório.

Mas lá chegando, vi que as coisas por lá eram mais evoluídas. Ninguém em casa, todo mundo no velório, que segundo as informações era anexo ao cemitério. Lindo, por sinal. Todo arborizado, com um jardim na entrada , uma capela aconchegante e a sala de recepção, toda pomposa, com a urna exposta entre flores e velas, um chique danado em comparação aos nossos daqui, naquela época tão simplórios. Algumas cadeiras e muitas pessoas, que lá pelas tantas foram se evadindo devagar. Fomos ficando, os amigos mais chegados e parentes. Ir embora para tão longe àquela hora não dava. Só meu pai dirigia, e cansado, já havia se instalado numa poltroninha no final de um corredor, juntamente com minha mãe. Meus irmãos ficaram de papo, relembrando as travessuras de criança e eu, começando a bater queixo de frio. Todo mundo de casaco, só eu, para variar, de camiseta fina. E a danada da noite não passava. E quanto mais a hora se adiantava, mais a sala gelava, o vento assoprava e eu sem nada para espantar o gelo que adormeceu meus pés de endureceu-me as mãos, já vermelhas de tão frias. Resolvi fumar um cigarrinho (mal do qual eu padecia na época), e isso tinha que ser às escondidas, não o fazia na frente do meu pai. Precisava encontrar alguma coisa para relaxar meus nervos, a raiva que eu nutria por ter sido tão burra de vir sem nada para me agasalhar. Dei uma olhada no quartinho onde as pessoas mais velhas da família se acomodaram na esperança de encontrar alguma coberta ou qualquer coisa para jogar nas costas. Nada. Mas tive a ideia de abrir um armarinho e para minha surpresa, um lençol branquinho estava ali, esquecido no fundo. Peguei-o com cuidado e saí para os fundos, com o cigarro e isqueiro escondidos entre as mãos. Um gelo, lá fora. Procurei um lugar mais afastado do olhar dos outros, e joguei o lençol sobre a cabeça, para evitar que a garoa fina (que mais parecia uma geada), caísse sobre os meus cabelos. Ajeitei o lençol sobre o corpo e o cigarro nos lábios, acendendo o isqueiro devagar. Foi então que ouvi o grito mais pavoroso do mundo. Um vulto passou por mim como um tiro, tropeçando nas pedras que havia no caminho e saiu gritando feito louco, quase me matando de susto. Vi quando as pessoas saíram para ver o tumulto, e de repente tive vergonha de estar lá fora fumando. Joguei o lençol branco para o lado, o cigarro para o outro e saí de mansinho, escondida entre as árvores, evitando o lado por onde viera. Só então vi que eu estava entre os túmulos, havia sem querer entrado na lateral que levava ao cemitério. Voltei de mansinho, calada e com cara de quem não sabia de nada. Meus irmãos já estavam lá fora, com cara de espanto, junto com os outros procurando explicação para o rebuliço que um coitado aprontara. E este lá dentro, entre goles de água, chorava e jurava ter visto um fantasma. Horrível, segundo ele. Era verdade, afirmava para os mais incrédulos. Envolto numa mortalha branca, silencioso e horroroso de feio, o espectro da morte surgiu em sua frente, assim, do nada... Havia ido tirar a água do joelho, porque o banheiro estava ocupado, quando um clarão iluminou o danado, uma alma penada, que perambulava em silêncio entre as tumbas do cemitério. Todos em volta com ar de espanto, de zombaria, de incredulidade e eu ali, com vontade de rir, mas sem saber o que fazer. Preferi ficar em silêncio do que confessar minha escapadinha para o vício que todos me pegavam no pé por ter. Fiquei solidária ao vidente assombrado e disse que essas coisas às vezes acontecem, são frutos de nossos medos e de nossa imaginação que se materializam e nos fazem crer que realmente existem. O danado não gostou da minha opinião e de assustado foi ficando nervoso, quis ir embora e se poupar da vergonha de mostrar tanto medo. Foi-se embora e deixou o velório mais animado, com cada qual procurando uma versão para o ocorrido, noia ou paranóia, quem sabe, um delírio tremens, havia cheiro de bebida, coitado... Questionavam a loucura, a imaginação, sabe-se o que mais. Fazer o quê, isso acontece, tem gente que morre de medo de cemitério. Mas um homem, daquele tamanho, que é isso meu Deus?... E eu lá, quietinha no meu canto, guardando meu segredo e meu isqueiro na bolsa, segurando pra não rir. Frio, que frio? Minhas bochechas pegavam fogo só de imaginar a cena e ter que guardar só para mim. Até hoje ninguém sabe da história. Ou melhor, não sabiam, porque juntando os fios da meada, quem estava lá vai matar a charada. Fazer o que? Estou cansada de rir sozinha.

maria do rosario bessas
Enviado por maria do rosario bessas em 24/03/2014
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