AS TRÊS CRUZES

O rascar de leve na janela acordou seu Ananias. Ainda meio dormindo, ouviu o relógio bater duas horas. É a chuva. Ou algum besouro que bateu no vidro , pensou. De novo, escutou o ruído, acompanhado de duas pancadinhas. Levantou-se e aproximou-se da janela.

— Quem é? — cochichou , preocupado em não acordar a mulher.

— Sou eu.

— Eu, quem? — Não reconheceu a voz. Tentou ver pela fresta das folhas da janela, inutilmente. A janela dava para um corredor lateral, escuro, mas que podia ser acessado pelo portão da rua.

— O Miro, padrinho. — A resposta também veio num sussurro. Furtivamente. Não querendo ser descoberto. Ansiedade e medo, foi o que Ananias notou na voz do afilhado. Dirigiu-se para a porta da sala, acendendo a luz do alpendre.

— Apaga a luz, padrim. — O rapaz disse, assim que, pela porta entreaberta, entrou na sala. Ele mesmo, com a desenvoltura de quem conhecia a casa, acionou o interruptor. A escuridão voltou a predominar. Escondia o brilho da sua capa molhada de chuva.

— Aconteceu alguma coisa? — Ananias viu, de relance, no olhar do sobrinho e afilhado, o terror de um animal acossado.

— Passei pra lhe dizer adeus. Tou indo embora.

— A esta hora? Que aconteceu, Miro? Meteu-se noutra encrenca?

— Não! Bem, sim... Não e sim...— Gagueja. Tem dificuldade em falar. — Tou fugindo.

Notando o pânico no olhar e nas atitudes do moço, o tio tenta acalmá-lo.

— Vamos conversar na cozinha, aqui a conversa vai acordar a Nezita ou as crianças.

Na cozinha, Ananias acendeu a luz e mandou Waldomiro se assentar.

— Que conversa maluca é esta? Pra onde você tá indo? Tá fugindo de alguma coisa? — As perguntas atropelam-se. Ananias fala depressa e as sentenças saem em curtos jatos.

— Tá tudo muito complicado, padrim. Se não fugir, sou um homem morto.

— Como assim? — O padrinho quer detalhes, mas tem certeza de que Miro, seu sobrinho por parte da mulher e afilhado de batismo, está enrascado em mais uma de suas falcatruas. Já não é surpresa, o rapaz está sempre metido em trambiques. Por duas vezes ele, Ananias, tinha resgatado o moço da cadeia e por três vezes pagara dívidas de jogo e negócios escusos.

Miro não responde. Desabotoa a camisa, revelando uma sacola de lona marrom, amarrada junto ao peito. Abre a parte de cima, puxando um zíper. Mete a mão dentro da sacola e retira um pacote de dinheiro, que coloca sobre a mesa.

— Isto é pra pagar os prejuízos que lhe dei.

— Não quero dinheiro, não. Quero que você me explique tudo, Miro.

— Aí tem cem contos. Cem mil cruzeiros. — Mete de novo a mão na sacola, tira um papel dobrado, que põe na mão do tio.

— Este aviso explica tudo.

Ananias desdobra a folha de papel. Papel de embrulho, pardo, comum nos empórios e nas padarias. Escrita em letras grandes, a mensagem é curta e grossa: “PAGA OU MORRE”. Pelos quatro cantos do papel estão estampadas mãos espalmadas, pintadas a carvão. Sob a mensagem escrita, três cruzes.

— Que significa isto?

— É a “Mão Negra”. Já ouviu falar? Minhas dívidas de jogo foram assumidas pela organização. É como diz a mensagem. Ou pago ou eles me matam.

— E essas três cruzes?

— Cada cruz é uma morte. Como o senhor e a madrinha são meus únicos parentes, quer dizer que vocês também estão ameaçados. Por isso tenho de fugir.

A ameaça representada pelas três cruzes assustou Ananias. Sentou-se no banco, encostou-se na parede e fechou os olhos. Num instante, passou-lhe pela memória toda a vida do seu afilhado, pelo menos a parte que ele conhecia — e parece não sabia da história nem a metade.

Waldomiro era filho de Nataniel e Ermelinda, seus cunhados, sendo ela conhecida por Linda, apesar de ser feia como uma bruxa. Moravam em Guaralândia, bem no norte de Minas, onde Miro viveu até os quinze anos. As notícias que tinham do afilhado de batismo eram sempre de suas matreirices e artes. Até que um dia apareceu em São Roque da Serra, com uma carta dos compadres, pedindo guarida para o afilhado, que tinha aprontado uma grande confusão na sua cidade. Ananias acolhera o afilhado, e, com energia, conseguira que o rapaz cursasse o ginásio e a escola de comércio. Conseguira, apesar de repetir algumas séries, o diploma em Técnico em Contabilidade. Ainda por influência de Ananias, que era secretário da Prefeitura Municipal, obtivera seu primeiro emprego, como ajudante do tesoureiro. O que foi, também, a sua perdição. O rapaz era ladino e bom em falsificar assinaturas, de tal forma que provocou um desaparecimento de dinheiro da prefeitura. Cidade pequena, onde todo mundo conhecia todo mundo, o desfalque da prefeitura, atribuído ao tesoureiro titular, foi abafado.

Mas Ananias e seus colegas desconfiaram de Waldomiro, que perdeu o emprego. Não obstante, conseguiu trabalho em seguida: foi ser ajudante imediato de Ataliba Caiau, agiota e dono do jogo-do-bicho na cidade. Nessa ocasião, já tinha vinte e três anos, deixou a casa dos padrinhos, onde havia morado por mais de sete anos, e passou a viver na casa de Ataliba.

— É melhor, pois o trabalho segue pela noite adentro, e assim não acordo vocês de madrugada, quando chegar. — Foi a explicação de Miro para a mudança.

Ananias, desencantado com a atitude do afilhado, achou até bom.

— Bem, você é quem sabe. Já é homem feito, segue o seu caminho. O que pude fazer por você, já fiz.

Mal sabia ele que o afilhado ainda ia lhe dar muito trabalho. O serviço noturno nada mais era do que as mesas de jogo no sobrado de Ataliba Caiau. Miro tornou-se logo um companheiro indispensável nas rodas de carteado: bem falante, sempre de bom humor, sabia blefar e perdia com o mesmo sorriso com que ganhava. Aos bons tempos iniciais seguiram-se semanas e meses de maus ventos. Além de perder com freqüência, Miro se fez amigo do álcool e freqüentador assíduo das pensões das putas da Rua dos Inconfidentes. Tornou-se cafetão de duas prostitutas, por conta do que entrou em lutas corporais com clientes e com as próprias mulheres da vida. Nas diversas vezes em que foi parar na cadeia, invocou a ajuda do padrinho, que o socorreu com ajuda financeira e com a moral impoluta de antigo funcionário público municipal.

O caminho de Waldomiro era previsível. Jogo, álcool, mulheres. Roubava no carteado com classe. Tratava as mulheres com crueldade, extirpando-lhe as últimas moedas do trabalho vilipendioso. Fazia dívidas impagáveis. Até que um dia, por trás das grades, ouviu o aviso do padrinho:

— Esta é a última vez que o ajudo. Daqui pra frente, se vira. Tá criado e mal-criado. Não precisa me chamar mais para livrá-lo de suas confusões.

Isto fora há uns seis meses. Agora, aparecia o rapaz na calada da noite, com aquele dinheiro e o aviso de morte.

— Não quero seu dinheiro. O que fiz, foi para um homem que pensava ser honrado e honesto, não foi para o bandido em que você se transformou. — Ananias era sincero e não escondia o que pensava. — Pegue o seu dinheiro, está sujo do sangue das putas e do álcool de seu vício.

Esquecendo-se, na sua santa ira, de que a esposa e o casal de filhos estavam dormindo, agora falava alto. A mulher aparece, descabelada, a camisola pendendo para um lado do corpo. Estremunhada, assusta-se ao ver os dois homens ali na cozinha, numa conversa que, percebeu logo, nada tinha de amistosa.

— Só quero saber como é que você vai fugir. Vai sozinho ou tem algum comparsa?

— Vou sozinho.

Nezita cria coragem, pergunta:

— Vai pra onde, Miro? De que jeito?

— Vou de bicicleta até Ribeirão, de lá tomo ônibus, vou pra Goiás, Mato Grosso, sei lá. Vou sumir. O senhor e a senhora nunca mais vão ouvir falar de mim.

— Leva o dinheiro. — Ananias insiste, empurrando o pacote na direção de Waldomiro.

Waldomiro pega o pacote e recoloca na sacola de lona fina, amarrada ao corpo, onde estão mais quatro pacotes idênticos.

Sem um aperto de mãos, sem qualquer gesto de despedida ou agradecimento,o rapaz sai pela porta da sala. Ananias e Nezita o seguem. Pela fresta da porta do quarto, Josias e Eliana, filhos do casal, acompanham a cena inexplicável e misteriosa para eles. Vêem quando Miro pega a bicicleta, põe o pé direito no pedal, e, ao mesmo tempo em que a impulsiona, passa agilmente a perna sobre o quadro, assenta-se e sai pedalando, rua abaixo. A luz fraca do farol acende-se, mas logo as sombras da noite e a chuva pesada engolem o ciclista e sua bicicleta.

Apenas quarenta quilômetros separam São Roque de Ribeirão Negro. Nos tempos de estudante Waldomiro, que fora bom ciclista, faria o percurso em poucas horas de pedalar sem grandes dificuldades. Agora, nesta noite escura e chuvosa, vou pedalar até de manhã. Mesmo passando pelos atalhos que conheço, a viagem vai ser dura.

Atalhos sabidos por poucos, alguns trechos conhecidos apenas por ele mesmo, Miro, que gostava de pedalar por lugares difíceis. Este conhecimento agora iria ser de grande valia. Logo chegou no ponto da estrada em que começava uma longa trilha.

O atalho do Gudim. Vou por ele até o poço, lá em baixo, depois subo o Morro da Pedreira. Vou atalhar pelo menos uns cinco quilômetros.

Decididamente, Waldomiro vira a bicicleta, penetrando na estreita trilha que segue pelo pasto, descendo suavemente o campo. A chuva diminuiu e algumas estrelas teimam em brilhar através de uma nesga de nuvens.

A chuva está passando, e aqui posso desenvolver mais velocidade.

A trilha era boa, batida, usada pela molecada que gostava de ir nadar no Poço do Gudim. Um poço de águas claras, não muito fundo, abrigado das vistas dos poucos transeuntes que passavam pelo caminho. O proprietário das terras – e do poço – um tal de Zé Godinho, não gostava dos garotos que usavam o seu poço para nadar. Pura implicância, já que nem o gado chegava ali para beber. Volta e meia o proprietário mandava jogar cacos de garrafas quebradas no poço, a fim de evitar que os garotos voltassem a nadar. Inutilmente. Os moleques viam os cacos brilhantes no fundo e antes de mergulharem nas águas claras, retiravam os vidros. Cansado desse expediente, Zé Godinho tomou outra tática. Chamou Juca Marango e determinou:

— Juca, me faça uma cerca de arame farpado cortando o trilho. Num quero ver ninguém mais passando por ali. E cerque o poço também, tudo com seis fios de arame farpado.

Juca tinha começado no início daquela semana, e o poço já estava cercado. Fincara os mourões para estender a cerca até do outro lado, impedindo definitivamente a passagem pelo caminho. No dia anterior, antes que começasse a chover, tinha até estendido o primeiro fio de arame farpado, o arame superior, na altura aproximada de metro e meio do chão. Os esticadores garantiam que todos os fios, quando colocados, ficassem tensos e intransponíveis.

Miro seguiu com decisão, trilha abaixo. O céu clareou, e ele via a trilha estendendo-se à sua frente, iluminada alguns metros pelo farol da bicicleta. Brilhando como serpente prateada. O que ele não viu foi o arame estendido, contra o qual bateu em cheio. Arrancado da bicicleta pelo impacto, foi lançado de lado, batendo com a cabeça sobre o moirão mais próximo, e caiu no chão amolecido do terreno encharcado de chuva.

A bicicleta ainda rodou alguns metros, desgovernada, antes de tombar sobre moitas de capim barba-de-bode.

Inerte, Waldomiro permanece no chão, sob a chuva que volta a ensopar a terra.

<><>

Por volta das onze horas, um soldado chegou à Prefeitura Municipal.

— Quero falar com seu Ananias.

Ao ser atendido na sala de trabalho do funcionário, deu o recado:

— O doutor delegado quer levar o senhor pra uma identificação.

Descendo as escadas da Prefeitura, vê o jipe do Delegado de Polícia. O próprio delegado está na direção do veículo.

— Sobe aí, seu Ananias. Vamos ver um morto. Parece que é seu conhecido.

— Onde? — Assustado, Ananias sobe no jipe. O soldado aboleta-se na parte de trás. A lona deixa passar alguns pingos d´água.

— Esse refugo da guerra tá uma merda. Mas é a única condução de que a delegacia dispõe. — O delegado parece desconfortado com a missão. Desvia a conversa, tentando amenizar a notícia. — Vamos para o poço do Gudim. Encontramos um corpo lá, quero saber quem é, o senhor vai me ajudar.

Ananias nada fala. Lembra-se da passagem do sobrinho, de noite, na sua casa.

Eles cumpriram a promessa, pensa. A primeira cruz da mensagem. Agora faltam duas cruzes. Sem poder se controlar, começa a tremer.

— Calma, seu Ananias. Não foi crime, não, parece que foi apenas um acidente.

Dirigindo com perícia, em pouco mais de meia hora chegam ao Poço do Gudim. A chuva é agora apenas chuvisqueiro.

— Veja, lá está o corpo. Vamos chegar com cuidado, para não deixar mais marcas desnecessárias no chão. — Descendo do jipe, o delegado puxa seu chapéu sobre os olhos e oferece o guarda-chuvas aberto ao trêmulo Ananias. — Venha. Preciso de que o senhor me diga se é mesmo seu sobrinho.

Aproximam-se devagar. O chão é um lamaçal, parece que muita gente andou por ali. O corpo está deitado de costas. A capa esparrama-se pelo chão, transformada em tétrica mortalha. O corpo não mostra ferimentos, a roupa só mostra um rasgão à altura do peito.

— Ele vinha de bicicleta, não viu o fio estendido, bateu com o peito e foi jogado contra aquele moirão ali, tá vendo?

Ananias viu. Viu o corpo e a cabeça. Esmigalhada por uma forte pancada.

— Bateu a cabeça nalguma pedra?

— Não, aqui no terreno não tem pedras nem tocos de madeira. Parece que bateu com a cabeça na ponta do moirão. — A explicação do delegado não convence Ananias, que se aproxima para ter a certeza de que se trata ou não do sobrinho. Demora-se ao olhar para o cadáver.

Puxa vida, nunca vi um rosto tão estragado. Arrebentado pelos dois lados. Uma pancada no moirão não causaria tanto ferimento. Mas é melhor ficar quieto. Já que tá morto...

— É mesmo o Waldomiro, meu sobrinho. Reconheço mais pelas roupas do que pelas feições. Não tem um centímetro do rosto intacto.

Enquanto fala, observa um objeto escuro sobre uma moita de capim.

— Que é aquilo?

— Uma pasta, ou sacola. Vazia. Sabe dizer se era de Miro?

— Não, não sei. — Ananias achou melhor não dizer a verdade.

— Nada encontramos que pudesse identificá-lo. Nem documentos, nem papéis, nem carta, nada. Muito estranho, esta pasta vazia.

— Também acho. Mas nada sei a respeito de Miro, ele estava afastado de minha casa faz algum tempo. O senhor sabe. Posso ver a pasta?

— Claro. — Cabo, peque a pasta, mostre-a para o seu Ananias.

Ananias pega a pasta. Vazia. Lembra-se do momento em que Miro havia recolocado o pacote de dinheiro que ele recusara. Parecera então a Ananias que ela estava bem recheada. Ananias passa a mão por dentro, parece que tem alguma coisa. De fato, no fundo, amassado, está um papel pardo, que Ananias tira.

— Que é isso? — Indaga o delegado. Ananias entrega-lhe o papel, que o delegado desdobra e desamassa.

Antes mesmo que o delegado possa fazer qualquer comentário, Ananias revê a mensagem que Miro lhe exibira em sua casa, hora antes. Era o mesmo aviso. Com uma pequena alteração: uma das três cruzes tinha sido retirada. Cortada por faca ou canivete. Intactas continuavam as outras duas cruzes que Ananias sabia muito bem o que significavam.

<><>

ANTONIO ROQUE GOBBO —

BELO HORIZONTE, 10 DE MARÇO DE 2002.

conto # 149 da SÉRIE MILISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 14/04/2014
Código do texto: T4768293
Classificação de conteúdo: seguro